1 INTRODUÇÃO
Atualmente, pode-se dizer que não há quem duvide da necessidade de observância da lealdade e boa-fé por parte de todos aqueles que, de alguma forma, atuam no processo judicial, mormente diante da interpretação literal do art. 14 do Código de Processo Civil. O ordenamento jurídico impõe o que Fábio Milman chama de fair play processual:
“[é] antiga a preocupação com a conduta dos sujeitos da demanda. Desde que se deixou de conceber o processo como um duelo privado, no qual o juiz era somente o árbitro, e as partes podiam usar de toda argúcia, malícia e armas contra o adversário para confundi-lo, e se proclamou a finalidade pública do processo civil, passou-se a exigir dos litigantes uma conduta adequada a esse fim e a atribuir ao julgador maiores faculdades para impor o fair play. Existe toda uma gama de deveres morais que acabaram traduzidos em normas jurídicas e uma correspondente série de sanções para o seu descumprimento no campo processual. Tudo como necessária conseqüência de se ter o processo como um instrumento para a defesa dos direitos e não para ser usado ilegitimamente para prejudicar ou para ocultar a verdade e dificultar a reta aplicação do direito, na medida em que este deve atuar em conformidade com as regras da ética. Deveres que alcançam primeiramente às partes, também o fazendo, logo em seguida, aos procuradores dos litigantes e aos julgadores e seus auxiliares.” (2007:32-33)
O fair play processual é extremamente importante e necessário para que sejam respeitados diversos princípios estritamente processuais, inclusive de índole constitucional, principalmente os direitos fundamentais ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) e à tutela jurisdicional tempestiva (art. 5º, LXXVIII, CF/88).
Em última análise, o desrespeito à boa-fé e à lealdade processual compromete a efetividade dos direitos materiais discutidos em juízo, haja vista que o processo judicial e o direito processual devem ser compreendidos como meros instrumentos para a consecução daqueles. Em uma frase: não se pode admitir que o processo judicial seja utilizado para procrastinar ou negar direitos aos seus respectivos titulares.
Objetivando o referido fair play, a legislação processual tipifica vários ilícitos praticados contra a boa-fé e lealdade processual – a ilicitude, nestes casos é evidente, razão pela qual os tratamos como “ilícitos não-abusivos”. Contudo, há uma outra categoria de ilícitos – os chamados “ilícitos abusivos” – em que existe uma falsa “aparência de licitude” na conduta que, em verdade, é ilícita, pois contrária à boa-fé objetiva. Estes ilícitos são os “abusivos” e merecem ser mais bem estudados de modo a diferenciá-los dos “ilícitos não-abusivos”, visando evitar a constante confusão operada pela doutrina e jurisprudência, incluindo aquela oriunda do Superior Tribunal de Justiça.
2 DO ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL NA TEORIA
2.1 Da teoria do combate à aparência de licitude
Ao longo da evolução da concepção do abuso de direito, diferentes teorias buscaram justificar a necessidade de repressão aos atos tidos como abusivos. Conforme já expusemos outrora, em conjunto com a professora Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega (TARREGA; PINHEIRO, 2007), as teorias tradicionalmente encontradas sobre o tema na doutrina, tanto a nível nacional, quanto internacional, não nos convenceram, razão pela qual adotamos a “teoria do combate à aparência de licitude”, fundada na observância cogente do princípio da boa-fé, e que fora apresentada por Eduardo Ferreira Jordão em obra intitulada “Repensando a Teoria do Abuso de Direito” (2006), embora naquela sede não lhe tenha sido atribuído um nome específico.
Para o referido autor, basta que o ordenamento jurídico adote o princípio da boa-fé, expressa ou implicitamente, pra que tal princípio venha a se constituir em limite lógico ao exercício de quaisquer prerrogativas jurídicas.
Importante destacar que não há como vislumbrar, salvo ad absurdum, a existência de uma sociedade cujo ordenamento jurídico não contemple, de alguma forma, o princípio da boa-fé, conforme se depreende da análise do seguinte trecho da obra supra-mencionada:
“Afirmar o acolhimento, por um ordenamento jurídico específico, do princípio da boa-fé, é afirmar que, a partir da interpretação de seus dispositivos, pode-se haurir a valorização das condutas de boa-fé, em detrimento das condutas opostas. Por via de conseqüência, afirmar o seu não acolhimento é defender que de nenhuma forma se pode extrair deste ordenamento a desvalorização das condutas maliciosas.
Não se trata de hipótese teoricamente impossível, mas tampouco se trata de hipótese razoável. Abstraídas as ilações ad absurdum, dissemos e repetimos que nunca houve qualquer ordenamento que não acolhesse o princípio da boa-fé. Por esta razão, nunca houve um ordenamento no qual os atos abusivos fossem atos lícitos.” (JORDÃO, 2006:105)
Eduardo Ferreira Jordão (2006:107) destaca, ademais, que os “comandos proibitivos ou permissivos de um ordenamento jurídico não se encontram nos dispositivos normativos, mas nas normas que deles emanam, após necessária interpretação sistemática”.
De fato, normas não podem ser confundidas com dispositivos normativos. Normas não resultam, pura e simplesmente, da análise fria dos dispositivos legais. A norma deve ser retirada após vários métodos interpretativos, inclusive a interpretação sistemática das regras e princípios consagrados pelo ordenamento jurídico.
