A lavagem de dinheiro “consiste em ocultar ou dissimular a procedência criminosa de bens e integrá-los à economia, com aparência de terem origem lícita” (PITOMBO, 2003, p. 38). Assim, a lavagem de dinheiro é crime acessório ou derivado, isto é, só ocorre se existir crime anterior (cf. MAIA, 2004, p. 64/65). De acordo com a Exposição de Motivos da Lei 9.613, de 3 de março de 1998, existem três gerações de legislação a respeito dos crimes antecedentes: a) a primeira circunscreveu a lavagem de dinheiro aos bens provenientes do tráfico ilícito de entorpecentes; b) posteriormente, alguns países ampliaram as hipóteses de crimes antecedentes, incluindo outras infrações penais em um rol taxativo; c) outros sistemas jurídicos optaram por conectar a lavagem de dinheiro a toda a espécie de infração penal precedente. Nesse sentido, a legislação brasileira seria de segunda geração (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 111). Na verdade, o legislador brasileiro realizou uma mescla entre a segunda e a terceira geração. Ao mesmo tempo em que previu uma série de crimes antecedentes (Lei 9.613/1998, art. 1°, I a VI e VIII), possibilitou também que qualquer crime fosse precursor da lavagem de dinheiro, desde que praticado por organização criminosa (art. 1°, VII). Assim, só há necessidade de se enquadrar o crime na enumeração legal se ele não for cometido por meio da criminalidade organizada.[1]
A enumeração taxativa dos crimes antecedentes levou em consideração a especial gravidade destes e sua relação direta com a lavagem de dinheiro devido às grandes somas movimentadas. De acordo com William Terra de Oliveira, temos que a: “característica comum desses delitos é uma macrolesividade, pois atingem muitas vezes interesses sociais e quase sempre geram grande quantidade de dinheiro ilícito” (CERVINI, OLIVEIRA e GOMES, p. 338).
O critério utilizado pela lei requer constantes atualizações, já que novas modalidades de crimes podem se tornar lucrativas o bastante para requererem a lavagem de seus ativos. Nesse sentido, a enumeração legal já foi atualizada pela Lei 10.467, de 11.6.2002, que incluiu os crimes praticados por particulares contra a administração pública estrangeira, e, pela Lei 10.701, de 9.7.2003, que inseriu o financiamento ao terrorismo.[2]
Analisaremos, agora, a pertinência da inclusão de novos crimes antecedentes, tendo em vista não só a lesividade à ordem econômico-financeira[3] como a controvérsia a respeito da manutenção de um rol exaustivo de crimes antecedentes.
Considerando que a lavagem de dinheiro é um delito de reconhecida transnacionalidade, os Estados identificaram a necessidade de se combater de maneira uniforme esse fenômeno (PITOMBO, 2003, p. 40/41). Foram elaborados diversos documentos normativos internacionais, que influenciaram diretamente a legislação brasileira. Por isso, a solução de qualquer questão envolvendo o tema deve passar, primordialmente, pelo ordenamento jurídico internacional.[4] De especial relevância são as Recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), organismo que tem por finalidade combater a lavagem de dinheiro. As recomendações, como o próprio nome indica, não têm caráter obrigatório, mas são seguidas como “instrumento modelo para as ações internacionais” (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 17).[5] Já na primeira recomendação, é estabelecido que os delitos antecedentes deveriam ter a maior abrangência possível, incluindo todos os denominados “crimes graves”.[6] Foram propostos dois modos de se definir um crime como grave: listar uma categoria de crimes graves ou definir um limiar. Os parâmetros sugeridos para esse limiar foram: a pena máxima (superior a um ano) ou a pena mínima (superior a seis meses). Poderia ser feita também uma combinação de ambos (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 164). Um catálogo mínimo de crimes graves é dado no glossário das Recomendações (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 179) e inclui, entre outros crimes, o “tráfico de bens roubados e de outros bens”, o “tráfico de seres humanos e o tráfico ilícito de migrantes” e a “exploração sexual, incluindo a exploração sexual de crianças”. Também é disposto que cada Estado deveria tipificar as condutas nos termos de seu direito interno. Verificaremos, a seguir, a pertinência de contarmos com uma enumeração taxativa de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro. A Exposição de Motivos da Lei 9.613, de 1998, (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 112) justifica esse critério aduzindo que, sem ele, estaríamos “massificando a criminalização para abranger uma infinidade de crimes como antecedentes do tipo de lavagem ou de ocultação. Assim, o autor do furto de pequeno valor estaria realizando um dos tipos previstos no projeto se ocultasse o valor ou o convertesse em outro bem, como a compra do relógio, por exemplo”. Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo também se mostra favorável ao critério adotado: “Sem dúvida, a opção por explicitar na lei, taxativamente, quais surgem (sic) as infrações penais, precedentes ao crime de ‘lavagem’ se mostrou (sic) correta, na medida em que garante maior estabilidade ao juízo de tipicidade, preservando a segurança jurídica” (2004, p. 112). Porém, a posição adotada pela lei e por parte da doutrina apresenta sérios inconvenientes, dentre os quais estes que destacamos a seguir. A criminalidade é um fenômeno dinâmico, e várias condutas que, à época da lei, não implicavam macrolesividade, hoje passam a ter esse caráter.[7] Do mesmo modo, um determinado crime pode, com o passar do tempo, deixar de ser considerado grave ou mesmo ser abolido. O legislador teria de contar com excepcional atenção para realizar constantemente a atualização da lei (CERVINI, OLIVEIRA e GOMES, p. 332/333).
