Quando cruzamos a Rio Branco com Ouvidor, vendo camelôs lado a lado de executivos das multinacionais, é que percebemos que os direitos sociais (CF art. 7º) ainda estão longe de garantir o bem comum de todos os homens na época moderna.
Com a Revolução Industrial, os bens naturais foram sendo descobertos e mais e mais explorados em usinas e fábricas, nas quais trabalhavam operários sujeitos às vicissitudes da oferta e da procura. Registraram-se abusos e problemas de gravidade inédita. A questão social foi tomando vulto crescente. As rápidas e profundas transformações das estruturas econômicas, sociais e políticas ameaçavam as populações do mundo, exigindo a formulação de diretrizes éticas que assegurassem ao homem e à sociedade um desenvolvimento integral e fraterno de suas potencialidades.
É nos cinco primeiros livros da bíblia (Lei, Torá ou Pentateuco) e nos livros proféticos que encontramos os principais traços da justiça social; as relações entre os membros da sociedade eram tema que voltava freqüentemente sob a pena dos escritores sagrados.
O direito à propriedade particular é plenamente reconhecido; por isso o furto e a cobiça desregrada de bens alheios são condenados: "Não roubarás... Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a sua mulher, nem o seu escravo, ou a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo." (Ex 20. 15, 17).
A lei procurava refrear a ganância dos proprietários, que redundaria em detrimento dos humildes e dos trabalhadores: "Não oprimirás um assalariado pobre, necessitado, seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em tua cidade. Pagar-lhe-ás o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e disso depende a sua vida." (Dt 24, 14s).
Vê-se que a Lei não faz diferença entre o assalariado compatriota e o estrangeiro.
Em certos casos, o israelita era exortado a ultrapassar a justiça e praticar a generosidade, abrindo mão de um direito seu: "Quando fizerdes algum empréstimo ao teu próximo, não entrarás em sua casa para lhe tirar o penhor. Se for um pobre, porém, não irás dormir conservando o seu penhor; ao pôr-do-sol, deverás devolver sem falta o penhor, para que ele durma com o seu manto e te abençoe. E, quanto a ti, isso será um ato de justiça diante de Iahweh teu Deus." (Dt 24, 10-13). No caso, o direito de guardar o penhor até que seja devolvido o objeto emprestado cede à necessidade do pobre, que não deve passar a noite sem o manto que o cobre.
Os Profetas são muito severos em relação às injustiças sociais ou à exploração dos pequeninos. Amós é um dos mais veementes arautos da justiça: "Porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados! Eles hostilizam o justo, aceitam suborno, e repelem os indigentes à porta!" (Am 5, 11-13). "Vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias. Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos e tornam torto o caminho dos pobres." (Am 2, 6s).
Os profetas protestam muitas vezes contra a venalidade da justiça, como se vê acima e em textos como o de Mq 3, 9-12: "Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó e magistrados da casa de Israel, vós que detestais o direito, que torceis o que é reto, vós que edificais Sião com o sangue e Jerusalém com injustiça! Seus chefes julgam por suborno, seus sacerdotes ensinam por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro. E eles se apóiam em Iahweh, dizendo: ‘Não está Iahweh em nosso meio? Não virá sobre nós a desgraça!’ Por isso, por culpa vossa, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará um lugar de ruínas, e a montanha do Templo, um cerro de brenhas!"
O Senhor Deus é o contrário dos grandes homens da terra à medida que sejam venais e injustos. Eis a propósito bela passagem do sábio no livro do Eclesiástico: "Não tentes corrompê-lo com presentes, porque ele não os receberá, não te apóies num sacrifício injusto. Pois o Senhor é um juiz que não faz acepção de pessoas. Ele não considera as pessoas em detrimento do pobre, ouve o apelo do oprimido. Não despreza a súplica do órfão, nem da viúva que derrama o seu pranto. Não correm as lágrimas da viúva pelas faces e o seu grito não é contra aquele que as provoca?" (Eclo 35, 11-15).
A Lei de Moisés manifesta, dentro da rigidez de suas expressões, um elevado senso humanitário. O Antigo Testamento queria levar um povo rude e infantil à perfeição espiritual ou à santidade tal como podia ser entendida por aquela gente: "Sereis santos, porque eu sou santo" é um refrão dos livros de Israel (Lv 11, 45; 19, 2).
Os Direitos Sociais no Novo Testamento
Tempos atrás, assisti a uma conferência religiosa em que o pregador fazia a apologia do sofrimento. Explicava aos ouvintes que o sofrimento é uma bênção divina, uma caminhada para Deus, uma provação do Alto, uma identificação com Cristo.
Diante dessas palavras, onde ficam os direitos sociais (CF art. 7º)? Hoje penso que, se o sofrimento fosse uma bênção divina, Deus seria sádico, porque se comprazeria com os males dos outros. Se fosse identificação com Cristo, por que os cristãos buscam a medicina e os meios possíveis, a fim de se libertarem do sofrimento?
O Novo Testamento retorna e leva ao auge as grandes lições do Antigo Testamento referentes à justiça.
A epístola de São Tiago, escrita por um judeu cristão muito fiel a certos princípios da tradição israelita, faz ressoar advertências dos profetas aos proprietários injustos: "Pois bem, agora vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que estão para vos sobrevir. A vossa riqueza apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas traças. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados e a sua ferrugem testemunhará contra vós e devorará as vossas carnes. Entesourastes como que um fogo nos tempos do fim. Lembrai-vos de que o salário do qual privastes os trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vivestes faustosamente na terra e vos regalastes; vós vos saciastes no dia da matança. Condenastes o justo e o pusestes à morte: ele não vos resiste." (Tg 5, 1-6).
Em Lucas 16, 19-31, Jesus apresenta um ricaço, que vivia em seus aposentos no gozo de fartura e bem-estar. À porta da casa jazia um pobre chamado Lázaro, que lhe fazia contraste, pois era coberto de úlceras e tinha os cães por companheiros. Não diz o Senhor que o pobre pedia esmola e o ricaço, inclemente, não lhe dava... Não obstante, quando morreram, o homem rico foi condenado, ao passo que Lázaro se viu premiado... Por quê? – A seqüência da parábola dá a entender que o mal do ricaço foi ter-se deixado afagar pelos bens deste mundo, que lhe embotaram a mente e fizeram que morresse sem fome material e sem anseios transcendentais; por conseguinte, nada tinha que receber na outra vida; ao contrário, Lázaro morreu com fome... fome de pão, mas também fome de bens maiores; a pobreza conservou-lhe a intuição de que o homem não foi feito somente para a vida terrestre!
A sobriedade é vivamente recomendada nos escritos do Novo Testamento, porque favorece a liberdade do coração e torna a pessoa mais apta para cultivar os valores espirituais e definitivos.
É por isso que, quando um jovem perguntou a Jesus o que deveria fazer de bom para possuir a vida eterna, o Senhor lhe apontou primeiramente a observância dos mandamentos e, a seguir, lhe deu o conselho: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro nos céus. Depois, vem e segue-me." (Mt 19, 16-21). Diante dessa orientação, o jovem recuou triste, "pois era possuidor de muitos bens" (19, 22). O fervor arrefeceu por causa do apego à matéria!
São Paulo apregoa a simplicidade de vida aconselhada por Jesus e mostra os perigos da avareza: "Pois nós nada trouxemos para o mundo, nem coisa alguma dele podemos levar. Se, pois, temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso. Ora, os que querem se enriquecer caem em tentação e cilada, e em muitos desejos insensatos e perniciosos, que mergulham os homens na ruína e na perdição. Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro, por cujo desenfreado desejo alguns se afastaram da fé, e a si mesmos se afligem com múltiplos tormentos." (1 Tm 6, 7-10).
Para praticar a sobriedade, os antigos cristãos exerciam a comunhão espontânea de bens: "Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um." (At 2, 44s). "Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, segundo a sua necessidade." (At 4, 34s). "José, a quem os apóstolos haviam dado o cognome de Barnabé... sendo proprietário de um campo, vendeu-o e trouxe o dinheiro, depositando-o aos pés dos apóstolos." (At 4, 36s). Essa espontânea partilha de bens, com renúncia à propriedade particular, favorece o senso de solidariedade e fraternidade entre os primeiros cristãos.
Ananias e Safira venderam também um campo seu, mas entregaram aos apóstolos apenas uma parte do preço respectivo, retendo consigo a outra parte. Foram punidos não por haver guardado uma parte do que possuíam legitimamente, mas por haver tentado enganar os apóstolos e, através deles, o Espírito Santo. Disse Pedro a Ananias: "Ananias, por que encheu Satanás o teu coração para mentires ao Espírito Santo, retendo parte do preço do terreno? Porventura, mantendo-o não permaneceria teu e, vendido, não continuaria em teu poder? Por que, pois, concebeste em teu coração este projeto?" (At 5, 1-4).
O Novo Testamento reconhece a legitimidade da riqueza honesta, mas chama a atenção para a sedução e o poder escravizador que ela pode exercer sobre o coração do homem. Daí a enfática recomendação da simplicidade e solidariedade de vida.
Os direitos sociais na Patrística
Com a morte do último apóstolo de Cristo, surgiram escritores que, nos primeiros séculos, contribuíram para a reta formulação das verdades da fé ante as heresias. A sua época vai até Gregório Magno (604) no Ocidente e João Damasceno (749) no Oriente. Movia-os a concepção grandiosa de que Deus é o único Proprietário de todos os bens e o homem é seu ministro na gestão deste mundo. Essa idéia estava associada ao regime teocrático do povo de Israel, mas a patrística já ensinava que o Senhor costuma conceder ao homem uma participação nos seus direitos, comunicando à criatura humana certo domínio sobre os seres inferiores.
A Didaqué ou Doutrina dos Apóstolos data de fins do século I. Enfatiza o desprendimento do coração e a partilha dos bens: "Não repelirás o indigente, mas antes repartirás tudo com teu irmão; nada considerarás como teu, pois, se divides os bens da imortalidade, quanto mais o deves fazer com os corruptíveis?" (4, 8).
Clemente de Alexandria (215) afirma que as riquezas são dadas ao homem pela munificência de Deus bom; como tais, não são nem boas nem más; é o homem que lhes dá a sua qualificação ética.
Com o edito de Milão, no século IV (313), o imperador Constantino deu a paz aos cristãos perseguidos, o que possibilitou aos escritores pronunciamentos mais explícitos sobre a conduta moral da sociedade de seu tempo.
Basílio (379) destacou-se em pregar justiça e senso humanitário, insurgindo-se contra a ganância egoísta em muitos textos: "Possuir mais do que o necessário é prejudicar os pobres, é roubar. Quem despoja das suas vestes um homem terá o nome de ladrão. E quem não veste a nudez do mendigo, quando o pode fazer, merecerá outro nome? Ao faminto pertence o pão que tu guardas. Ao homem nu, o manto que fica nos teus baús. Ao descalço, o sapato que apodrece na tua casa. Ao miserável, o dinheiro que tu guardas enfurnado." (Homilia 6, 7).
Gregório de Nazianzo (329-390), um dos maiores oradores cristãos de todos os tempos, proferiu notável discurso sobre o amor aos pobres: "Tu, robusto, ajuda o enfermo; tu, rico, ajuda o necessitado. Tu, que não caíste, ajuda ao que caiu e está atribulado; tu, que estás animado, ajuda ao desalentado; tu, que gozas de prosperidade, ao que sofre na adversidade."
Ambrósio (397), em Milão, na mesma época, retoma a idéia: "A natureza desconhece os ricos, ela que nos dá à luz todos pobres. Em verdade, não nascemos vestidos. Não somos criados com ouro e prata... Aliás, não são os teus bens que distribuis ao pobre; são apenas os dele que lhe destinas. Pois o que fazes é usurpar só para teu uso o que é dado a todos e para ser utilizado por todos." (Tratado sobre Nabot, 55).
João Crisóstomo (407) pregava com a eloqüência de "boca de ouro" (crysóstomos) contra os abusos morais da corte: "Não deveis dizer: ‘Eu gasto o que é meu, eu gozo daquilo que é meu.’ Não, não daquilo que é vosso, mas daquilo que é do outro... Esses bens não vos pertencem; pertencem em comum a vós e a vossos semelhantes, como são comuns o céu e a terra e tudo o mais." (Hom. 10).
Agostinho, no século V (430), um dos maiores gênios da humanidade, escreve com profundidade do conteúdo mas também com elegância da forma, desmascarando a eventual soberba e auto-suficiência de quem possui: "Não se considerem pobres somente os que não têm dinheiro. Observe cada um em que é pobre, porque talvez seja rico sob outro aspecto e possa prestar ajuda. Talvez possas ajudar alguém com teus braços e até mais do que se o ajudasses com teu dinheiro. Aquele lá precisa de um conselho e tu sabes dá-lo; nisto ele é pobre e és rico, e então nada tens que perder; dá-lhe um bom conselho e faze-lhe tua esmola." (Comentário ao salmo 125).