Logo, verificado que o princípio da boa-fé está consagrado, no mínimo implicitamente, em todos os ordenamentos jurídicos, não haveria sequer necessidade de previsão expressa da figura do abuso de direito, como, por exemplo, o fez o art. 187 do Código Civil de 2002. Com efeito, o abuso de direito deflue da mera constatação da incompatibilidade entre determinadas condutas, aparentemente lícitas, frente ao princípio da boa-fé.
Apesar de desnecessária, a positivação expressa da teoria do abuso de direito no Código Civil (art. 187), segundo Eduardo Ferreira Jordão (2006), é vantajosa por três motivos: (i) simplifica a interpretação, (ii) poderá veicular regulamentação e conseqüências jurídicas distintas aos atos abusivos, e (iii) poderá haver a chamada “extensão da teoria do abuso de direito”, criando-se novos limites ao exercício lícito dos direitos em geral (o atual Código Civil, por exemplo, além da boa-fé, elenca como limitadores a função econômica ou social do direito e os bons costumes).
Pois bem, o princípio da boa-fé se encontra presente em todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive em decorrência de seu status constitucional. Nesse compasso, o principal dispositivo constitucional que alberga o princípio da boa-fé é, sem dúvida, o inciso I do art. 3º, o qual prevê, expressamente, que a República Federativa do Brasil tem por objetivo “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Interpretando-se tal dispositivo constitucional, pode-se dizer que o mesmo está “elevando a um grau máximo o dever de cooperação e lealdade no trato social” (VICENZI, 2003:163).
Segundo Judith Martins-Costa[1] (2000:427-428), o princípio da boa-fé desempenha três funções distintas: a) função interpretativa; b) função integrativa; c) função limitadora do exercício de posições jurídicas.
O abuso de direito e, consequentemente, a teoria do combate à aparência de licitude, relaciona-se com as três funções da boa-fé objetiva, contudo, mais particularmente, com a função limitadora do exercício de posições jurídicas “aparentemente lícitas”.
Considerando, então, que o princípio da boa-fé tem como função intrínseca a imposição de limite ao exercício dos direitos em geral, qual seria, então, a diferença entre a ilicitude “comum” (não-abusiva) e a ilicitude advinda do abuso de direito ?
Segundo a teoria do combate à aparência de licitude, o traço diferenciador entre os ilícitos “abusivos” e os “não-abusivos” é o simples fato de que os “abusivos” têm uma falsa aparência de licitude. Em outras palavras, o caminho para aferir a ilicitude de um ato abusivo é mais complexo, pois, num primeiro momento, deve-se quebrar a falsa idéia de licitude que paira sobre o referido ato.
“[...] no ato abusivo, não há qualquer direito sendo exercido. Não se pode perder de vista, todavia, que tal constatação tem caráter predominantemente acadêmico-científico e não pode fazer o jurista ignorar a realidade. Na prática, a conduta abusiva possui uma espécie de capa de licitude que parece legitimá-la. Ela aparenta conformidade com o Direito, parece nele encontrar proteção. É preciso sempre um olhar mais cauteloso para descobrir-lhe a ilicitude. É exatamente nesta ‘aparência de licitude’, que é peculiar ao ato abusivo, que cremos residir o seu traço distintivo da conduta ilícita não-abusiva.” (JORDÃO, 2006:116)
Com efeito, é factível que no ato abusivo encontramos um “direito aparente”, um “manto de licitude”, em virtude do qual se torna mais difícil o trabalho hermenêutico, objetivando aferir o “direito real” (indicador da ilicitude do ato) em contraposição ao “direito formal” (que induz à “aparência de licitude”). No ilícito não-abusivo, a ilicitude é aferida de modo mais simples, não se cogitando da “aparência de licitude” de tal ato.
Eduardo Ferreira Jordão salienta que a “aparência de licitude” é que deve ser considerada o objeto de ocupação da teoria do abuso de direito. Para o referido autor,
“[...] a partir da criação da teoria do abuso, passou-se a tutelar juridicamente a aparência de licitude. Deu-se-lhe relevância jurídica e regulamentou-se-lhe o uso por aquele a quem ela aproveitasse. O fato de doutrinadores imaginarem que estaria tutelando o ‘exercício do direito’ não impede que estudos posteriores constatem que o que se acabou por tutelar foi coisa diversa, no caso, apenas a ‘aparência do direito’”. (2006:118)
Constatando-se que a teoria do abuso de direito visa limitar direitos em decorrência de uma particular situação fática – a aparência de licitude –, impende verificar, ademais, que o ilícito abusivo recebe tratamento jurídico diverso do conferido à grande maioria dos ilícitos, pois se trata de um ilícito não culposo ou objetivo, isto é, para a sua configuração não se faz necessário aferir a presença de culpa lato sensu[2] do agente que atua com abuso.