Outro problema grave é a habitual falta de técnica por parte do legislador. Na própria Lei 9.613, de 1998, temos exemplos disso: apesar de previsto como crime antecedente, não há o tipo penal do terrorismo, muito menos o de seu financiamento. Ao contrário do que declarou Pitombo, a segurança jurídica abala-se, de fato, é com esse tipo de procedimento.
Há outro sério inconveniente, denunciado por Rodolfo Tigre Maia:
“De se observar que a técnica jurídica de individuação dos crimes primários, na tentativa de restringir o alcance da incriminação por reciclagem aos crimes mais graves e rentáveis acaba por ignorar uma realidade imanente ao processo econômico da lavagem de dinheiro: os responsáveis pelas operações (...) muitas vezes ignoram os detalhes dos crimes de que resultaram tais ativos. Podem até saber (...) que se trata de dinheiro ‘sujo’, mas podem (rectius: querem) desconhecer a natureza específica do crime-base. Em conseqüência, este método conduz a enormes dificuldades na fixação da responsabilidade penal, em especial na esfera do tipo subjetivo (cf. MAIA, 2004, p. 70).”
Como vimos, as legislações têm abandonado o rol taxativo de crimes antecedentes em prol de maior abrangência do tipo penal da lavagem de dinheiro. Nesse sentido, foram construídas estas alternativas: considerar como crimes antecedentes apenas os denominados “graves”, ou seja, aqueles que contam com uma pena mínima ou máxima acima de determinado patamar; ou considerar como antecedente à lavagem de dinheiro qualquer infração penal.
Vistas essas alternativas, torna-se essencial consultar a Convenção de Palermo, promulgada no Brasil pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004 (BONFIM e BONFIM, 2005, p. 216-247). Em seu art. 6º (2º, a), dispõe que cada Estado deverá estender o tipo da lavagem de dinheiro “à mais ampla gama possível de infrações penais”. Logo após (art. 6º, 2º, b), estabelece que, no mínimo, devem ser incluídas “todas as infrações graves”. O termo “infração grave” foi definido pelo seu art. 2º (b) como o “ato que constitua infração punível com pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos”.
Tendo a convenção caráter vinculativo para os países aderentes, o Brasil, sendo um dos signatários, assumiu o compromisso de estabelecer como crimes antecedentes todas aquelas infrações penais cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos.[8] Ressaltamos que se trata de um critério básico, podendo o país aderente considerar como conduta subjacente à lavagem de dinheiro qualquer infração penal.
Dessa forma, para o art. 1º da Lei 9.613/98, sugerimos as seguintes redações, alternativamente:
Proposta I: “Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, a origem, a localização, a disposição, a movimentação ou a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime punível com pena privativa de liberdade cujo máximo não seja inferior a quatro anos.
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.” Proposta II: “Art. 1° Ocultar ou dissimular a natureza, a origem, a localização, a disposição, a movimentação ou a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.”
Bibliografia
BONFIM, Márcia Monassi Mougenot;
BONFIM, Edílson Mougenot. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2005.
CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime). Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/1998. São Paulo: Malheiros, 2004.
PITOMBO, Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro. A tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
SILVA, César Antonio da. Lavagem de dinheiro. Uma nova perspectiva penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[1] Ressalte-se que não existe no ordenamento jurídico pátrio a definição de organização criminosa, o que torna bastante problemática a hipótese do art. 1°, VII da lei.
[2] A despeito de não contarmos com a tipificação desse crime no ordenamento jurídico nacional.
[3] Há certa divergência na doutrina, inclinando-se a maioria dos doutrinadores para considerar que o bem jurídico protegido pela lei é a ordem econômico-financeira. Cf, por todos, SILVA, César Antonio da. Lavagem de dinheiro. Uma nova perspectiva penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 39.
[4] Sem descuidar, é claro, da compatibilidade das normas internacionais com a Constituição brasileira.
[5] Disponível também no site: https://www.fazenda.gov.br/coaf/portugues/i_download.htm. Acesso em: 12 fev. 2007.
[6] A lavagem de dinheiro é um procedimento complexo, pois trata de grandes quantias, angariadas normalmente por organizações criminosas que praticam crimes de maior lesividade social. Os bens provindos da criminalidade de massa, por outro lado, deságuam na receptação (Código Penal, art. 180) ou no favorecimento real (CP, art. 349).
[7] O tráfico de mulheres é o exemplo mais contundente.
[8] Parâmetro bastante semelhante àquele adotado pelo art. 44 do Código Penal para a substituição da pena privativa de liberdade por pena alternativa.
Procurador do Banco Central do Brasil em Brasília. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito Penal e Processual Penal na Universidade Paulista (Unip). Professor de Direito Penal, Processual Penal e Administrativo nos cursos Objetivo e Pró-Cursos. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Co-autor do livro "Direito Penal Acadêmico". Home Page: http://www.alexandremagno.com
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Alexandre Magno Fernandes. Dos crimes antecedentes à lavagem de dinheiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2008, 06:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15870/dos-crimes-antecedentes-a-lavagem-de-dinheiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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