Paulino de Nola (431) preocupou-se também com a temática "riqueza-pobreza", que assim explana, com relação ao óbolo da viúva: "Lembremo-nos... daquela viúva que, despreocupada com os seus... deu aos pobres tudo o que lhe restava de alimento." (Mc 12, 41-44).
João Cassiano (430/435) deixou escritos de espiritualidade nos quais aparece enfaticamente a preocupação com a pobreza interior: "Acontece com alguns que, tendo desprezado consideráveis fortunas, enormes somas de prata e ouro, magníficas posses, se deixaram depois prender por um escalpelo, um lápis, uma agulha, ou pena de escrever. Se tivessem visado sempre a pureza de coração, não cairiam por bagatelas, depois de preferirem despojar-se de bens preciosos antes que se sujeitar a eles." (Conferência 1ª).
A patrística surpreende o leitor moderno pela audácia de suas afirmações, que, na verdade, são a expressão do Evangelho e conservam plena atualidade com relação aos direitos sociais.
Os Direitos Sociais no Século XIX
A vida da sociedade, após a patrística, foi regulada por princípios básicos elaborados nos mosteiros e, depois, nas universidades. Tomás de Aquino (1274), Francisco de Victoria (1546), Francisco Suárez (1617) e vários outros pensadores refletiram sobre a ética da convivência social, pondo em relevo a inviolabilidade da vida humana, a santidade e a indissolubilidade do matrimônio, a dignidade da mulher, da criança, o valor do trabalho humano e tantos outros temas.
No começo do século XIX, o cenário europeu modificou-se em virtude da revolução industrial, do capitalismo e do liberalismo. Novos e graves problemas sociais surgiram, provocados por abusos do capital sobre o trabalho. Isso suscitou a atenção dos chamados católicos sociais, que marcaram o século XIX e prepararam o caminho para a primeira encíclica papal sobre a questão operária.
A questão social não começou com a Rerum Novarum (1891) em réplica ao socialismo, que se cristalizou no Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx (1848). Nos escritos do Novo Testamento estão proclamadas as verdades fundamentais da doutrina social católica: a dignidade transcendental da pessoa humana, a unidade do gênero humano e, conseqüentemente, a fraternidade de todos os homens; a unidade e indissolubilidade da família; os deveres recíprocos dos esposos, dos pais e dos filhos, dos patrões e dos empregados; a origem divina da sociedade e o respeito que lhe é devido; as normas morais da justiça e, principalmente, da caridade; as regras concernentes à posse e ao uso das riquezas... Estes princípios prepararam a reforma social, dissolvendo as antigas concepções e transformando radicalmente as mentalidades.
Durante dezoito séculos, a sociedade manteve suas estruturas fundamentais estacionárias. Foi no século XIX, em virtude do progresso da técnica, que a ordem socioeconômica foi transformada, afetando desastrosamente a classe operária; então é que o problema social tomou vulto de relevo. A partir dos primeiros decênios do século XIX, aparecem no cenário internacional grandes figuras católicas que procuram repensar as novas situações à luz do Evangelho aplicando os princípios da Tradição à elaboração de uma nova disciplina chamada "Doutrina Social da Igreja".
Em 1838, o Cardeal de Roi, arcebispo de Ruão, escreveu uma carta pastoral sobre o repouso dominical, em que fulminava o trabalho das crianças: "Que cuidados mais carinhosos e mais comoventes se poderiam prodigalizar à infância pobre e desamparada? Objeto das mais delicadas atenções, asilos e escolas lhe são abertas por toda a parte. Mas, ao lado desta solicitude digna de inveja, qual é realmente a sorte da infância? Abri os olhos e vede: os pais e mestres exigem que estas tenras plantas produzam frutos na estação das flores; com fadigas excessivas e prolongadas, lhes esgotam a seiva nascente, sem escrúpulos de deixá-las fenecer sobre uma haste vacilante e mirrada. Pobres criancinhas!"
Aos 15/11/1845, Mons. Rendu, bispo de Annecy, enviou ao rei de Sardenha um Memorial Sobre a Questão Operária, em que defendia a causa do proletariado: "A legislação moderna nada fez pelo proletário. Na verdade, protege sua vida enquanto homem; mas o desconhece como trabalhador; nada faz por seu futuro, nem por sua alimentação, nem por seu progresso moral."
Em 1837, o médico Dr. Villermé (1863) apresentou à Academia de Ciências Morais uma pesquisa sobre as condições de trabalho na indústria têxtil: "Aconselho aos chefes de empresa não mais considerar seus operários unicamente como simples máquinas destinadas à produção, das quais se desfazem quando possam poder substituí-las vantajosamente por outras."
Outro grande nome é o de Villeneuve-Bargemont (1850), político impressionado pelo que via nos distritos de Montauban, Charente, Nancy e Lille: "Por que os chefes de empresa ou os magistrados não exercem vigilância a fim de que as forças de tantas crianças infelizes não sejam assim dissipadas antes da adolescência?"
Em 1834, Villeneuve-Bargemont propôs uma série de reformas ousadas, que não seriam executadas senão decênios mais tarde: abolição do trabalho de menores de 14 anos, separação dos sexos nas oficinas, vigilância nas fábricas, criação das caixas econômicas e de previdência.
Em 1841, Daniel Legrand, industrial da Alsácia, sugeriu a elaboração de uma legislação internacional do trabalho, só instituída em 1920.
Em 1850, à frente o Visconde Alberto de Melun, realizaram-se na França as primeiras ações concretas da legislação social: habitações higiênicas, repressão da exploração dos salários, contratos de aprendizagem.
O Conde Charles de Montalembert (1810-1870) refutava a acusação de inércia lançada contra os católicos: "Seja!...nós nada fizemos, nada fazemos, não desejamos fazer nada pelos pobres. Fundações, asilos, associações religiosas, esmolas individuais, tudo isto não é nada!... Mas vós, doutores da lei nova... onde estão vossas obras?" O ardor oratório de Montalembert transparece nestes dizeres. Suas afirmações são válidas em todas as épocas da história e também em nossos dias. Os católicos sociais sempre foram muito sensíveis aos problemas sociais e se distinguiram na criação de obras de assistência e promoção dos seus irmãos.
A questão social foi evoluindo sem parar, e o seu problema foi suscitando a crescente atenção dos católicos na segunda metade de século XIX. Se não, vejamos:
Na Alemanha, destaca-se o bispo Guilherme Emmanuel von Ketteler (1811-1877), de Mogúncia, chamado "o bispo combativo". Em 1864, publicou A Questão Operária e o Cristianismo (Die Arbeiterfrage und das Christentum), pleiteando o direito de os operários se associarem, a fim de promover interesses comuns, como: a) aumento de salários correspondente ao valor do trabalho; b) diminuição das horas de trabalho; c) regulamentação dos dias de descanso; e d) proibição do trabalho das crianças, das mulheres e das moças nas fábricas. O bispo considerava de frente a questão social, como se punha em conseqüência da revolução industrial. O seu principal continuador foi o cônego Hitze, que, em 1890, publicou A Quinta-Essência da Questão Social, afirmando que: "O verdadeiro senhor em nossas sociedades é o capitalista, porque todos, empresários, patrões e operários, estão à mercê do capital. A solução só pode ser encontrada na organização social das profissões."
Na Áustria, o barão Karl von Vogelsang (1818-1890) fundou a Associação Livre dos Políticos Sociais (Die Freie Vereinigung Katholischer Sozialpolitiker), que protegia os pequenos proprietários, os artífices, os operários de indústria, propugnando: a) a condenação do capitalismo selvagem; b) a rejeição do socialismo ou coletivismo; e c ) a promoção de associações corporativas profissionais que fossem intermediárias entre o Estado e os indivíduos.
Na Suíça sobressaem um bispo, mons. Gaspard Mermillod (1824-1892), e um estadista, Gaspard Decurtins (1815-1916). Gaspard Mermillod tornou-se o infatigável defensor de todos os necessitados... dos irlandeses esfomeados... dos católicos búlgaros perseguidos, dos poloneses exilados. O seu pensamento era claro: "Quem quer penetrar até à raiz profunda de nossas agitações atuais percebe bem depressa que ela reside na questão social,. ..estamos numa época de transição... uma velha sociedade está em ruínas e outra se vem formando." Gaspard Decurtins era homem de ação, escritor e estadista, que deixou A Questão da Proteção Internacional do Trabalhador (1899).
Na Inglaterra, intensamente industrializada, destacou-se no plano da justiça social o cardeal Henry Edward Manning (1808-1891). Lutou em prol da doutrina do justo salário, combateu os arrendamentos usurários de terras impostos aos agricultores, deu seu apoio aos movimentos profissionais, patrocinou o direito de greve e fez uma intervenção em favor dos estivadores de Londres, em 1889, conseguindo reconciliar entre si patrões e operários. Acusado de socialista, respondia: "Não sei se para vós isto é socialismo; para mim, é o mais puro cristianismo." Um discípulo seu, mons. Bagshawe, alguns anos mais tarde, escrevia: "As classes abastadas falam de caridade, mas, se elas quisessem restituir aos pobres o que lhes devem em estrita justiça, veriam logo que o montante dessas restituições seria infinitamente superior a suas pretendidas caridades."
Nos Estados Unidos, o cardeal James Gibbons (1834-1921) tomou parte no caso dos Cavaleiros do Trabalho (Knights of Labour), organização operária que agia secretamente. Eis uma parte de seu memorial: "O único poder do mundo que, há quase dezoito séculos, fora sempre o protetor das classes pobres não as poderia abandonar na hora da aflição..."
Destaques também dessa época foram Léon Harmel (1829-1915), René de la Tour du Pin (1834-1924) e Albert de Mun (1841-1914), na França, e Schaepman (1844-1903), Ariëns (1860-1928), Aalberse (1871-1949) e Poels (1868-1948), na Holanda.
Na Bélgica, o industrial católico J. De Jaer escreveu em 1872: "Enquanto os socialistas seguem por toda a parte um sistema de propaganda idêntica, a burguesia assume uma atitude vacilante, tímida, pouco leal, atitude do avestruz que esconde a cabeça para furtar-se ao perigo." Edouard Ducpétiaux, em 1864, deu apoio à fixação legal de uma idade mínima para a admissão de trabalhadores nas fábricas, limitação do trabalho a doze horas diárias, proibição do trabalho feminino no fundo das minas, regulamentação da higiene do trabalho e sua inspeção administrativa. O prof. Defourny, na História da Bélgica Contemporânea (Histoire de la Belgique Contemporaine), notava que um grande chefe de indústria de Gand estava convencido de que doze horas era um mínimo abaixo do qual não se poderia reduzir a jornada de trabalho.
Esse, o pano de fundo dos direitos sociais existentes em 1891.
Os direitos sociais na Rerum Novarum
A encíclica de Leão XIII colheu os frutos dos intensos trabalhos de pensadores católicos que, no decorrer do século XIX, lutaram pela justiça social. Confrontando liberalismo e coletivismo, o papa analisou a triste situação em que se encontravam desprotegidos os trabalhadores de sua época: "Os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada" (nº 2). "O talento e a habilidade privados dos seus estímulos e, como conseqüência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte, enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria" (nº 12).
O pensamento liberal proclamava o uso descomedido da liberdade no setor sociopolítico-econômico, enquanto o coletivismo apregoava a transferência do capital dos cidadãos particulares para as mãos do Estado, o único grande proprietário. Condenado o coletivismo socialista, o pontífice defendeu a propriedade particular: "O fim imediato visado pelo trabalhador é conquistar um bem que possuirá por direito particular e propriedade sua (...) com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho" (nº 4).
Esboçando o que hoje se chama de previdência social, o documento preconizou os deveres do Estado não só na intervenção em matéria econômica, mas também no relacionamento entre patrões e operários, a fim de lhes tutelar os direitos: "O trabalho (...) é a fonte única de onde procede a riqueza das nações. A eqüidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhes seja dada uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalhos e privações" (nº 27).
O texto papal foi ousado, ao proclamar o direito de associação, para os trabalhadores constituírem sociedades visando a defesa dos seus interesses, ou seja, os sindicatos livres: "A classe indigente, (...) sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre" (nº 38).
Sabendo que, na sua época, associações não cristãs tiranizavam seus membros, a carta pontifícia apelou para que os operários cristãos fundassem seus sindicatos próprios: "Neste estado de coisas, os operários cristãos não têm remédio senão escolher entre dois partidos: ou darem os seus nomes às sociedades de que a religião tem tudo a recear, ou organizarem-se eles mesmos e unirem as suas forças para poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerával" (nº 40).