“A ilicitude subjetiva é aquela que leva em conta um juízo de valor acerca do comportamento do sujeito que se pressupõe livre e consciente, ao passo que a ilicitude objetiva deriva da análise tão-somente do comportamento do sujeito em comparação com a determinação contida no comando normativo.” (BOULOS, 2006:107)
Há quem em doutrina afirme que a ilicitude decorrente do abuso de direito é subjetiva, contudo, a doutrina majoritária tem preconizado a importância de se atribuir ao ilícito abusivo um caráter objetivo, consoante bem explicitado por Brunela Vieira De Vincenzi:
“[...] Exigi-la [a culpa lato sensu] para configurar o abuso do direito seria retroceder e, pior, não impedir o abuso ou não sancionar o causador de danos quando não tenha agido com culpa ou intencionalmente, ou ainda naqueles casos em que a vítima não conseguir provar a culpa do agente.
É preciso estabelecer normas condutoras para o exercício do direito subjetivo, sem penetrar na intenção do sujeito ou em seus fins escusos. (2003:166-167)
Além dos atos abusivos, são exemplos de ilícitos sem culpa (ilícitos objetivos) os atos contrários à dignidade humana, conforme bem lembrado por Felipe Peixoto Braga Netto:
“[...] Segundo a doutrina mais avisada, existe uma cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana no sistema brasileiro. Portanto, é algo fora de dúvida que as condutas a ela contrárias inserem-se entre as vedadas pelo sistema, sendo reputadas inequivocamente ilícitas.
Nessa trilha, as condutas violadoras da cláusula geral da dignidade da pessoa humana são ilícitos civis, cuja configuração independe de culpa. No campo civil, por conseguinte, afiguram-se contrários ao direito os atos ou omissões que agridam, constranjam, ou cerceiem, de forma indevida, os direitos da personalidade.
A culpa, em se tratando de violações a direitos da personalidade, é fator que não entra em consideração. O ato não deixa de ser contrário ao direito em razão da ausência de culpa. O sistema não tolera tais agressões, mantendo o caráter da contrariedade ao direito do ato, ainda que involuntário.” (2003:94-95)
Destarte, assim como há uma “cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana” no sistema brasileiro e que impõe a ilicitude objetiva aos atos contrários à dignidade humana, entendemos que há, paralelamente, uma cláusula geral de tutela da aparência de licitude, segundo a qual todo aquele que estiver em situação de vantagem deve se portar de forma honesta e leal, segundo preceituado pela boa-fé objetiva, sob pena de configuração do ato abusivo (ilícito objetivo). “Cria-se um dever jurídico de bem portar-se em situação jurídica de vantagem, como a de aparente titularidade do direito, não se valendo dela para causar danos a terceiros” (JORDÃO, 2006:128)
2.2 Do alcance da teoria do abuso de direito
A teoria do abuso de direito é aplicável a todos os ramos jurídicos. Chega-se a tal conclusão, primeiramente, quando se constata que nenhum ramo jurídico afasta a incidência do princípio da boa-fé. Ademais, o fato de o princípio da boa-fé, justificador da repressão ao abuso de direito, ter previsão constitucional (art. 3º, inc. I, da CF/88), por si só, já impõe o seu respeito por todos os demais ramos jurídicos, sob pena de inconstitucionalidade.
Noutro giro, a teoria do abuso de direito não se restringe a aferir a licitude ou ilicitude tão-somente dos direitos subjetivos stricto sensu, pois é plenamente possível se abusar de qualquer posição jurídica de vantagem. Nesse sentido tem se inclinado a melhor e mais atualizada doutrina:
“O artigo 187 [...] dirige-se aos direitos subjetivos patrimoniais (direitos de crédito e direitos reais), aos denominados direitos-deveres (poderes-deveres) ou poderes-funcionais, às liberdades, aos ônus jurídicos, aos direitos potestativos, aos poderes, às expectativas, às exceções, isto é, diz respeito a qualquer situação jurídica ativa, ou permissão genérica de atuação.” (BOULOS, 2006:150-155)
Pode-se dizer, pois, que o princípio da boa-fé e, consequentemente, a teoria do abuso de direito, se constituem em cláusula geral aplicável a qualquer ramo jurídico, bem como a qualquer posição jurídica de vantagem.
2.3 Dos escopos do processo
Modernamente, o processo judicial não deve ser entendido como “um fim em si mesmo”, dissociando, totalmente, a interpretação das normas de direito processual das de direito material. A tendência é atribuir como escopos do processo a instrumentalidade e a efetividade que deve ser dada ao direito material sub judice.
Tanto o princípio da instrumentalidade das formas, quanto o da efetividade, têm sua ratio essendi no fato de que o mais importante é que o processo consiga conferir, tempestivamente, o direito material ao seu titular. “Assim é que o processo deve ser visto como um instrumento a serviço do direito material, e não o contrário.” (CÂMARA, 2005:224).
Destarte, o processo judicial deve ser conduzido de modo a não se frustrar o direito material das partes. Um dos caminhos para que se consiga tal desiderato é, sem sombra de dúvida, o combate efetivo contra todas as condutas que atentem contra a boa-fé objetiva.
2.4 Dos deveres do art. 14 do Código de Processo Civil
O art. 14 do Código de Processo Civil elenca diversos deveres das partes e de todos aqueles que, de alguma forma, atuam no processo. Dentre tais deveres, a doutrina costuma salientar que o dever de lealdade e boa-fé (inciso II) engloba todos os demais deveres do art. 14 e, outrossim, é a consagração da necessidade de se respeitar preceitos éticos no processo civil, conforme doutrina Cândido Rangel Dinamarco (2002:56):
“[...] o Código de Processo Civil brasileiro, que se mostra particularmente empenhado em cultuar a ética no processo, traz normas explícitas quanto aos limites da combatividade permitida e impõe sanções à deslealdade; o dever de manter comportamentos condizentes com os mandamentos éticos está sintetizado na fórmula ampla e genérica proceder com lealdade e boa-fé, contida no inc. II de seu art. 14.”
J. E. Carreira Alvim (2006:2) também é enfático ao afirmar que todos os deveres do art. 14 estão contidos no dever de lealdade e boa-fé do inciso II daquele artigo:
“Neste sentido, exigem-se das partes e seus procuradores determinados comportamentos, elencados nos incisos I a V do art. 14, estando todos eles compreendidos no inciso II, que impõe às partes proceder com lealdade e boa-fé, pois, assim agindo, devem, em conseqüência, expor os fatos em juízo conforme a verdade (inciso I); não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento (inciso III); não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito (inciso IV); e cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final (inciso V).”
No referido inciso II, encontramos lado a lado a “lealdade” e a “boa-fé” dando a falsa impressão que se tratam de conceitos diversos, pois que, na verdade, afirmam o mesmo objetivo, consoante lições de Celso Hiroshi Iocohama (2006:45):
“[...] a expressão lealdade [...] se confundirá com a boa-fé objetiva, pois que ser leal significa estar de acordo com determinados padrões de conduta que independem da concepção particular do sujeito. Isto quer dizer que ninguém é honesto somente porque acredita sê-lo. É preciso que tal concepção se projete na visão social e, diante dela, sejam observados os elementos existentes para o preenchimento do modelo padrão de honestidade/lealdade.
Logo, a boa-fé subjetiva não pode ser confundida com a noção de lealdade, pois, se há importância para o estudo da primeira e sua conotação jurídica, a lealdade vista do ângulo exclusivo do sujeito para o qual é atrelada não tem qualquer relevância.”
Pois bem, ao que parece, o legislador quis arrolar vários deveres alinhados à idéia de respeito à boa-fé objetiva. Contudo, considerando ser impossível elencar todas as condutas éticas esperadas no processo e visando evitar prováveis ausências, a boa-fé acabou, também, sendo arrolada como dever processual no inciso II do art. 14 do Código de Processo Civil e, ademais, ao lado da “lealdade processual” – o que lhe deu mais ênfase ainda.
2.5 Dos Ilícitos processuais (abusivos e não-abusivos) contra a boa-fé objetiva: censura às condutas desleais
No direito processual civil, há inúmeras espécies de ilícitos que visam reprimir condutas desleais, contrárias à boa-fé objetiva.
Segundo a nossa concepção sobre o abuso de direito, qualquer conduta processual que, a par de exercer uma posição de vantagem aparentemente lícita, venha a afrontar o princípio da boa-fé, deverá ser considerada ilícita (ilícito abusivo), cabendo sua censura pelo magistrado responsável pela condução do processo.
Ocorre que a preocupação do legislador para com a eticidade no processo civil foi tão grande que várias condutas desleais foram transformadas em diversos ilícitos processuais não-abusivos. Quanto a tais condutas, não há falar-se em abusividade, haja vista que a ilicitude é aferida prima facie, pois sequer há aparência de ilicitude quando às mesmas.
Como exemplos de ilícitos não-abusivos contra a lealdade processual, previstos no Código de Processo Civil, podemos citar a litigância de má-fé (arts. 17 e 18), o ato atentatório ao exercício da jurisdição (parágrafo único do art. 14), o ato atentatório à dignidade da justiça (arts. 600 e 601), o requerimento doloso de citação editalícia fora das hipóteses permitidas (art. 233), a interposição de embargos declaratórios com intuito protelatório (art. 538), a interposição de agravo manifestamente inadmissível ou infundado (art. 557, §2º) etc.
É verdade que todo abuso de direito pressupõe uma deslealdade processual, contudo, a recíproca não é verdadeira, pois nem todo ilícito não-abusivo tipificado visa combater condutas desleais no processo. Há, pois, ilícitos processuais “não-abusivos” que vão de encontro a outros valores, que não a lealdade.
Conforme já ressaltamos, o que distingue o ilícito “abusivo” do “não-abusivo” é a aparência de licitude peculiar àquele. A tipificação de ilícitos processuais contrários à boa-fé visa otimizar tal repressão, pois restaria mais evidente a ilicitude de tais comportamentos processuais.
Em sendo assim, a figura do abuso de direito processual ostenta um caráter subsidiário, haja vista que terá seu campo de aplicabilidade restrito às hipóteses de condutas desleais não contempladas pelos ilícitos processuais não-abusivos, e desde que tais condutas ostentem uma falsa aparência de licitude, pois que contrárias à boa-fé objetiva.
Cientificamente, nunca uma conduta processual será, ao mesmo tempo, um ilícito não-abusivo e um ilícito abusivo. O abuso de direito é verificado de forma subsidiária, somente quando a conduta não se subsumir a algum ilícito não-abusivo tipificado e, ao mesmo tempo, quando tal conduta ostentar uma falsa “aparência de licitude” que, na verdade, vai de encontro ao princípio da boa-fé. Sem esses dois pressupostos, não há que se falar em abuso de direito.