Outro passo audaz da Rerum Novarum foi a proclamação da necessidade do salário justo e de outros direitos do trabalhador, que lhe garantam dignas condições de vida, adequada subsistência de sua família e possibilidade de poupança para enfrentar os imprevistos da vida: "O operário que perceber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às de sua família, se for prudente, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de forma que, com sábias economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimônio" (nº 34).
O repouso dominical é outra legítima reivindicação enfatizada: "Unido à religião, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para chamá-lo de novo ao pensamento dos bens celestiais e ao culto devido à Majestade de Deus" (n º 32).
A delimitação das horas de trabalho, de tal modo que o operário não seja acabrunhado por sobrecarga excessiva, é outro ponto recomendado: "Não deve o trabalho prolongar-se por mais tempo do que as forças permitem (...) é preciso que, de quando em quando, se suspenda para dar lugar ao repouso" (nº 32).
As mulheres e as crianças, por sua índole natural, não podem ser submetidas a tarefas violentas: "O que pode fazer um homem válido e na força da idade não será eqüitativo exigi-lo de uma mulher ou de uma criança" (nº 33).
Leão XIII não esqueceu que a raiz de qualquer reforma social é a renovação dos costumes de todos os cidadãos (ricos e pobres): "O que torna uma nação próspera são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição eqüitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo gênero: coisas estas que não se podem aperfeiçoar sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos" (nº 26).
Estas propostas e normas sociais eram inovadoras na sua época e continuam a ter hoje a sua plena atualidade. A legislação trabalhista existente em quase todos os países do mundo muito deve à intuição, suscitada por Leão XIII, dos valores humanos e cristãos dos trabalhadores.
Os direitos sociais depois de Leão XIII
Quando lemos atentamente o artigo 7º da Constituição, vendo nele positivados e expressos todos os princípios defendidos na Magna Carta do operariado, revolucionária para a sua época, 1891, é que sentimos como as encíclicas sociais acompanharam a evolução da história com precisão crescente, exprimindo as principais sentenças do pensamento cristão.
Na Quadragesimo Anno, de 1931, Pio XI quis comemorar o 40º aniversário da Rerum Novarum com nova encíclica, que atualizaria a anterior.
Na primeira parte faz um balanço da questão social e das respostas a ela dadas pelo Estado, pela Igreja e pelos interessados; na segunda, verifica que, embora muitos resultados positivos tenham sido adquiridos, ainda há problemas que resolver, a saber:
1) o direito de propriedade tem função social ou deve reverter em bem da sociedade;
2) o capital e o trabalho são chamados a colaborar e a usufruir das riquezas criadas por um e outro;
3) o trabalhador deve ser emancipado da sua condição de proletário, como era o romano, homem pobre e útil apenas pela prole que gerava. O operário deve ter alguma participação na propriedade;
4) o regime salarial não é injusto, mas é preciso que seja adequado ou leve em conta a condição do operário chefe de família;
5) a restauração da ordem social através das organizações profissionais é uma necessidade e deve ter seu aperfeiçoamento segundo as leis do evangelho.
Na terceira parte condena as formas ditatoriais do capitalismo e observa que não há conciliação entre o pensamento católico e o socialismo, que continua a ignorar o destino transcendental do homem e da sociedade, fechando-se no materialismo.
A encíclica termina com um apelo à renovação moral, condição básica para o restabelecimento da ordem social.
Na Mater et Magistra (Mãe e Mestra), de 1961, João XXIII encara a questão social sob os novos aspectos que ela oferecia em sua época. A reconstrução da economia nacional e internacional após a guerra (1939-1945) havia suscitado grande desenvolvimento de alguns povos e deixado outros no subdesenvolvimento. Ademais, a descolonização de muitos países do Terceiro Mundo, que chegavam à sua independência política, os fazia cair sob outro tipo de domínio colonial – o de caráter econômico.
Sobre este pano de fundo, a Mater et Magistra considera as desigualdades existentes entre os setores da economia das diversas nações, como, também, no plano internacional. Volta-se para os fenômenos da superpopulação e do subdesenvolvimento e analisa a condição dos trabalhadores rurais que, não conseguindo manter-se com dignidade no campo, emigram para as cidades, criando aglomerados populacionais suburbanos, nos quais o estatuto de vida é miserável: "(...) julgamos que é legítima nos trabalhadores a aspiração a participarem na vida das empresas em que estão inscritos e trabalham (...) deve-se tender sempre a que a empresa se torne uma comunidade humana, por cujo espírito sejam totalmente influenciadas as relações individuais, o número e a variedade dos ofícios" (nº 88).
Na Pacem in Terris (Paz na Terra), de 1963, João XXIII analisa os perigos de nova guerra nuclear. Dirigindo-se a todas as pessoas de boa vontade, versa sobre a paz de todos os povos na base da Verdade, da Justiça, da Caridade e da Liberdade.
A primeira parte abre-se com a consideração dos direitos e dos deveres da pessoa humana: "A ordem que há de vigorar na sociedade é de natureza espiritual. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade, que se realizará segundo a justiça, que se animará e consumará no amor, que se recomporá sempre na liberdade, mas sempre também em novo equilíbrio, cada vez mais humano" (nº 37).
A segunda parte trata das relações entre os seres humanos e os poderes públicos no interior das nações: "Que dizes? Todo o governante é constituído por Deus? Não, não afirmo isso. Não trato agora de cada governante em particular, mas do governo como tal" (nº 46). A autoridade, porém, não seja absoluta. Tem seus deveres, entre os quais o de promover o bem comum e defender os direitos dos indivíduos (nº 53-54).
Na terceira parte aborda as relações entre as comunidades políticas considerando problemas concretos, como o das minorias (nº 94-97), o dos refugiados políticos (nº 103-108), o do desarmamento (nº 110), o dos povos subdesenvolvidos (nº 123).
A parte quarta fala das relações dos indivíduos e das comunidades políticas com a comunidade mundial, preconizando a instituição de uma autoridade pública universal (nº 132-138) e afirmando o princípio da subsidiariedade, em que as pequenas comunidades possam exercer livremente as suas atribuições dentro da linha do bem comum (nº 140).
A parte quinta propõe diretrizes pastorais, recomendando a participação de todos os cidadãos na vida pública, a competência científica, técnica e profissional dos responsáveis, a inspiração cristã das instituições encarregadas do bem temporal e a colaboração dos católicos no setor socioeconômico-político (nº 146-160).
Os direitos sociais na Populorum Progressio
Blaise Pascal (1623-1662) foi um sábio e brilhante apologista católico. No seu livro Pensamentos (Pensées), aborda a infinidade e o coração. Muito conhecida é a sua frase: "o coração tem suas razões que a razão não conhece" (le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point – Section IV, 277). Outra pérola: "O homem não é mais do que um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço que pensa" (l’homme n’est qu’un roseau, le plus faible de la nature; mais c’est un roseau pensant – Section VI, 347).
Tenho para mim que a idéia pascaliana de que o homem ultrapassa infinitamente o homem tenha influenciado Paulo VI, em 1967, ao publicar a Populorum Progressio (O desenvolvimento dos povos). As encíclicas anteriores versavam sobre a desigualdade entre as classes dentro de cada povo; esta considera o homem e os povos como entidades destinadas a viver em comunhão fraterna, a crescer, a realizar-se: "A questão social adquiriu dimensões mundiais (...) Os povos da fome interpelam hoje de maneira dramática os povos da opulência" (nº 3).
A primeira parte trata do desenvolvimento integral do homem. No tópico crescer, mostra que o homem só será operante da história e artífice da sua sorte se cultivar os valores espirituais, como a instrução, o amor ao próximo, a consciência moral, o senso religioso e a fidelidade a Cristo: "É necessário promover um humanismo total. Que vem ele a ser senão o desenvolvimento integral do homem todo e de todos os homens?" (nº 42). "Não se trata de vencer a fome, tampouco de afastar a pobreza (...) Trata-se de construir um mundo em que todos os homens possam viver uma vida plenamente humana... um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se na mesa do rico" (nº 47).
No tema propriedade particular, lembra que todo o proprietário possui deveres sociais; é preciso que, com seus bens, ele sirva não somente a si, mas também, na medida do possível, a seus semelhantes: "Ninguém está autorizado a reservar para seu uso exclusivo o que ultrapassa suas necessidades, enquanto outros carecem do necessário" (nº 23).
No assunto urgência e violência, alerta que o sofrimento de tantas criaturas acabrunhadas pela miséria e pela injustiça social brada aos céus e pede medidas urgentes. À vista disso, não poucos homens apregoam o recurso à violência, a fim de extirpar as injustiças sociais: "Todavia, sabe-se que a insurreição revolucionária (...) gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se poderá combater um mal real à custa de uma desgraça maior" (nº 31). Embora ingentes e urgentes, as reformas econômicas e sociais poderiam ser frustradas ou mesmo contraproducentes, caso se fizessem precipitadamente: "É preciso que a obra a realizar progrida harmoniosamente, sob pena de destruir equilíbrios indispensáveis. Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objetivo. Uma industrialização precipitada pode abalar estruturas ainda necessárias, criar misérias sociais, que seriam um retrocesso humano" (nº 29).
No ponto planejamento familiar, explica que a família desempenha papel primordial na tarefa do desenvolvimento, pois fornece o hábitat natural de todo o homem. Preconizando algo de novo, a encíclica (nº 36 et seq.) declara que os poderes civis, no âmbito de sua competência, poderão difundir informações que esclareçam o público a respeito da explosão demográfica; poderão tomar providências oportunas nesse setor, contanto que respeitem as leis morais e a justa liberdade dos casais. No item alfabetização, bate na mesma tecla de que qualquer plano de desenvolvimento do homem há de ter como primeira meta a educação de base, pois é esta que torna o indivíduo apto a participar da vida da sociedade e dos seus grandes empreendimentos: "A fome de instrução não é menos deprimente do que a fome de alimentos; um analfabeto é um espírito subalimentado" (nº 35). Ao contrário, o homem que aprende a ler e escrever, chegando mesmo a adquirir formação profissional, descobre um vasto mundo de valores: em primeiro lugar, "encontra-se a si mesmo" (nº 15, 20, 84), depende menos de outrem e subsiste mais em si; além do quê, ganha consciência de que pode colaborar com os outros e progredir juntamente com a sociedade.
O humanismo integral da Populorum Progressio significa: promova-se o ser humano, tanto no setor material como no espiritual; os que carecem serão beneficiados recebendo; os que possuem o supérfluo serão engrandecidos dando. Assim fazendo, todos serão mais homens e estarão no reto caminho para Deus.
Jacques Maritain (1882-1973), notável filósofo neotomista, ao analisar a missão da atividade profana cristã em face do mundo e da cultura, foi enfático: "Ser-lhe-á preciso elaborar uma filosofia social, política e econômica que não fique somente nos princípios universais, mas que seja capaz de descer até às realizações concretas, o que supõe todo um vasto e delicado trabalho; já foi este trabalho iniciado, fixaram-lhe os princípios as encíclicas de Leão XIII e Pio XI" (Humanismo Integral, p. 95).
Paulo VI estava consciente de que os homens constam de alma e corpo, de tal modo que a alma se deve elevar a Deus mediante o instrumento do corpo. Julgava estar cumprindo um dever: o dever de tornar o evangelho presente a todas as situações do homem.
A segunda parte da Populorum Progressio trata do desenvolvimento solidário do gênero humano. Assim como o desenvolvimento da pessoa humana é integral, o dos povos é solidário; há de ser realizado mediante a colaboração de todas as nações. "O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo" (nº 66).
Na assistência aos povos, uma regra se impõe: "O supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres" (nº 49). Os ricos serão os primeiros beneficiados por tal norma; quem dá se nobilita, imitando de perto o próprio Deus (At 20, 25). Quem, ao contrário, "se obstina na avareza suscita o juízo de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüências imprevisíveis" (nº 49). "Por conseguinte, haja programas sistemáticos de âmbito internacional para distribuir entre os povos os bens da terra; auxílios ocasionais, dependentes apenas de boa vontade, não bastam para atender aos necessitados" (nº 50).
Escândalo intolerável é o esbanjamento de dinheiro, as despesas feitas por ostentação nacional ou pessoal, numa época em que tantas famílias se desesperam. "[Esse escândalo] Nós temos o dever de o denunciar. Queiram os responsáveis escutar-Nos, antes que seja tarde demais (nº 53).
Na eqüidade nas relações comerciais, observa que o mercado livre deve ser mantido dentro de limites que o tornam sempre justo e humano. É contra a exploração dos países mais desenvolvidos que se levanta a voz da consciência cristã (nº 57 e 61). Para isso é mister superar o obstáculo do nacionalismo.