É preciso aprimorar a diferença entre ilícitos não-abusivos e ilícitos abusivos – o que não vem sendo realizado com sucesso, a nosso viso, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência.
Os deveres de conduta elencados no rol do art. 14 do CPC, mormente os deveres de lealdade e boa-fé (inciso II), quando não forem objeto de repressão tipificado no Código de Processo Civil, o serão, subsidiariamente, mediante a aplicação da teoria do abuso de direito. Em sendo assim, não concordamos com aqueles que pretendem estender a aplicação da litigância de má-fé a condutas não previstas no art. 17 do Código de Processo Civil, tal como defende Cândido Rangel Dinamarco:
“Inversamente, constituem litigância de má-fé os atos infratores dos deveres diretamente arrolados no art. 14, ainda quando não constantes do elenco de infrações contido nos incisos do art. 17. Eventuais lacunas são só aparentes, porque a norma de encerramento contida no inc. II do art. 14 manda que todos procedam com lealdade e boa-fé, reputando-se litigância abusiva[3] eventuais condutas sem lealdade ou sem boa-fé, ainda quando especificadas em tipos legais bem precisos.” (2002:67)
O art. 17 tipifica condutas ilícitas não-abusivas, tal qual é feito por diversos outros dispositivos esparsos pelo Código de Processo Civil. A tipificação pressupõe o enquadramento exaustivo de condutas, previstas numerus clausus. A compreensão adequada da teoria do abuso de direito rebate a tese, por exemplo, daqueles que, como Valentino Aparecido de Andrade, admitem a extensão da litigância de má-fé a outras condutas não-tipificadas, pelo fato de também serem ofensivas à lealdade e boa-fé processual.
“Anote-se, entretanto, que partindo do pressuposto de que o artigo 17 é formado por condutas sancionadoras, sustenta a maior parte da doutrina brasileira que esse elenco é taxativo, e que por isso sua interpretação não pode ser extensiva ou ampliada. Mas, fosse esse elenco numerus clausus, como se afirma – e certamente não haveria necessidade de a Lei fixar, como fixa (artigo 14), deveres gerais, que estariam todos consubstanciados na descrição das condutas tipificadas.” (ANDRADE, 2003:137-138)
Com efeito, a teoria do abuso de direito processual, ante seu caráter subsidiário, serve, justamente, para que se proceda à repreensão de condutas contrárias à lealdade e boa-fé objetiva, mas que não estejam devidamente tipificadas em algum dispositivo da legislação processual.
De tudo que se disse até aqui, talvez pareça que sejamos extremamente positivistas – rótulo com o qual não concordamos, haja vista que vários ilícitos processuais tipificados (não-abusivos) contêm, em sua definição, conceitos jurídicos indeterminados, responsáveis por evitar o “obsoletismo da norma e a inflação legislativa” (FARIAS; ROSENVALD, 2006:35).
Consideramos os tipos processuais, mormente os relativos à litigância de má-fé, como sendo “tipos abertos”, haja vista a constante presença de conceitos jurídicos indeterminados[4]. Ora, o positivismo extremado é incompatível com tipos abertos, onde há utilização de conceitos jurídicos indeterminados, razão pela qual não nos consideramos positivistas extremados.
Sendo assim, o que buscamos é a correta diferenciação entre os ilícitos processuais decorrentes do abuso de direito em contraposição àqueles não-abusivos, que já se encontram tipificados na legislação processual e que, portanto, carecem de uma falsa “aparência de licitude” – traço distintivo crucial entre o abuso de direito e as demais condutas ilícitas.
4. DO ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL NA JURISPRUDÊNCIA DO STJ
Desde a vigência do atual Código Civil, tem aumentado sobremaneira as referências ao abuso de direito na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Tal constatação reflete o que já mencionamos alhures como sendo uma das vantagens de se positivar expressamente a teoria do abuso de direito, qual seja, a maior facilidade de compreensão e aplicabilidade do instituto repressivo às condutas desleais e contrárias à boa-fé objetiva.
Ocorre que, analisando minuciosamente os julgados do Superior Tribunal de Justiça, chegamos à conclusão de que quando o abuso de direito é referido como razão de decidir acerca de alguma questão estritamente processual, em verdade, a discussão não deveria mirar na teoria do abuso de direito processual, pois que bastaria perquirir acerca dos ilícitos “não-abusivos” já tipificados pela legislação.
Já dissemos que a teoria do abuso de direito processual tem caráter subsidiário e deve ser usada tão-somente quando não houver norma expressa proibindo a conduta processual que, em que pese tal lacuna, é ilícita em decorrência de sua contraposição ao princípio da boa-fé.
Doravante, serão analisados alguns julgados sobre o tema para que fique mais clara a desnecessidade de o Superior Tribunal de Justiça ter se utilizado da teoria do abuso de direito processual como razão de decidir. Outrossim, cabe salientar que não foram analisados os julgados que tratam do abuso de direito material, mas tão-somente aqueles que tratam de algum tema de direito processual.
O primeiro acórdão a ser analisado foi proferido no AgRg no Ag 877508/RS, no qual se afirmou que não seria o caso de aplicação da sanção (multa) prevista no parágrafo único do art. 538 do Código de Processo Civil para os casos em que há interposição de embargos de declaração com intuito manifestamente protelatório, sob a justificativa contraditória de que não teria havido “abuso do direito de recorrer” no caso sub judice, senão vejamos:
Ementa: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. MULTA POR PROTELAÇÃO. AFASTAMENTO. SÚMULA 98/STJ. MILITAR. JUROS DE MORA. AÇÃO AJUIZADA APÓS A EDIÇÃO DA MP 2.180-35/2001. PERCENTUAL DE 6% AO ANO. RECURSO PROVIDO.
1 - Consoante entendimento pacificado nesta Corte Superior de Justiça, é descabida a aplicação da multa prevista no art. 538, parágrafo único, do CPC, se os embargos de declaração foram opostos, uma única vez, com nítido propósito de prequestionamento, não havendo que se falar, desse modo, em abuso do direito de recorrer, tampouco em caráter protelatório (Súmula 98/STJ).
2 - Proposta a ação de conhecimento em data posterior à edição da MP 2.180-35/2001, o percentual dos juros moratórios deve ser fixado no patamar de 6% ao ano, por incidência do art. 1º-F da Lei 9.494/97.
3 - Agravo interno provido.
(STJ, AgRg no Ag 877508 / RS, Rel. Min. Jane Silva - Desembargadora convocada do TJMG, Quinta Turma, DJ 17.12.2007 p. 307)
Pois bem, infere-se que o Código de Processo Civil tipificou claramente o ilícito de interposição de embargos declaratórios com intuito manifestamente protelatório, ou seja, não há necessidade de se buscar na teoria do abuso de direito processual a justificativa para a repressão a tal conduta.
Daí que o Superior Tribunal de Justiça foi extremamente contraditório em tal julgado, pois não há como uma conduta ser considerada um “ilícito não-abusivo” (previsto no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil) e, ao mesmo tempo, também ser um “ilícito abusivo” (abuso do direito de recorrer).
Noutra oportunidade, ao julgar o AgRg no REsp 946499/SP, houve novamente desnecessária remissão à teoria do abuso de direito, pois o ilícito de atribuir um valor irreal à causa e em descompasso com as regras dos arts. 258 a 263 do Código de Processo Civil é, evidentemente, um “ilícito não-abusivo”, senão vejamos o teor do acódão:
Ementa: PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA - PRAZO DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PERÍCIA.
1. A interpretação sistemática do art.188 c/c art.261, CPC, impõe a conclusão de que o prazo deferido à Fazenda Pública para formular incidente de impugnação ao valor da causa é abrangido pela contagem em quádruplo.
2. O art.188, CPC, afirma que se contará em quádruplo o prazo para contestar, quando a parte for a Fazenda Pública. O art. 261, CPC, prescreve que o réu poderá impugnar, no prazo da contestação, o valor atribuído à causa pelo autor. O incidente de impugnação ao valor da causa tem prazo de exercício serviente ao homólogo lapso para contestar. Se a Fazenda Pública tem o necessário e justo privilégio de contestar no prazo quádruplo, o ato de impugnação deverá ser manifestado em idêntico intervalo. Imaginar diversamente é quebrar o paralelismo das formas e a lógica da técnica processual prestigiada no CPC.
3. O juiz é soberano, desde que motivadamente, para decidir acerca da pertinência de realização de prova pericial, especialmente quando se tratar de incidente de impugnação ao valor da causa, por definição sumário e expedito.
4. Na espécie, como salientado no decisório de primeiro grau, o valor da causa foi elevado em razão do pedido deduzido na inicial, consistente na condenação do Município em quantia expressiva. O valor primitivo da causa era uma fração do quantum postulado a título ressarcitório contra a Fazenda Pública.
5. A agravante foi alcançado por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídicas às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Processual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. João Otávio de Noronha, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade.
6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos. Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos. Agravo regimental improvido.
(STJ, AgRg no REsp 946499 / SP, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJ 05.11.2007 p. 257)
Destaque-se que no supra-transcrito acórdão não houve menção ao “abuso de direito”, mas sim ao princípio que veda o comportamento contraditório (venire contra factum proprium), a qual, segundo a melhor doutrina, é uma das manifestações de abuso de direito, pois que se trata de uma conduta que vai de encontro ao princípio da boa-fé.
Por seu turno, ao julgar o AgRg no RMS 17752/BA houve novamente confusão. O princípio do juiz natural é a norma que prevê ser impossível a prática processual de reingressar em demanda, após ter desistido da mesma. Ora, se não há necessidade de se buscar motivação no princípio da boa-fé para coibir tal prática, consequentemente, não há que se falar em teoria do abuso de direito processual. Daí que merece censura o emprego equivocado da expressão abuso de direito processual na ementa a seguir transcrita:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REINGRESSO DE DESISTENTE EM SEDE DE RECURSO ORDINÁRIO. ABUSO DE DIREITO.
1. Conquanto a desistência não implique renúncia ao direito em que se funda a ação, nem, tampouco, gere empeço ao ajuizamento de nova demanda com idênticas partes, pedido e causa de pedir, não se pode admitir o abuso de direito processual, com o reingresso do desistente no feito ao seu talante, em grave violação do princípio do juiz natural.