O amor à pátria é legítimo. Quando porém se torna exclusivista, levando a esquecer ou menosprezar os demais membros da família humana, que é universal, torna-se nacionalismo. Este só pode ser nocivo tanto aos indivíduos como às coletividades, erguendo barreiras entre irmãos, solapando qualquer tentativa de colaboração duradoura entre eles (nº 62).
Outro empecilho é o racismo. Deve-se repudiar as formas internacionais de racismo, entre os quais o anti-semitismo, como os existentes no interior de um mesmo país, em que indivíduos e famílias são submetidos a tratamentos de exceção, tratamentos motivados exclusivamente por preconceitos de sangue e cor. Essas atitudes são opostas ao espírito cristão, pois todos os homens devem sentir-se filhos de Deus, solidários na construção da cidade de Deus em meio à cidade dos homens.
A caridade universal preconizada é a que se traduz pelo acolhimento e pela hospitalidade, pois os homens precisam uns dos outros, deixando sua terra natal em demanda de regiões estrangeiras. Uns emigram na qualidade de jovens estudantes, que vão procurar em nações desenvolvidas a ciência e a cultura. Muitos voltam competentes, mas destituídos do senso de Deus e dos valores transcendentais recebidos dos genitores.
Outros emigram como operários das fábricas ou dos campos, esperando receber em terra estranha melhor salário. Tais homens sofrem as angústias do corpo e da alma inerentes à sua condição de emigrantes afastados da família. A terceira categoria de viajantes é a daqueles que vão para países que não são o seu, a fim de dar (...): são técnicos, industriais, comerciantes, chefes ou representantes de grandes empresas. A sua condição de superioridade em terra alheia não os deve tornar menos justos nem menos humanos com os habitantes da região subdesenvolvida.
Paulo VI julga importante a criação de uma autoridade mundial, baseada sobre uma ordem jurídica universalmente reconhecida. Ao recomendar a instituição de uma autoridade mundial, lembra: "O dinamismo de um mundo que quer viver mais fraternalmente e que – apesar das suas ignorâncias e dos seus erros, e até dos seus pecados, das suas recaídas na barbárie das longas divagações fora do caminho da salvação – se vai aproximando lentamente, mesmo sem dar por isso, do seu Criador" (nº 79).
Termina exortando os leigos católicos a assumir a renovação da ordem temporal (nº 81). Aos Estadistas, educadores, publicistas, pensadores...concorrer para instaurar uma humanidade na qual todos os homens tenham a possibilidade de realizar-se em plenitude (nº 81-86). Aos jovens, a promoção integral dos seus semelhantes (nº 74).
Os direitos sociais na Octogesima Adveniens
Os documentos pontifícios foram acompanhando a evolução da história com precisão crescente e exprimem as principais sentenças do pensamento cristão.
Comemorando o 80º aniversário da Rerum Novarum, Paulo VI lançou, em 1971, a Octogesima Adveniens (Aproximando-se o Octogésimo...).
No início, o pontífice declara que não tenciona propor solução para todos os problemas do homem contemporâneo nem mesmo "formular uma solução única com valor universal" (nº 4). A procura de soluções concretas caberá a "cada comunidade cristã, com a ajuda do Espírito Santo... em diálogo com os demais irmãos cristãos e todos os homens de boa vontade" (idem).
A carta apostólica visa "dar um apoio aos homens em seus esforços para tomar em mãos e orientar o seu futuro" (nº 5); ela lhes fala baseada no Evangelho e, também, "na experiência viva da Tradição cristã através dos séculos" (nº 4 e 32).
A primeira parte faz um balanço dos novos problemas sociais. Enquanto Leão XIII tinha que se ocupar somente com as relações "patrão-operário", a nova carta circular do pontífice descortina vasto panorama de questões hoje abertas, tais como: A urbanização, ou seja, a aglomeração de multidões humanas em ambientes urbanos, onde as condições de vida moral e material são péssimas. "A promiscuidade nos alojamentos populares torna impossível um mínimo de intimidade"; compromete-se a união dos cônjuges; os filhos "fogem do lar demasiado exíguo e procuram na rua compensações e companhias que escapam a qualquer vigilância" (nº 11). A juventude (nº 13) necessita de diálogo (que, por motivos diversos, nem sempre é fácil). O lugar da mulher (nº 13), que se afirma na sociedade, nem por isso deve perder suas inconfundíveis características. Os trabalhadores (nº 14), com menção dos sindicatos e da "tentação" de impor, mediante a greve (que em determinadas circunstâncias é legítima), condições penosas demais para a economia, a vida social ou a política de um país. As vítimas das mudanças (nº 15) devem ser contempladas pelos princípios da justiça social – de modo especial, os "novos pobres", ou seja, os velhos e marginais de ordem diversa... os delinqüentes, criminosos, pederastas, psicodélicos, drogados e desadaptados de outros tipos... que se substituem sociologicamente ao proletariado industrial. As discriminações são devidas à "raça, origem, cor, cultura, sexo ou religião" (nº 16). O direito à emigração (nº 17), populações que se deslocam, necessitando de compreensão e auxílio de quem as recebe. A necessidade de se criarem empregos para quem procura trabalho, a fim de se evitarem a miséria e o parasitismo, não sendo lícito aos governos civis resolver tais problemas, empreendendo campanhas malthusianas compulsórias (nº 18). Os meios de comunicação social (imprensa escrita, falada e televisionada) são uma potência crescente, mas nem sempre a serviço da verdade (nº 20). Os ambientes em que vive o homem são não raro poluídos e pouco higiênicos (nº 21).
A segunda parte diz que esses problemas são penetrados e movidos por aspirações e correntes de idéias. As primeiras mostram anseios de igualdade e de participação, decorrentes da dignidade e da liberdade do homem (nº 22). Esses anseios são também direitos. Não basta agir na ordem jurídica, é preciso cultivar o bem-querer e o senso da fraternidade (nº 23). O regime democrático (nº 24 e 25) é necessário, mas nenhum dos modelos de democracia até hoje em prática trouxe plena satisfação – daí a exigência de ulteriores buscas da autêntica democracia. As ideologias, modo de pensar unilateral, partidário, deformado e deformador, redundam em ditaduras do espírito e alienação do homem (nº 24 e 29). O marxismo, vinculado a uma filosofia materialista, atéia, é incompatível com o cristianismo, tende à luta de classes e à instauração de regime totalitário e violento (nº 31). A ideologia liberal ou o "liberalismo filosófico é uma afirmação errônea do indivíduo" (nº 35), razão por que o cristão deve afirmar os valores do Evangelho e a sua contribuição característica e inconfundível para a transformação positiva da sociedade (nº 36). As utopias contemporâneas (nº 37) renascem hoje sob o nome de egoísmo, violências e materialismo desencadeados pelo socialismo burocrático, pelo capitalismo tecnocrático e pela democracia autoritária. Utopia é o ideal sem lugar (ouk tópos), irrealizável. Muitos hoje acreditam nos progressos da ciência e da técnica como estímulo da paz. O filósofo Herbert Marcuse (1898-1979) contestou isso, apregoando o amor, fonte inspiradora da juventude que protesta de maneira excêntrica (hippies). Nas ciências humanas ou antropológicas (nº 38-40) o homem procura conhecer-se cada vez mais. A encíclica reconhece sua importância, mas preconiza um humanismo integral ou uma visão global do homem. Refletindo sobre a ambigüidade do progresso (nº 41), o papa diz que é essencial atender aos valores da cultura, do serviço recíproco, da boa harmonia e colaboração, enfim, à abertura do homem para os outros homens e para Deus.
Quando olhamos para as origens da nossa Constituição de 1988, vemos que ela consiste num texto razoavelmente avançado e moderno, com inovações de relevante importância para o constitucionalismo brasileiro e até mundial. Difícil, no entanto, é aceitar que o capítulo dos direitos sociais (CF, arts. 6º-11) tenha aparecido 17 anos depois da existência da Octogesima Adveniens sem abordar nenhum dos novos problemas sociais atinentes ao homem e à sociedade.
A terceira parte da encíclica interpela principalmente os cristãos perante os novos problemas. Nas diretrizes concretas, não se limita a recordar alguns princípios gerais, mas sugere linhas de ação (nº 42).
O primeiro tópico é a necessidade de procurar maior justiça. Nas comunidades nacionais como no plano internacional, os pactos e acordos devem visar o bem comum e não interesses meramente particulares (nº 43 e 44). Falando da libertação exterior e interior, frisa que hoje em dia os homens aspiram a libertar-se da necessidade e da dependência. Com a autêntica libertação, superando o egoísmo, é que o homem conquista a sua verdadeira liberdade; sem a libertação interior, as ideologias e revoluções apenas o transferirão do jugo de um senhorio para o de outro dominador, pois, "instalados por sua vez no poder, os novos patrões rodeiam-se de privilégios, limitam as liberdades e instauram novas formas de injustiça" (nº 45).
É preciso passar da economia à política. Os interesses econômicos e financeiros não raro comportam o risco de absorver excessivamente forças e liberdade; daí a obrigação de valorizar-se uma sadia ação política. O poder político tem por finalidade o bem comum do povo. Compete-lhe criar condições para que o homem atinja o seu bem autêntico e completo, inclusive o seu fim espiritual, através de sério testemunho de fé, mediante um serviço eficaz e desinteressado aos homens (nº 46). A participação dos cristãos nas responsabilidades públicas deve ser a de assumir as suas partes pessoais, a fim de que as decisões e opções que afetam as empresas, a vida pública e política sejam orientadas ao bem comum e à constituição de sociedades solidárias e fraternas (nº 47).
No apelo à ação, a carta apostólica é muito objetiva:
Inicialmente diz que é aos cristãos leigos (não padres-operários) que cabe intervir nas estruturas deste mundo, a fim de imprimir-lhes caráter mais humano e cristão (nº 48). Depois, alerta que não basta recordar princípios e proferir denúncias. Cada cristão procure avaliar o seu quinhão de responsabilidade nos males que afligem a sociedade contemporânea e trate de realizar a sua conversão interior ou renovação pessoal, que redundará em mais eficaz contribuição para o bem comum. Essa humildade fundamental de cada um preservará de intolerância ou sectarismo os cristãos e lhes alentará a esperança (nº 48). Em terceiro lugar, incita o cristão a guardar sua independência: fuja das ambigüidades e "evite comprometer-se com colaborações condicionais e contrárias aos princípios de autêntico humanismo" (nº 49). Em quarto lugar, nas diferentes situações sociopolíticas de nossos tempos, o cristão tem o direito de fazer opções diferentes. "Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes" (nº 50). Sendo legítimo pensar diferentemente, não se deve no entanto romper a unidade que os deve caracterizar perante o mundo. "Cada um deve ter muito a peito examinar-se a si mesmo e fazer brotar em si aquela liberdade verdadeira segundo Cristo, que abra para uma visão universal no meio mesmo dos condicionamentos mais particulares" (nº 50). Finalmente, é enfático o documento em afirmar que as responsabilidades do momento presente cabem não só aos indivíduos, mas também às organizações cristãs. Estas devem atuar de maneira específica, "fazendo refletir... as exigências concretas da fé cristã" (nº 51).
A Octogesima Adveniens muito insiste em que os cristãos colaborem generosamente com seus semelhantes na construção de um mundo novo. Sugere que o façam de modo a dar uma contribuição caracterizada e inconfundível no serviço dos irmãos.
O documento de Paulo VI sobre a justiça e paz no mundo de hoje representa um avanço e um programa válido na elaboração da filosofia ético-social cristã.
Os direitos sociais na Laborem Exercens
João Paulo II, em 15/09/81, abordou o problema do trabalho humano, considerando as suas mais diversas facetas no mundo contemporâneo. "Chave da questão social" (nº 3), ele é tido como "uma das características que distinguem o homem das demais criaturas, cuja atividade, relacionada com a conservação da própria vida, não se pode chamar de trabalho" (proêmio).
Nos tempos de Leão XIII, a questão do trabalho coincidia com a do relacionamento entre patrões e operários; hoje ele suscita conotações muito variadas. A humanidade acha-se no fim de um ciclo de civilização, que foi diferençado pelo consumo do carvão e do petróleo e está iniciando novo período, no qual a eletrônica, a automação e seus diversos produtos darão nova cadência às atividades do homem e revolverão profundamente os tipos e as condições do trabalho humano (nº 1). Ciente disto, João Paulo II quis focalizar, do ponto de vista ético, o presente e o futuro do homem, mediante a consideração do trabalho humano, na encíclica Laborem Exercens (Exercendo o trabalho).
O trabalho objetivo seria o trabalho mercadoria, como valor impessoal ou como coisa; o trabalho subjetivo é obra de uma pessoa que, através da sua luta cotidiana, se vai realizando e cumprindo o grande desígnio do Criador. Este aspecto confere a todo e qualquer tipo de trabalho uma dimensão valiosa, não se podendo exaltar apenas o trabalho intelectual ou liberal em detrimento do manual ou braçal (nº 5 e 6).