2. Agravo regimental improvido.
(STJ, AgRg no RMS 17752 / BA, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, DJ 06.11.2006 p. 372)
Continuando nossa análise, especial atenção deve ser dispensada aos casos como os que foram objeto de análise nos julgamentos do REsp 816453/PR e do EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg nos EDcl nos EDcl no RE no Ag 387730/SP, cujos acórdãos reconheceram, expressamente, ter havido litigância de má-fé.
Pois bem, já se disse que a litigância de má-fé é um ilícito processual que visa reprimir várias condutas contrárias à lealdade e boa-fé objetiva e que se encontram tipificadas nos incisos do art. 17 do Código de Processo Civil.
Apesar de visar reprimir condutas contrárias à lealdade e boa-fé objetiva, a litigância de má-fé é evidentemente um “ilícito não-abusivo”, pois não pairam dúvidas sobre a ilicitude das condutas que subsumem àquelas tipificadas no art. 17 do Código de Processo Civil. Daí que é totalmente contraditório pensar que uma mesma conduta será tida como litigância de má-fé e, concomitantemente, abuso de direito processual, como o fizeram os seguintes julgados, in verbis:
Ementa: Processo civil. Recurso especial. Medida cautelar. Litígio entre vizinhos, em face de execução de sentença que reconheceu existência de servidão de passagem em favor do imóvel de um deles. Obras ornamentais realizadas por este, no curso da servidão, que foram apontadas como tendo mero caráter de provocação à outra parte, em face da anterior vitória judicial. Improcedência do pedido em sede de apelação. Reconhecimento, pelo Tribunal de origem, da prática de mútua litigância de má-fé, sem que se tenha, contudo, aplicado a respectiva multa. Procedência do pedido de condenação, a esse título, do ora recorrido; necessidade, contudo, de igual condenação dos recorrentes, de ofício, sob risco de desprestígio da justiça.
- Não se reconhece violação ao art. 535 do CPC quando ausentes omissão, contradição ou obscuridade na decisão recorrida.
- Não se reconhece interesse de recorrer à parte que já obteve o provimento jurisdicional desejado.
- Não se conhece de recurso especial na específica parte em que este se encontra deficientemente fundamentado.
- O Tribunal de origem reconheceu que o motivo da propositura da presente medida cautelar foi uma 'conduta revanchista' que representava verdadeiro 'abuso de direito'; nesses termos, não é causa excludente da condenação por litigância de má-fé a invocação do direito de acesso à justiça, pois não há como reconhecer que a proteção a um direito chegue ao ponto de justificar seu próprio abuso.
- Verifica-se, contudo, que o Tribunal de origem reconheceu a ocorrência de litigância de má-fé também pelos ora recorrentes, deixando de aplicar a respectiva multa em face daquele argumento já afastado em relação à conduta do recorrido. Nesses termos, e sob pena de descrédito da justiça, é de se aplicar, de ofício, igual multa àqueles, retirando-se, assim, o benefício financeiro que teriam se não tivessem adotado o mesmo tipo de postura que criticaram em seu oponente. Recurso especial parcialmente provido; aplicação, de ofício, de multa por litigância de má-fé.
(STJ, REsp 816453 / PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ 04.09.2006 p. 270)
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. ABUSO DO DIREITO DE RECORRER. MÁ-FÉ E INÉPCIA CARACTERIZADAS. INDENIZAÇÃO. CPC, ART. 18, § 2º E OFÍCIO À OAB. LEI Nº 8.906/94.
A interposição de recurso incabível não suspende ou interrompe o prazo para a apresentação do recurso próprio, nem tem o poder de impedir o trânsito em julgado do acórdão (ou decisão) inadequadamente impugnado. Extinta a prestação jurisdicional e determinada a baixa dos autos, independentemente da publicação do acórdão e de eventual interposição de qualquer outro recurso.
Evidenciado o caráter manifestamente protelatório da insurgência, bem como configurada a má-fé, condena-se o recorrente a indenizar a parte contrária em 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa (CPC, art. 18, § 2º). O inusitado e manifesto desrespeito do advogado subscritor das petições a esta Casa de Justiça, utilizando-se de meios manifestamente incabíveis, transformando o processo civil em panacéia jurídica, atravancando o regular andamento processual, retardando o deslinde da controvérsia de forma inexplicável e sem precedentes, a par de configurada a inépcia, leva-se a que se oficie a OAB/SP, com cópia desta.
(STJ, EDcl nos EDcl nos EDcl no AgRg nos EDcl nos EDcl no RE no Ag 387730 / SP, Rel. Min. Edson Vidigal, Corte Especial, DJ 01.03.2004)
Sem analisar o aspecto prático das decisões, esses foram alguns acórdãos colhidos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em que, segundo nossa modesta opinião, houve incorreta menção à teoria do abuso de direito processual, pois que esta se torna irrelevante e desnecessária quando já houver norma expressa proibindo e/ou reprimindo as ilícitas práticas processuais analisadas.