O Filho de Deus feito homem houve por bem trabalhar como carpinteiro. Torna-se assim "patente que o fundamento para determinar o valor do trabalho humano não é, em primeiro lugar, o gênero do trabalho que se realiza, mas o fato de aquele que o executa ser uma pessoa. As fontes da dignidade do trabalho devem ser procuradas não na sua dimensão objetiva, mas sim na sua dimensão subjetiva" (nº 6). Daí uma conclusão de natureza filosófica ética: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. Isto significa que todos se devem empenhar para que o homem seja engrandecido através do seu regime de trabalho, excluída toda e qualquer forma de produção que reduza o homem a mero instrumento da produtividade.
Trabalho e capital têm estado em conflito desde os inícios da questão social. O capital mais de uma vez sufocou o mundo do trabalho, reduzindo os operários a condições extorsivas e contrárias à dignidade humana. O marxismo insurgiu-se contra tal processo, apregoando a coletivização dos meios de produção. A solução marxista, porém, é ilusória, pois o grupo de detentores dos meios de produção, que constituem o Estado, pode exercer um monopólio administrativo tal que desrespeite os direitos fundamentais dos demais cidadãos"(nº 7).
"Deste modo, pois, o simples fato de os meios de produção passarem para a propriedade do Estado no sistema coletivista não significa, só por si, a socialização (ou a posse comunitária e justa) desta propriedade" (nº 14).
Os pontífices sempre ensinaram a prioridade do trabalho sobre o capital. O trabalho é a expressão da grandeza e da dignidade da pessoa humana. É também a continuação da obra do Ser Superior. O trabalho, utilizando os elementos entregues ao homem por Deus, produz os seus instrumentos, cada dia mais sofisticados, incluindo os recursos da técnica. Esses instrumentos, cujo conjunto constitui o que se chama de "capital", são subordinados ao trabalho, porque efetuados pelo trabalho. O capital nasceu do trabalho e é portador das marcas do trabalho humano. Mister é pôr em relevo o primado do homem no processo de produção ou o primado do homem em relação às coisas. O capital não é senão um conjunto de coisas, ao passo que o homem, como sujeito do trabalho, independentemente do trabalho que realiza, é pessoa (n º 12 e 13). Esta visão humanista é deturpada quando se considera o trabalho unicamente segundo a sua finalidade econômica.
O erro do materialismo é afirmar o primado dos valores materiais, subordinando à matéria os valores espirituais e pessoais (o agir do homem, os valores morais e semelhantes). Esse materialismo econômico originou-se na filosofia socioeconômica do século XVIII, começo da industrialização, que visava multiplicar as riquezas materiais, perdendo de vista o homem, a quem tais meios devem servir. Isto só pode ser suplantado com a firme convicção do primado da pessoa sobre as coisas e do trabalho do homem sobre o capital (entendido como conjunto dos meios de produção).
Jeremias Bentham (1748-1832) foi um moralista inglês que professou abertamente um utilitarismo que do hedonismo epicureu pouco difere. A utilidade do indivíduo e a da sociedade são as únicas normas morais. Dever do moralista é classificar os prazeres em série hierárquica, a fim de melhor aquilatar o valor moral das ações. Ficou célebre a sua comparação, utilizando-se de dois círculos concêntricos, dos quais a circunferência representativa do campo da moral se mostra mais ampla do que a do direito.
Isso deve ter inspirado João Paulo II, ao abordar questões que abrangem tanto o direito como a ética e a moral. Defende o direito à propriedade particular (nº 14 e 15), mesmo quando se trata dos meios de produção, observando que ela tem uma finalidade social ou deve servir ao bem comum da sociedade. Os bens de propriedade particular não devem ser possuídos como fim ou para possuir nem devem ser possuídos contra o trabalho, pois o único título que legitima a sua posse é que sirva ao trabalho e, servindo ao trabalho, tornem possível a participação de todos os homens nos bens que o Criador deixou para todos.
Inaceitável portanto é o capitalismo "rígido", que defende o direito à propriedade privada dos meios de produção, sem apontar para a necessidade de que o uso de tais bens sirva aos interesses comuns. A rejeição do capitalismo liberal não implica recusa da propriedade particular. Igualmente, a socialização de certos meios de produção não quer dizer automaticamente que a sociedade venha a possuir em comum os meios de produção, pois não raro eles ficam em poder de um pequeno grupo de homens que representam o Estado; estes não são os proprietários, mas procedem como se fossem os detentores da propriedade – o capitalismo dos particulares torna-se assim o capitalismo do Estado e dos governantes.
Empregador direto é aquela pessoa ou aquela instituição com as quais o trabalhador estipula diretamente o contrato de trabalho segundo condições determinadas (nº 16). Empregador indireto são as pessoas, as instituições de diversos tipos, bem como os contratos coletivos de trabalho e os princípios de comportamento que, estabelecidos por essas pessoas ou instituições, determinam todo o sistema socioeconômico ou dele resultam (nº 17).
O Estado é o empregador indireto por excelência. Compete a ele vigiar para que se observem as normas da justiça nas relações entre empregador direto e trabalhador. Refletindo sobre o desemprego, merece especial atenção "um fato desconcertante de imensas proporções: enquanto, por um lado, importantes recursos da natureza permanecem inutilizados, há, por outro lado, massas imensas de desempregados e subempregados e multidões ingentes de famintos". Esse fato demonstra que ocorrem falhas que devem ser reparadas (nº 18). Lamentavelmente, o desemprego se dá também entre os intelectuais, que obtêm um diploma de estudos superiores, desvalorizando-se a instrução em grau superior, enriquecimento importante da pessoa humana (nº 8).
Referindo-se ao trabalho da mulher, a encíclica apregoa o chamado salário-família, "salário único, atribuído ao chefe de família e que seja suficiente para as necessidades da família, sem que a esposa seja obrigada a assumir um trabalho remunerado fora do lar" (nº 19). Daí ser necessário aplicar-se à revalorização das funções maternas, dos trabalhos que a estas andem ligados e à necessidade de amor e carinho que têm os filhos. "Reverterá em honra para a sociedade o tornar possível à mãe cuidar dos seus filhos e dedicar-se à educação deles, segundo as diferentes necessidades da sua idade" (nº 19).
Valorizando as funções da maternidade, a carta apostólica está longe de mostrar-se avessa ao trabalho da mulher fora do lar; ao contrário, aceita-o e pede que não haja discriminação em detrimento da mulher, desde que esta se ache habilitada para ocupar determinado emprego. O papa apenas deseja que a mulher "não se veja obrigada a pagar a própria promoção com a descaracterização da sua feminilidade e em prejuízo da família, na qual a mulher, como mãe, tem papel insubstituível" (nº 19). É para desejar, portanto, não seja menos valorizada do que as outras a mulher que opta prioritariamente pelos deveres da maternidade e, por isso, não procura trabalho fora de casa; seja, pois, o trabalho na sociedade estruturado de tal modo que a mãe-de-família obrigada a educar os filhos não se veja constrangida a sair de casa para ganhar o pão cotidiano ou para completar o orçamento doméstico.
A visão política de nossos constituintes poderia ter sido mais moderna e avançada, se tivessem tido contato com o pensamento de João Paulo II.
O trabalho dos campos, além de ser fisicamente extenuante, é pouco apreciado socialmente, a ponto de se sentirem os camponeses marginalizados pela sociedade; daí o seu êxodo, em massa, para as cidades, onde as condições de vida são por vezes ainda mais desumanas. Mais: "em certos países em via de desenvolvimento, há milhões de homens que se vêem obrigados a cultivar as terras de outros e que são explorados pelos latifundiários, sem esperança de... poderem chegar à posse nem sequer de um pedaço de terra... Não existem formas de proteção legal para a pessoa do trabalhador agrícola e para a sua família nos casos de velhice, doença ou falta de trabalho. Longas jornadas de duro trabalho físico são pagas miseramente. Terras cultiváveis são deixadas ao abandono pelos proprietários; títulos legais para a posse de um pequeno pedaço de terra, cultivado por conta própria há anos, são preteridos ou ficam sem defesa diante da fome da terra de indivíduos ou de grupos mais potentes" (nº 21).
Diante de tais falhas, os homens de bem tomam consciência da necessidade de promover especialmente a dignidade do trabalho agrícola, pelo qual o homem de maneira expressiva submete a terra recebida de Deus como dom e afirma o seu domínio sobre o mundo visível (nº 21).
Outro item é o trabalho dos emigrantes (nº 23). É o caso das pessoas que deixam a pátria de origem para procurar trabalho em outro país.
Embora todo o homem tenha o direito de emigrar, tal realidade acarreta situações que a ética cristã deve levar em conta. O emigrante não deve ser constrangido, em terra estrangeira, a aceitar condições de trabalho injustas, principalmente quando confrontadas com a dos trabalhadores nativos do país que o hospeda; ser explorado financeira ou socialmente; sofrer discriminação por motivos de nacionalidade, religião ou raça. Seria desejável que todo o homem pudesse encontrar em sua pátria as condições de trabalho suficientes e justas que lhe permitissem contribuir para o aumento do bem comum no seu próprio país.
Outro problema que se impõe a quem estuda o trabalho é a situação dos deficientes (nº 22). "A pessoa que tem qualquer deficiência é um sujeito dotado de todos os seus direitos, deve facilitar-se-lhe a participação na vida da sociedade em todas as dimensões e a todos os níveis que sejam acessíveis para as suas possibilidades. A pessoa deficiente é um de nós e participa plenamente da mesma humanidade que nós" (idem).
Ao tratar dos sindicatos e greves (nº 20), frisa o pontífice que entre os direitos dos trabalhadores está o de se associarem em sindicatos, com a finalidade de defender os justos interesses da sua vida profissional. "O trabalho tem como característica, antes de mais nada, unir os homens entre si, e nisto consiste a sua força social: a força para construir uma comunidade" (idem). A tutela dos justos direitos do trabalhador pode recorrer à tática da greve; ela é legítima como recurso extremo e dentro dos devidos limites.
Se Sua Santidade julga seu dever pronunciar-se sobre o trabalho numa perspectiva ética (nº 24-27), sente-se também obrigado a promover a espiritualidade do trabalho, apta a ajudar todos os homens a se aproximarem de Deus através da sua labuta cotidiana.
No primeiro capítulo do Gênesis, o homem encontra o primeiro "evangelho do trabalho", que é a participação na obra do Criador. O texto bíblico aponta o trabalho como continuação da obra do Criador. A passagem bíblica (Gn 1, 1-2, 4a) tem em mira chamar a atenção para o significado profundo do trabalho que o homem, imagem e semelhança de Deus, realiza numa sociedade (nº 25).
Igualmente, a espiritualidade do trabalho visa a participação na Páscoa de Cristo (nº 26). "Ele próprio, homem do trabalho, do trabalho artesanal como Jesus de Nazaré" (idem), que, em suas parábolas, se refere a diversos tipos da atividade humana: o pastor, o agricultor, o médico, o semeador, o amo, o servo, o feitor, o pescador, o comerciante, o operário... Fala também das atividades exercidas pelas mulheres, como alude também ao trabalho dos estudiosos.
O apóstolo Paulo dedicava-se à confecção de tendas (At. 18, 3) e formulou o princípio categórico: "Quem não quer trabalhar também não há de comer" (2 Ts 3, 10).
"O homem veio mais por aquilo que é do que por aquilo que tem. Do mesmo modo, tudo o que o homem faz para conseguir mais justiça, uma fraternidade mais difundida e uma ordem mais humana nas relações sociais excede em valor os progressos técnicos. Com efeito, tais progressos podem proporcionar a base material para a promoção humana, mas, por si sós, de modo nenhum são capazes de a realizar" (nº 26).
Os direitos sociais na Sollicitudo Rei Socialis
Vinte anos depois de promulgada a encíclica Populorum Progressio de Paulo VI e dada a sua importância, João Paulo II quis retomar as suas grandes linhas e fazê-las presentes nos tempos atuais.
A Sollicitudo Rei Socialis (A solicitude ou o cuidado da coisa social), de 1987, é um documento caracterizado tanto pela fidelidade do diagnóstico do mundo atual quanto pela profundidade dos princípios e das diretrizes que propõe.
Fazendo um prognóstico do panorama do mundo contemporâneo (nº 11-26), diz que o desenvolvimento dos povos, preconizado com realismo pela carta apostólica de 1967, está muito longe de sua realização (nº 12). "Em linhas gerais... não se pode negar que a situação do mundo atual, sob o ponto de vista do desenvolvimento, nos deixa uma impressão prevalentemente negativa" (nº 13). Os milhões e milhões de homens, mulheres e crianças que atualmente sofrem miséria no mundo inteiro atestam eloqüentemente a distância entre o ideal e a realidade.
Entre os pontos negativos do momento presente, o Santo Padre enumera alguns "índices genéricos, sem excluir outros específicos" (nº 13).
O primeiro é o fosso permanente, e muitas vezes crescente, entre o Norte desenvolvido e o Sul do globo em vias de desenvolvimento. É inegável que acima da linha do Equador, de modo geral, são muito mais fartas as condições de alimentação, higiene, saúde, habitação, trabalho e duração de vida. Ora, é precisamente no hemisfério sul que vive a maior porção do gênero humano. As diferenças entre Norte e Sul vão-se acentuando aceleradamente.
Essas diferenças socioeconômicas envolvem um conteúdo moral, ou seja, responsabilidades e deveres de consciência (nº 14).
O segundo são o analfabetismo e a dificuldade ou impossibilidade de ter acesso aos níveis superiores de instrução. Isso discrimina os membros da sociedade (nº 15).
O terceiro é a sufocação do direito de iniciativa econômica. A pretensa "igualdade" de todos na sociedade destrói o espírito de iniciativa ou a subjetividade criadora do cidadão. Resulta daí um nivelamento por baixo, que monopoliza a totalidade dos meios de produção. Isso acontece também com inteiras nações colocadas na dependência de outras (nº 15).
O quarto é a negação ou a limitação de outros direitos humanos, como o direito à liberdade religiosa, à liberdade de associação, à de constituir sindicatos, o que empobrece a pessoa humana tanto, se não mais, quanto a privação de bens materiais (nº 15).
O quinto é a crise de habitação (alojamento). Milhões de seres humanos estão privados de morada conveniente ou mesmo de qualquer tipo de habitação (nº 17).
O sexto são o desemprego e o subemprego. As fontes de trabalho contraem-se, em detrimento de muitos jovens. A explosão demográfica agrava esse problema. Tal situação contribui para a perda do respeito que cada pessoa, homem ou mulher, deve a si mesma (nº 18).
O sétimo é a dívida internacional. Para pagar seus débitos, os povos subdesenvolvidos são obrigados a exportar os capitais que seriam necessários para melhorar ou, ao menos, para manter o seu nível de vida (nº 19).
O oitavo é a interdependência das nações entre si; fato compreensível, mas que, quando desligado de exigências éticas, provoca efeitos negativos até nos países ricos (nº 17).
O nono é a produção e o comércio de armas, especialmente das atômicas. Isso constitui grave desordem no mundo atual, pois esses recursos deveriam ser utilizados para aliviar a miséria das populações indigentes... "As armas... circulam com liberdade quase absoluta nas várias partes do mundo" (nº 24).
O décimo são os milhões de refugiados que manifestam os desequilíbrios e conflitos do mundo atual. "A tragédia desses resultados reflete-se no rosto arrasado de homens, mulheres e crianças que não conseguem mais encontrar um lar" (nº 24).
O décimo primeiro é o terrorismo, chaga do mundo de hoje. Implica o propósito de matar e destruir homens e bens sem distinção e de criar um clima de insegurança e pavor, não raro recorrendo à captura de reféns (nº 24).
O décimo segundo é o problema demográfico. No hemisfério sul a explosão populacional cria dificuldades ao desenvolvimento, ao passo que na parte setentrional se dá o inverso: há quebra de índices de natalidade biologicamente. "Não está demonstrado que todo o crescimento demográfico é incompatível com um desenvolvimento ordenado" (nº 25).
As campanhas governamentais contra a natalidade são financiadas com freqüência por capitais provenientes do estrangeiro e envolvem desrespeito à liberdade das pessoas interessadas, reiteradamente submetidas a intoleráveis pressões (nº 25).
No diagnóstico internacional do mundo contemporâneo, João Paulo II aponta também os seus pontos positivos.
O primeiro é a crescente consciência da dignidade própria da pessoa humana e, conseqüentemente, dos povos como tais. Em virtude da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela ONU, em 1948 (The Universal Declaration of Human Rights), há certa preocupação com os direitos humanos e com as suas violações (nº 26).
O segundo é que se intensifica também a convicção de que os indivíduos e os povos são naturalmente solidários entre si; os homens estão ligados por uma vocação comum, que há de ser atingida conjuntamente, caso se queira evitar a catástrofe para todos. O bem e a felicidade a que aspira o gênero humano não se podem obter sem o esforço e a aplicação de todos, o que implica a renúncia ao próprio egoísmo (idem).
O terceiro é a verificação do anseio pela paz, com a tomada de consciência de que este é indivisível; ou será algo de todos ou não será de ninguém.
O quarto que menciona é a preocupação ecológica. Os homens vão reconhecendo os limites dos bens disponíveis e a necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza, em vez de os sacrificar a concepções demagógicas (idem).
No quinto, vêem-se muitos estadistas, políticos, economistas, cientistas... não raro inspirados pela sua fé religiosa, que se empenham generosamente por encontrar o remédio para os males deste mundo. Para isso contribuem também algumas organizações internacionais ou regionais e certas associações privadas, de caráter mundial (idem).
Em sexto lugar, algumas nações do Terceiro Mundo já conseguem alcançar certa auto-suficiência alimentar ou um grau de industrialização que lhes permite viver dignamente e assegurar fontes de trabalho à população ativa (idem).
Assim, nem tudo é negativo no mundo contemporâneo. A consciência moral ainda está viva, principalmente no tocante aos grandes problemas humanos.
O pontífice indaga: quais as causas do desenvolvimento atual? São muitas e complexas, merecendo relevo as de índole política.
Após a II Guerra Mundial (1939-1945), constituíram-se dois blocos contrapostos (Leste e Oeste), designados como capitalismo liberal e coletivismo marxista. A contraposição ideológica evoluiu no sentido de contraposição militar, dando origem a dois blocos de potências armadas, cada um deles desconfiando e receoso da prevalência do outro. Daí se segue um estado de guerra fria, com ameaça de guerra aberta e total.
Cada qual dos dois blocos traz no seu âmago a tendência ao imperialismo ou a novas formas de colonialismo, principalmente em relação aos povos recém-emancipados do domínio estrangeiro; muitos deles, receando tornar-se vítimas de um neocolonialismo, agruparam-se no chamado "Movimento internacional dos Países Não-alinhados", que visa a afirmar o direito de cada nação à própria identidade, à independência e à segurança (nº 20-22).
Esboçando o panorama do mundo contemporâneo, o texto da encíclica nos apresenta os traços de um autêntico desenvolvimento humano (nº 27-34).
Inicialmente verifica que ele não é um processo retilíneo, como se caminhasse para uma espécie de progresso indefinido. As duas últimas guerras mundiais, destruindo multidões e valores culturais, dissuadem de um otimismo mecanicista (nº 27).
Também percebe que não se limita ao setor econômico. A felicidade exige também o cultivo dos valores morais. No fenômeno do superdesenvolvimento há "excessiva disponibilidade de bens materiais em favor de algumas camadas sociais; isto torna os homens escravos da posse e do gozo imediato, sem outro horizonte que não seja a multiplicação ou a contínua substituição das coisas que já se possuem por outras mais perfeitas. É a civilização do consumo ou o consumismo, causa de muitos desperdícios e estragos. Um objeto que se possui e já está superado por outro mais perfeito é posto de lado, sem se levar em conta o possível valor permanente que ele tem em si mesmo ou para benefício de outro ser humano mais pobre" (nº 28). Ter bens materiais "não aperfeiçoa o ser humano e não contribui para o enriquecimento do seu ser, ou seja, para a realização da sua vocação humana como tal" (idem). O ter deve estar subordinado ao ser do homem ou à necessidade de tornar-se cada vez mais lúcida a imagem de Deus (Gn 1, 26).
Em seguida acrescenta a tudo isso a dimensão religiosa do autêntico desenvolvimento, que tende a levar o homem a vencer o pecado e encaminhar todas as coisas para a plenitude do Reino de Deus sob a chefia de Jesus Cristo (1 Cor 15, 24). Este, o aspecto teológico do desenvolvimento (nº 30 et seq..). O imperativo de empenhar-se pelo desenvolvimento vale para todos e cada um dos indivíduos humanos e das nações. Assim é que os católicos devem colaborar com outras comunidades religiosas cristãs e não cristãs (nº 32).
Finalmente, o autêntico desenvolvimento compreenderá sempre o respeito aos direitos dos homens e das sociedades dentro de um quadro da solidariedade, que jamais sacrificará o próximo a interesses egoístas ou particulares. É a consciência moral que o pede (nº 33 et seq.).
João Paulo II é enfático, ao afirmar que o desenvolvimento dos povos não se deve apenas a fatores econômicos e políticos, mas a razões de índole moral. Por essa razão, propõe uma análise teológica dos tempos modernos (nº 35).
Um mundo dividido em blocos mantidos por ideologias rígidas, onde dominam diversos fatores de imperialismo, é um mundo submetido a "estruturas de pecado". O plano divino acerca da humanidade é inspirado por justiça e misericórdia, que solicita dos homens o cumprimento dos deveres referentes ao próximo. A sua não observância (Ex 20, 12-17; Dt 5, 16-21) ofende a Deus e prejudica o próximo, introduzindo no mundo obstáculos que interferem no desenvolvimento dos povos (nº 36).
As atitudes que mais causam as estruturas pecaminosas parecem ser duas: a avidez exclusiva do lucro e a sede do poder, sempre a qualquer preço ou de maneira absoluta – uma destas atitudes está indissoluvelmente unida à outra. "Se certas formas modernas de imperialismo se considerassem à luz destes critérios morais, descobrir-se-ia que, por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia" (nº 37).
Para o pontífice, estamos diante de um mal moral, que produz "estruturas de pecado". O caminho para superá-lo é o da conversão. No campo social, implica a consciência crescente da interdependência entre os homens e as nações, da qual procede a virtude da solidariedade – uma determinação firme de empenhar-se pelo bem comum. Trata-se de perder-se em benefício do próximo, em vez de o explorar e oprimir (nº 38).
Paralelamente, a solidariedade deve unir as nações entre si, a fim de instaurar-se um sistema internacional que se apóie no fundamento da igualdade de todos os povos e seja regido pelo indispensável respeito às suas legítimas diferenças. Quanto mais se chegar perto deste ideal, verificar-se-á que "a paz é o fruto da justiça" (Pio XII) e que "o desenvolvimento é o novo nome da paz" (Paulo VI). Desse modo, a justiça gera a paz e a paz, o desenvolvimento (nº 39).
A solidariedade assim apregoada redunda em caridade (Jo 13, 35). Admiráveis testemunhos se vêem nos santos católicos. S. Pedro Claver pôs-se a serviço dos escravos em Cartagena das Índias; São Maximiliano Maria Kolbe ofereceu a vida em favor de um prisioneiro que lhe era desconhecido, no campo de concentração de Auschwitz (nº 40).
Sua Santidade não tem soluções técnicas para o problema do subdesenvolvimento; interessa-se para que a dignidade do homem seja devidamente respeitada e promovida. A sua doutrina social é a aplicação das verdades da fé e da tradição eclesial às complexas realidades do homem na sociedade nacional ou no contexto internacional (nº 41).
A opção ou amor preferencial pelos pobres abarca as "imensas multidões de famintos e de mendigos, sem teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor" (nº 42), como, aliás, também os que são privados dos seus direitos fundamentais, como são o direito à liberdade religiosa e o direito à iniciativa econômica.
A preocupação com os pobres deve chegar a uma série de reformas necessárias, como a do sistema internacional de comércio, a do sistema monetário e financeiro mundial, a da estrutura das organizações internacionais existentes no quadro de uma ordem jurídica internacional, a questão dos intercâmbios de tecnologias e do seu uso apropriado (nº 43).
O desenvolvimento requer também espírito de iniciativa da parte dos próprios países que necessitam dele, sem estar à espera de tudo dos países mais favorecidos. É recomendável às nações menos aquinhoadas favorecer a alfabetização e a instrução de cada cidadão, bem como o incremento da produção alimentar. Isso, sem falar na necessidade da reforma de algumas instituições políticas, para substituir regimes corruptos ou ditatoriais por regimes democráticos (nº 44).
Concluindo (nº 46-49), lembra que os povos e indivíduos aspiram à libertação de qualquer forma de escravidão, o que é nobre e válido.
Em síntese, o desenvolvimento meramente econômico acaba por escravizar mais ainda o homem. O autêntico desenvolvimento há de levar em conta as dimensões culturais, transcendentais e religiosas da pessoa humana. O obstáculo principal para chegar-se a tal idéia é o pecado fortalecido pelas estruturas que ele suscita (nº 46).
Os direitos sociais na Centesimus Annus
A encíclica Centesimus Annus, comemorando o centenário da Rerum Novarum, de Leão XIII, foi assinada por João Paulo II, em 1º/05/1991. O texto compreende, além da introdução, seis capítulos, que olham para o passado (as coisas novas do fim do século XIX), para o presente (as coisas novas do fim do século XX) e para o futuro (as coisas novas do terceiro milênio).