5 CONCLUSÃO
No estágio atual da ciência jurídica, tem-se por obrigatório que as partes, assim como todos aqueles que atuam no processo, pautem suas condutas de acordo com a boa-fé e a lealdade, como uma das formas de se permitir que o processo atinja seus escopos com efetividade.
Doutrina e jurisprudência, no afã de buscar a efetividade do processo, acabam por utilizar, excessivamente, a nomenclatura “abuso de direito” para se referir a quaisquer condutas processuais que sejam contrárias à boa-fé objetiva e à lealdade processual.
Contudo, há que se tomar cuidado, pois os ilícitos processuais “abusivos” não podem ser confundidos com os “não-abusivos”. Estes são todos aqueles ilícitos processuais, via de regra tipificados, que não ostentam uma “falsa aparência de licitude”, ou seja, seu caráter ilícito é aferido prima facie.
O abuso de direito processual é verificado quando determinadas condutas, apesar de “aparentemente lícitas”, contrariarem o princípio constitucional da boa-fé (art. 3º, inc. I, da Constituição Federal). Tal abuso processual tem função meramente subsidiária, incidente quando não for possível detectar prima facie a ilicitude.
Daí que, se nos afigura excessiva e desprovida de cientificidade a utilização da terminologia “abuso de direito” quando dada conduta se subsumir a alguma das hipóteses de litigância de má-fé, ato atentatório à dignidade da justiça, ato atentatório ao exercício da jurisdição ou a qualquer outro ilícito processual expresso na legislação.
A atribuição de caráter subsidiário ao abuso de direito processual, não indica que o mesmo seja desprovido de importância. Segundo nosso entendimento, a legislação processual, preocupada com o respeito à boa-fé e à lealdade, tipificou satisfatoriamente várias condutas ilícitas. Contudo, eventualmente, podem existir condutas processuais desleais que não se amoldem a nenhum dos ilícitos processuais tipificados – aqui o abuso de direito exerce sua função com maestria, mas somente nesta sede subsidiária.
A nosso viso e de forma pragmática, os diversos ilícitos processuais, mormente a litigância de má-fé, são suficientes para reprimir as condutas processuais desleais. O papel legislativo já foi devidamente realizado, com a tipificação de tais ilícitos, muitas vezes com a utilização de conceitos jurídicos indeterminados que colaboram para a sua auto-atualização.
É extremamente difícil encontrar um exemplo de uma conduta processual desleal que não se subsuma a algum dos ilícitos processuais “não-abusivos”, razão pela qual o campo para aplicação da teoria do abuso de direito processual, além de subsidiário, é reduzidíssimo e remoto.
Para demonstrar tal constatação, analisamos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e aferimos que em todas as oportunidades em que se referiu ao abuso de direito relacionado a direitos processuais, houve incorreta menção a tal instituto, pois que, na verdade, houve foi afronta a alguma norma já positivada expressamente pelo ordenamento jurídico, sendo desnecessário o recurso ao princípio da boa-fé e, consequentemente, à teoria do abuso de direito processual.
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[1] Para ser mais preciso, Judith Martins-Costa se utiliza das seguintes nomenclaturas: (i) boa-fé como cânone hermenêutico-integrativo; (ii) boa-fé como criadora de deveres jurídicos; (iii) boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos.
[2] Conceituando a culpa lato sensu, mister colacionarmos as lições de Cézar Fiúza: “Pode-se dizer que a palavra culpa tem dois sentidos: um lato, outro estrito. Culpa em sentido lato inclui a idéia de dolo e de culpa em sentido estrito. Culpa em sentido estrito é a ação ou omissão, praticada com negligência, imprudência ou imperícia.” (2004:242)
[3] Data venia, Cândido Rangel Dinamarco incorre em erro comumente encontrado na doutrina e jurisprudência, haja vista que utiliza nomenclatura específica do abuso de direito para se referir a ilícitos não-abusivos – no presente caso, referindo-se à litigância de má-fé.
[4] Os conceitos jurídicos indeterminados não se confundem com as cláusulas gerais. Sobre o tema, doutrina Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery: “Ocorre que em ambos há extrema vagueza e generalidade, que tem de ser preenchida com valores pelo juiz. Quando a norma já prevê a conseqüência, houve determinação de conceito legal indeterminado: a solução a ser dada pelo juiz é aquela prevista previamente na norma. Ao contrário, quando a norma não prevê a conseqüência, dando ao juiz a oportunidade de criar a solução, dá-se ocasião de aplicação da cláusula geral: a conseqüência não estava prevista na norma e foi criada pelo juiz para o caso concreto. O juiz pode dar uma solução em um determinado caso, e outra solução diferente em outro caso, aplicando a mesma cláusula geral. A função do juiz, ao aplicar a cláusula geral, é integrativa.” (NERY JR.; NERY, 2005:159)
Mestre em Direito Agrário e Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Direito Processual pelo Axioma Jurídico. Professor da Especialização em Direito Empresarial do Instituto Goiano de Direito Empresarial (IGDE). Palestrante da Escola Superior de Advocacia da OAB-GO. Procurador do Estado de Goiás. Advogado em Goiânia. [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Frederico Garcia. Abuso de direito processual na jurisprudência do STJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2008, 08:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15666/abuso-de-direito-processual-na-jurisprudencia-do-stj. Acesso em: 23 dez 2024.
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