Abordando os traços característicos da Rerum Novarum, o papa diz que Leão XIII se voltou para a "questão operária", isto é, para a triste condição dos trabalhadores sujeitos às arbitrariedades dos patrões no tocante a salários, horas e condições de trabalho, repouso etc. Sem dúvida que a revolução industrial, vivida por capitalistas liberais, cujo grande interesse era o lucro, os sacrificava muito. Para solucionar o problema, o socialismo propunha a coletivização dos meios de produção ou a transferência do capital para o Estado, o que mais prejudicaria e despojaria os obreiros.
Após o brado de alerta e as intervenções de clérigos e leigos do século XIX, Leão XIII resolveu propor na encíclica o pensamento católico sobre o assunto: o trabalho não é mercadoria, mas é expressão da pessoa humana, que tem dignidade inconfundível, e, por isso, merece salário justo, suficiente para manter o trabalhador e sua família; merece repouso correspondente à fadiga acarretada; o proletário deve poder associar-se aos seus colegas de luta em organizações posteriormente ditas "sindicatos"; o Estado há de favorecer a classe operária, garantindo o respeito aos seus direitos. "A ninguém escapa a atualidade dessas reflexões. Será conveniente... ter presente que aquilo que serve de linha condutora da encíclica e de toda a doutrina social da Igreja é a correta concepção da pessoa humana e do seu valor único" (nº 11).
Caminhando rumo às "coisas novas" de hoje, o pontífice afirma: "A comemoração da Rerum Novarum não seria adequada se não olhasse também para a situação de hoje" (nº 12).
Leão XIII, de certo modo, já previra os acontecimentos que marcariam os últimos cem anos, entre os quais os dois últimos meses de 1989 e os dois primeiros meses de 1990, quando se deu a queda do socialismo nos países da Europa central e oriental. Mesmo sem conhecer um Estado socialista forte e poderoso, o papa predisse o malogro do socialismo. Por que terá desmoronado?
"O erro fundamental do socialismo é de caráter antropológico... Considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico-social" (nº 13). Essa errônea concepção do homem tem sua causa primeira no ateísmo, e o ateísmo prende-se ao racionalismo ou iluminismo do século XVIII, quando os pensadores conceberam o homem de maneira mecanicista.
Da mesma raiz ateísta deriva-se a escolha dos meios de ação própria do socialismo, que é a luta de classes. Condenável por desrespeitar a dignidade da pessoa humana, ela abstrai de considerações éticas e jurídicas, sem excluir o uso da mentira e o recurso ao terror.
O ateísmo, que levou ao desprezo de Deus e do próximo, atingiu as suas conseqüências extremas no trágico ciclo das duas guerras mundiais de 1914-1918 e 1939-1945. "Foram duas guerras ditadas pelo militarismo e pelo nacionalismo exacerbado e pelas formas de totalitarismo a esses ligadas, e guerras derivadas da luta de classes, guerras civis e ideológicas. Sem a terrível carga de ódio e rancor, acumulada por causa de tanta injustiça..., não seriam possíveis guerras de tamanha ferocidade..., em que não se hesitou em violar os direitos humanos mais sagrados, sendo planificado e executado o extermínio de povos e grupos sociais inteiros. Recorde-se aqui, em particular, o povo hebreu, cujo destino terrível se tornou um símbolo da aberração a que pode chegar o homem quando se volta contra Deus" (nº 17).
Analisando as “coisas novas” de hoje, o pontífice verifica que, desde 1945, as armas silenciaram no continente europeu. A paz foi mantida à custa de louca corrida aos armamentos, que absorve os recursos necessários para o equilíbrio da economia e para auxiliar as nações mais desfavorecidas. O progresso científico e tecnológico, que deveria contribuir para o bem-estar do homem, acaba se transformando num instrumento de guerra. Sobre o mundo inteiro pesa a ameaça de guerra atômica, capaz de provocar a extinção da humanidade.
Além do socialismo e de sua odisséia, na história dos povos contemporâneos, registram-se três outras configurações da sociedade: A primeira é o Estado de Segurança Nacional, que visa controlar toda a sociedade; exaltando o poder do Estado, corre o risco de destruir a liberdade e os valores dos cidadãos. Outra réplica do marxismo é a sociedade do conforto ou do consumo, que pretende mostrar como o livre mercado pode melhor atender ao homem do que a economia do comunismo; nega, assim, os valores da moral, do direito, da cultura e da religião, reduzindo o homem ao plano da satisfação das necessidades materiais. A terceira é o processo da descolonização; vários países adquirem ou reconquistam a independência, mas ainda estão no início do caminho para a autêntica soberania – ainda são controlados por potências estrangeiras nos setores da economia, da tecnologia e da política.
Tentando contribuir para a reestruturação da ordem social, após a II Guerra Mundial, os povos aproximaram-se entre si na Organização das Nações Unidas, que procura despertar no mundo inteiro a consciência dos direitos dos indivíduos e dos povos. Ainda assim, “as Nações Unidas não conseguem construir instrumentos eficazes, alternativos à guerra, na solução dos conflitos internacionais, e este parece ser o problema mais urgente que a comunidade internacional tem para resolver” (nº 21).
Ponto importante da encíclica é a reflexão sobre os acontecimentos que marcaram o final de 1989, ou seja, a queda do marxismo no centro-leste europeu.
Contributo importante, mesmo decisivo, veio do empenho da Igreja na defesa e promoção dos direitos do homem: em ambientes fortemente dominados por ideologias, onde a filiação partidária ofuscava o sentimento da dignidade humana comum, a Igreja, com simplicidade e coragem, afirmou que todo o homem – sejam quais forem as suas convicções pessoais – traz gravada em si a imagem de Deus e, por isso, merece respeito. Com essa afirmação muitas vezes se identificou a grande maioria do povo, o que levou à procura de formas de luta e de soluções políticas mais respeitadoras da dignidade da pessoa” (nº 22).
Na Polônia, os operários uniram-se entre si em solidariedade e desautoraram o sistema de idéias que pretendia falar em nome deles. Sem derramamento de sangue, o marxismo foi derrubado pelo testemunho da verdade dos não-marxistas e pela procura da negociação e do diálogo.
A causa das mudanças na Europa de 1989 está no vazio espiritual provocado pelo ateísmo, que deixou as jovens gerações privadas de orientação e as induziu a redescobrir as raízes religiosas da sua cultura, numa resposta adequada aos anseios de bem, verdade e vida que moram no coração de cada homem. “Esta procura encontrou guia e apoio no testemunho de quantos, em situações difíceis e até na perseguição, permanecem fiéis a Deus. O marxismo tinha prometido desenraizar do coração do homem a necessidade de Deus, mas os resultados demonstram que não é possível consegui-lo sem desordenar o coração” (nº 24). Digno de nota é o seguinte inciso: “Os fatos de 1989 oferecem o exemplo do sucesso da vontade de negociação e do espírito evangélico contra um adversário decidido a não se deixar vincular por princípios morais: eles são uma advertência a quantos, em nome do realismo político, querem banir o direito e a moral da arena política. É certo que a luta que levou às mudanças de 1989 exigiu lucidez, moderação, sofrimentos e sacrifícios; em certo sentido, aquela nasceu da oração e teria sido impossível sem uma confiança ilimitada em Deus, Senhor da história, que tem nas mãos o coração dos homens. Só unindo o próprio sofrimento pela verdade e pela liberdade ao de Cristo na cruz é que o homem pode realizar o milagre da paz e discernir a senda freqüentemente estreita entre a covardia que cede ao mal e a violência que, na ilusão de o estar combatendo, o agrava ainda mais” (nº 25).
Ao analisar a propriedade privada e o destino universal dos bens, a parte final é a mais densa de toda a encíclica. Os seus tópicos podem ser assim anotados:
A propriedade privada deve frutificar em favor não só do respectivo proprietário, mas em prol de outros homens. Tão importante quanto a terra é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. Ela é que dá ao trabalho maior valor, pois pode avaliar as carências do homem e produzir aquilo de que o mercado necessita.
À honestidade e à justa função do lucro deve associar-se a consideração de outros fatores humanos e morais, essenciais para a vida da empresa. Por falta de escola ou de capacidade pessoal, muitos trabalhadores são marginalizados, vivendo na periferia das grandes cidades, em condições precárias. É de desejar que haja especial atenção das autoridades, para que eles se possam inserir na comunidade de trabalho.
O capitalismo liberal não é a alternativa para o socialismo real. O ideal é “um sistema econômico que reconheça o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia” (nº 42). A Doutrina Social da Igreja aponta a necessidade de o mercado e a empresa serem orientados para o bem comum.
No seio da família o homem recebe as primeiras noções da verdade e do bem, aprende o que é amar e ser amado e o que significa ser uma pessoa (nº 39).
Na questão ecológica o homem é chamado a respeitar a obra do Criador, levando-a à condição de ser digna do hábitat do homem e motivo de louvor a Deus (nº 37).
Refletindo sobre o Estado e a Cultura, diz que o totalitarismo do Estado arroga para si a isenção de erro ou infalibilidade de decisões e exercício de poder absoluto. Absorve a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas. A carta apostólica defende a própria liberdade e a pessoa, que deve obedecer antes a Deus do que aos homens (At 5,29), a família, as diversas organizações sociais e as Nações (nº 45).
Relativamente ao ideal democrático, “é necessário que os povos... dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos direitos... à vida, direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade, direito a amadurecer sua inteligência e liberdade na prova da verdade, direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra, direito a fundar uma família, direito a viver na verdade da própria fé” (nº 47).
O sucessor de Pedro, seguindo a evolução da questão social, aborda o “homem real, concreto, cujo caminho passa pelo mistério da Encarnação e da Redenção” (nº 53).
A opção preferencial pelos pobres “estende-se não só à pobreza material, mas também à cultural e religiosa... Nos países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumo, e ainda de tantos refugiados e migrantes, se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas... O amor ao homem concretiza-se na promoção da justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior” (nº 57 et seq.).
Olhando o terceiro milênio, o pontífice agradece ao Criador “a luz e a força para acompanhar o homem no seu caminho terreno para o destino eterno, na fidelidade Àquele que é o mesmo, ontem e hoje (Hb 13,8) e o será para a eternidade” (nº 62).
O mundo atual tem na encíclica de João Paulo II fecunda mina de observações e reflexões relativas à tormentosa realidade de nossos dias.
Os direitos sociais na Constituição
Somente um forte lobby de escritórios de advocacia sobre os constituintes pode explicar um capítulo tão infeliz da nossa lei fundamental. Em 1987 já existiam as grandes encíclicas sociais: Rerum Novarum (1891), Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961), Pacem in Terris (1963), Gaudium et Spes (1965), Populorum Progressio (1967), Octogesima Adveniens (1971), Laborem Exercens (1981) e Sollicitudo Rei Socialis (1987). O artigo 7º desconhece a nova questão social, que passa pela urbanização, o lugar da mulher, a juventude, o meio ambiente, a eletrônica, a automação e seus produtos, os emigrantes, o analfabetismo, o desemprego, o terrorismo, os refugiados e tantos outros problemas. A Assembléia Nacional Constituinte não foi a dos nossos sonhos.
O artigo 6º define o trabalho como direito social. A Constituição não conferiu uma garantia absoluta do emprego – protege essa relação “contra despedida arbitrária ou sem justa causa”, nos termos de lei complementar inexistente (art. 7º, I). O FGTS é uma espécie de patrimônio individual do trabalhador, e o aviso prévio (XXI) possibilita-lhe a obtenção de outro emprego antes do desligamento definitivo da empresa.
As situações dignas de trabalho constituem objetivos dos direitos dos trabalhadores, para alcançarem a melhoria de sua condição social (art. 7º, caput). Foram prestigiadas pela Constituição as relações coletivas de trabalho, ao afirmar a autonomia sindical (art. 8º) e assegurar o direito de greve (art. 9º), podendo ser alterados muitos direitos, como irredutibilidade de salário, compensação de horário e redução da jornada de trabalho e jornada em turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, VI, XIII e XIV). Na fixação do salário, são oferecidos (ainda no art. 7º) várias regras e modos de ser: a) salário mínimo (IV); b) piso salarial proporcional à complexidade do trabalho (V); c) salário nunca inferior ao mínimo (VII); d) décimo terceiro salário (VIII); e) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (IX); f) salário-família (XII); g) remuneração do serviço extraordinário superior em cinqüenta por cento à do trabalho normal (XVI); adicional para as atividades penosas, insalubres ou perigosas (XXIII). Na proteção do salário consta que: a) ele é irredutível (VI); b) e considerada crime a sua retenção dolosa (X), o que caracteriza apropriação indébita.
A inatividade do trabalhador é assim assegurada: a) repouso semanal remunerado (XV); b) gozo de férias anuais (XVII); c) licença à gestante (XVIII); d) licença-paternidade (XIX).
As hipóteses de proteção dos trabalhadores foram ampliadas: a) a proteção do mercado de trabalho da mulher (XX); b) a segurança do trabalho (XXII); c) proteção em face da automação (XXVII); d) seguro contra acidentes de trabalho (XXVIII); e) proteção destinada ao trabalhador avulso (XXXIV).
Entre os direitos dos trabalhadores há uns que são destinados a seus dependentes – é o caso do salário-família para os dependentes do trabalhador de baixa renda (XII). Maior importância social é o previsto no inciso XXV, pelo qual é assegurada a assistência gratuita aos filhos e dependentes do trabalhador, desde o nascimento até os seis anos de idade, em creches e pré-escolas.
A participação nos lucros das empresas (XI) é um reconhecimento de que os trabalhadores são elementos exteriores à empresa, como uma força de trabalho adquirida por salário, esperando-se que ele venha a ser condizente com a condição de dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III e 170). A norma sugere a participação nos lucros ou nos resultados; trata-se de promessa constitucional que existe desde 1946, e a sua regulamentação (Lei nº 10.101/2000) não passa de típica legislação simbólica, destinada apenas a dar satisfação política aos destinatários da norma constitucional. A participação na gestão das empresas, no entanto, só ocorrerá quando a coletividade trabalhadora da empresa, por si ou por uma comissão, dispuser de algum poder de co-decisão ou pelo menos de controle. Vale dizer que os conselhos ou comissões de fábrica ou de empresa não hão de substituir os sindicatos, mas de agir nos seus quadros, pelo que a participação na gestão e nos lucros da empresa precisa estar acoplada às convenções coletivas de trabalho, ao fortalecimento da estrutura sindical.
Alguns anteprojetos, na Assembléia Nacional Constituinte, contemplavam, em capítulo separado, os direitos coletivos. Infelizmente isso foi supresso, e os direitos coletivos dos trabalhadores passaram a integrar os direitos sociais.
O artigo 8º da Constituição menciona dois tipos de associação: a profissional e a sindical. A sindical defende os direitos e interesses da categoria, participa de negociações coletivas de trabalho e celebra convenções e acordos coletivos, elege ou designa representantes e impõe contribuições a todos os que participam das categorias representativas; a profissional limita-se a estudar, defender e coordenar os interesses econômicos e profissionais de seus associados.
Os sindicatos gozam de inteira liberdade de fundação (art. 8º, I), pois até os servidores públicos possuem o direito de livre sindicalização (art. 37, VI). A liberdade sindical é um direito autônomo conquistado. Implica: a) liberdade de fundação, sem formalismos; b) liberdade de adesão, podendo os interessados aderir ao sindicato ou dele desligar-se (art. 8º, V); c) liberdade de atuação, perseguindo seus fins livremente; d) liberdade de filiação, com autorização da fixação de contribuição para custeio do sistema confederativo (art. 8º, IV).
A participação nas negociações coletivas de trabalho é uma prerrogativa importante, pois os sindicalistas podem representar a categoria, perante as autoridades administrativas e judiciárias, para celebrar convenções coletivas de trabalho, hoje participação obrigatória (art. 8º, VI).
A contribuição sindical (art. 8º, IV) é aquela "descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva"; outra, de caráter parafiscal, compulsória, é aquela utilizada na execução de programas sociais de interesse das categorias representadas (ADCT 10, §2º).
Quanto à pluralidade e unicidade sindical, a Constituição optou pela unicidade, vedando "a criação de mais de uma organização sindical" (art. 8º, II). A doutrina constitucionalista moderna defende, entretanto, a idéia de rever essa posição, para adotar a pluralidade sindical, para observar melhor a sua liberdade e realizar o pluralismo político.
A greve, para Giulano Mazzoni (Relações Coletivas do Trabalho, p. 223-224), é a abstenção coletiva concertada, ou seja, o exercício de um poder de fato dos trabalhadores – instrumento para a realização de melhores condições de trabalho para toda a categoria profissional envolvida. É um direito fundamental de natureza instrumental, como recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses.
O direito de greve (art. 9º) é constitucional, não subordinado a eventual previsão em lei. Os trabalhadores podem decretar greves reivindicatórias, objetivando melhoria das situações de trabalho; greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos; greves políticas, buscando as transformações socioeconômicas que a sociedade requeira; e greves de protesto.
Só cabe à lei definir os serviços ou atividades essenciais (art. 9º, § 1º), ficando os responsáveis pelos abusos sujeitos às penas da lei (art. 9º, § 2º). O constituinte, no entanto, não teve coragem de admitir esse amplo direito aos servidores públicos, exercício submetido aos termos e limites definidos em lei específica (art. 37, VII).
Os direitos de substituição processual é conferido aos sindicatos, de ingressar em juízo em defesa de direitos e interesses coletivos individuais da categoria – atribuição inusitada, de extraordinário alcance social. O direito de participação laboral (art.10) não é típico dos trabalhadores, porque cabe também aos empregadores; é direito coletivo de natureza social, sendo "assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão".
Na Constituição não se conseguiu muito em matéria de delegado de fábrica. O art. 11 garante, "nas empresas com mais de duzentos empregados... a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores". As comissões de fábrica não foram reconhecidas, em nível constitucional. A idéia foi abandonada, mas, por certo não está proibida.
A liberdade de instituição sindical, o direito de greve, o contrato coletivo de trabalho, a co-gestão ou autogestão e o direito de obter um emprego entram na categoria de direitos sociais do homem produtor (arts. 7º a 11). No entanto, os direitos à saúde e à segurança social e material, o desenvolvimento intelectual, o igual acesso das crianças e adultos à instrução, à formação profissional e à cultura e, ainda, a garantia ao desenvolvimento da família enquadram-se na categoria dos direitos sociais do homem consumidor.
José Manuel Almansa Pastor, em Derecho a la Seguridad Social, v. I, p. 75-77, enumera alguns princípios básicos sobre os quais deve repousar a seguridade social: a) universalidade subjetiva, não só para trabalhadores e seus dependentes, mas para todos, indistintamente; b) universalidade objetiva, não só reparadora, mas preventiva do surgimento da necessidade, protetora em qualquer circunstância; c) igualdade protetora, proteção idêntica em função das mesmas necessidades; d) unidade de gestão, só administrada e outorgada pelo Estado; e) solidariedade financeira, pois os meios financeiros procedem de contribuições gerais.
A Constituição acolheu um conceito aproximativo desses objetivos, definindo a seguridade social como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (art. 194), ao estabelecer seus objetivos (art. 194, parágrafo único) e o sistema de seu financiamento (art.195).
É impressionante como o direito à saúde, bem extraordinariamente relevante à vida humana, só agora foi elevado à condição de direito fundamental do homem. O nosso direito constitucional anterior dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde, mas isso significava organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora não, é um direito do homem: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", serviços e ações que são "de relevância pública" (arts.196 e 197).
Trata-se, pois, de um direito positivo (arts. 198 a 200) "...que exige prestações de Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas... de cujo cumprimento depende a própria realização do direito", no dizer de J. J. Gomes Canotilho e Vidal Moreira, em Constituição da República portuguesa anotada, 3.ed. p. 342.
O direito à previdência social diz respeito à seguridade social. Manifestação desta, tende a ultrapassar a mera concepção de instituição do "Estado providência" (welfare state), sem assumir características socializantes.
A Constituição deu diretrizes mais precisas aos direitos de previdência social (arts. 201 e 202). Funda-se no princípio do seguro social, de sorte que os benefícios e serviços se destinam a cobrir eventos de doença, invalidez, morte, velhice e reclusão, apenas do segurado e seus dependentes.
O regime de previdência social engloba prestações de dois tipos: 1) os benefícios, que são prestações pecuniárias, consistentes: a) na aposentadoria, por invalidez (não incluída no § 7º do art. 201, mas sugerida no inciso I desse artigo), por velhice, por tempo de contribuição, especial e proporcional (art. 201, §§ 7º e 8º); b) no auxílio por doença, maternidade, reclusão e funeral (art. 201, I a V); c) no seguro-desemprego (arts. 7º, II, 201, III, e 239); d) na pensão por morte do segurado (art. 201, V); e 2) os serviços, que são prestações assistenciais: médica, farmacêutica, odontológica, hospitalar, social e de reeducação ou readaptação funcional.
O direito à assistência social é a face universalizadora da seguridade social, que "será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição..." (art. 203). Nela assenta a solidariedade financeira, uma vez que os recursos vêm do orçamento geral da seguridade social e não de contribuições específicas de eventuais destinatários (art. 204), até porque estes são personalíssimos, os desvalidos em geral.
É aí que se situa "a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" destacada pelo art. 6º como um direito social, sem guardar harmonia com os arts. 194 e 203, reveladores do instituto da assistência social, compreendendo vários objetos e não só aqueles mencionados no art. 6º.
A ordem constitucional da cultura é o conjunto de normas que contêm referências culturais e disposições que consubstanciam os direitos sociais relativos à educação e à cultura. É uma expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de alusões à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (arts. 5º, IX, 23, III a V, 24, VII a IX, 30, IX, e 215-216).
Os objetivos básicos da educação são: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo da pessoa para o exercício da cidadania; c) qualificação da pessoa para o trabalho (art. 205). Isso só se realiza num sistema educacional democrático em que a escola concretize o direito de ensino, informado pela universalidade (ensino para todos), igualdade, pluralismo, gratuidade do ensino público, valorização dos respectivos profissionais, gestão democrática da escola e padrão de qualidade (art. 206).
Se a educação é direito de todos (arts. 6º e 205), ela é elevada ao nível dos direitos fundamentais do homem. Essa norma (arts. 205 e 227) significa que o Estado tem de se aparelhar para oferecer ensino de acordo com os princípios constitucionais (art. 206). A iniciativa privada, nesse campo, é meramente secundária e condicionada (arts. 209 e 213), em face da preferência constitucional pelo ensino público.
Os direitos culturais, esquecidos no art. 6º, foram explicitados no art. 215, pois "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" – trata-se de direitos informados pela universalidade, isto é, direitos garantidos a todos.
O direito à moradia (art. 6º) significa ocupar um lugar como residência, uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No morar há a idéia da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação; sua correlação com o residir e o habitar tem a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O verbo latino moror, morari significa demorar, ficar, donde se conclui que se quer garantir a todos um teto onde se abriguem com a família, de modo permanente.
O cidadão tem direito de obter uma moradia digna e adequada, pois é legítima a pretensão do seu titular à realização do direito por via positiva do Estado (art. 3º).
A natureza social do direito ao lazer (art. 6º) decorre do fato de que constituem prestações estatais que interferem com as condições de trabalho e com a qualidade de vida. Fora a ligeira referência no art. 227, a Constituição nada mais diz desse direito, pois o associa aos direitos dos trabalhadores relativos ao repouso.
O direito ao meio ambiente, não previsto no art. 6º, integra o Título VIII – Da Ordem Social, pois "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (art. 225).
A proteção à maternidade e à infância está prevista no art. 6º como direito social. Aparece também como aspecto do direito de previdência social (art. 201, II: "proteção à maternidade, especialmente à gestante") e do direito de assistência social (art. 203, I: "proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice"; e II: "amparo às crianças e adolescentes carentes").
Esse direito social também figura no Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso (arts. 226 a 230). Alguns desses direitos sociais são reconhecidos só à criança e ao adolescente, como direito à profissionalização, à convivência familiar e comunitária e a regras especiais dos direitos previdenciários e trabalhistas (art. 227, § 3º, I a III).
Os direitos dos idosos, não incluídos no art. 6º, como direito social, certamente têm essa natureza: eles integram o direito previdenciário (art. 201, I), que se realiza basicamente pela aposentadoria, e o direito assistencial (art. 203, I), como forma protetora da velhice, incluindo a garantia de pagamento de um salário mínimo mensal, quando ele não possuir meios de prover a própria subsistência.
O amparo à velhice vai um pouco mais longe. O art. 230 dispõe que "a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida", bem como a gratuidade dos transportes coletivos urbanos e, tanto quanto possível, a convivência em seus lares (§§ 1º e 2º).
Constitucionalista, filósofo, professor de português e de latim. Autor do livro "A lei na filosofia, na teologia e no direito" (incluindo os direitos sociais nas encíclicas dos papas e a literatura latina, com expressões traduzidas), disponível na internet (www.livropronto.com.br) e em livrarias. E-mail: [email protected]. Site: www.latimedireito.adv.br e www.correcaodetextos.adv.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Mariton Silva. A história dos direitos sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2008, 21:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15195/a-historia-dos-direitos-sociais. Acesso em: 22 nov 2024.
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