Introdução
O presente estudo tem por escopo discutir o momento processual adequado para o recebimento da denúncia no rito ordinário (estudo que se aplica também quanto ao rito sumário) após o advento da Lei 11.719/08.
A reforma do Código de Processo Penal, através das Leis 11.689/08 (que disciplina o procedimento do júri), 11.690/08 (acerca das provas no processo penal) e 11.719/08 (sobre novas regras procedimentais), teve o intuito de adequar o processo penal à Constituição Federal de 1988, vez que o Código de Processo Penal pátrio data do longínquo ano de 1941.
Entretanto, a reforma, vez em razão de mera divergência de interpretação pelos estudiosos, vez por confusões criadas pelo próprio legislador, é alvo de diversas controvérsias no tocante aos artigos modificados.
Uma destas controvérsias advindas da reforma do Processo Penal é no tocante ao momento do recebimento da denúncia nos procedimentos ordinário e sumário. O motivo da celeuma reside no fato de tanto o artigo 396 quanto o artigo 399 do CPP preverem o recebimento da denúncia pelo magistrado em momentos processuais distintos.
Do antigo e novo rito no procedimento ordinário
No antigo rito do Código de Processo Penal, após o oferecimento da denúncia (no caso de ação penal pública), o magistrado manifestava acerca do recebimento da peça acusatória, e, caso a admitisse, designava audiência de interrogatório do réu. Após interrogado o réu, era concedido ao defensor o prazo de três dias para apresentação de defesa prévia, sendo a seguir ouvidas as testemunhas da acusação e defesa, nesta ordem. Terminada a oitiva, as partes manifestavam acerca de diligências imprescindíveis (fase conhecida no meio jurídico como fase do 499, referindo-se ao artigo do CPP que a previa), que, após cumpridas ou indeferidas, ou não as havendo, acusação e defesa apresentavam suas alegações finais, vindo a seguir o magistrado a sentenciar.
Já no novo rito, a previsão da lei é a seguinte: oferecida a denúncia e não sendo a mesma rejeitada preliminarmente, o juiz recebe a denúncia (art. 396 do CPP) e cita o acusado para responder à acusação. Respondida a acusação e não tendo o magistrado absolvido sumariamente o réu, cabe ao mesmo receber a denúncia (art. 399 do CPP) e designar audiência instrução, audiência esta que serão ouvidos o ofendido, testemunhas de acusação e de defesa, e em seguida será interrogado o acusado. Nesta mesma audiência serão ofertadas alegações finais orais e o magistrado proferirá sentença, salvo se houver diligência imprescindível ou a causa for complexa, sendo que nesta hipótese as alegações finais serão escritas.
No antigo rito, o procedimento de desenrolava de forma cristalina, sendo que no novo rito o legislador previu dois momentos para o recebimento da denúncia, o que no primeiro momento causou estranheza ao mundo jurídico.
Assim, devemos perquirir qual o momento adequado para o recebimento da denúncia, pois é nossa função, como aplicadores do direito, interpretar as normas jurídicas e buscar seu real significado.
Das soluções possíveis para o impasse
Em virtude da celeuma criada pelos artigos 396 e 399 do Código de Processo Penal, após alteração pela Lei 11.719/08, vemos três soluções possíveis para resolver o impasse acerca do recebimento da denúncia.
A primeira solução seria somente o recebimento na fase do art. 396 do CPB, visto ser a fase em que o juiz recebe o feito e analisa sua viabilidade, e passado o exame de admissibilidade, cita o réu posteriormente para angularizar a relação processual. Já uma segunda solução seria somente o recebimento na fase do art. 399 do CPB, pois teria o magistrado mais elementos para admitir ou rejeitar a denúncia após o acusado ter apresentado seus argumentos. Finalmente, a terceira solução seria a interpretação literal da lei, devendo o juiz realizar dois recebimentos da denúncia.
Passamos a analisar as três hipóteses em busca da que melhor se coaduna com o ordenamento jurídico, vez que o direito é sistema de normas que se completam.
a) Do recebimento somente na fase do art. 396 do CPB:
Entendemos, na companhia de renomados autores, ser esta posição a mais acertada, pelos motivos que passamos a delinear.
No novo rito ordinário do processo penal, anteriormente ao interrogatório e oitiva de testemunhas, foi introduzida uma fase de defesa preliminar, onde o acusado poderá se defender para eliminar de plano acusações sem maior seriedade e viabilidade, evitando grandes e inúteis batalhas judiciais, as quais certamente ofenderão seu status dignitatis.
Entretanto, antes mesmo do magistrado determinar a citação do acusado para apresentar sua defesa inicial, deve fazer um juízo de admissibilidade (prelibação), verificando se estão presentes as condições da ação.
Em caso de ausência de algum destes, deve rejeitar a denúncia de plano, mas se presentes todas as condições, deve receber a denúncia e determinar a citação do réu, pois houve admissão preliminar da acusação.
Isto é o que está disposto de forma expressa no art. 396 do Código de Processo Penal.
Embora o art. 399 também menciona o recebimento da denúncia, o entendimento predominante é no sentido de que houve omissão no texto legal, que deveria assim ser redigido: “Recebida a denúncia ou queixa, e não sendo o caso de absolvição sumária, o juiz designará dia e hora para a audiência.”
Este é o posicionamento de Andrey Borges de Mendonça em Nova Reforma do Código de Processo Penal, págs. 366/367.
Ademais, no Senado Federal foi apresentada a Emenda 08 no intuito de suprimir o termo “recebê-la-á” do art. 396 vez que o recebimento estaria previsto no art. 399 do CPP, sendo tal emenda rejeitada na Câmara dos Deputados, corroborando o entendimento de que o recebimento ou rejeição da denúncia se dá antes da oitiva do acusado.
Acerca do tema, importante lição de Andrey Borges de Mendonça em Nova Reforma do Código de Processo Penal, págs. 365/366:
“A interpretação sistemática do CPP, especialmente das alterações introduzidas pela reforma, também reforça nossa posição. Como é sabido, adaptando-se a expressão cunhada pelo Ministro Eros Grau, o CPP não pode ser interpretado em tiras. Imprescindível a interpretação sistemática, pois, segundo leciona Carlos Maximiliano, 'Por uma norma se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as consequentes, e do exame das regaras em conjunto deduzir o sentido de cada uma'. Neste sentido, o caput do art. 363, com redação dada pela reforma, é explícito ao afirmar que o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado. Veja que o próprio art. 396 determina que, não rejeitada a denúncia, seja feita a citação do acusado. Ocorrendo a citação, o processo estará com a sua formação completa, nos termos do próprio art. 363. Se assim é, impossível que esteja completa a relação jurídica sem que tenha ocorrido anterior recebimento da denúncia. Em outras palavras, não seria possível falar em processo completo – o que se dá com a citação do acusado - sem que houvesse ao menos recebimento da denúncia. Caso se entendesse que a citação ocorreria antes do recebimento da denúncia, existiria uma situação esdrúxula, pois o processo estaria com sua formação completa – relação triangular – sem que o juiz tivesse recebido a denúncia ou queixa! A interpretação em sendo contrário – de que o recebimento da denúncia ou queixa somente ocorreria após a defesa escrita – afrontaria não apenas a interpretação sistemática, mas especialmente a redação do art. 363, introduzida pela reforma.
Ademais, entendemos que seria logicamente impossível a absolvição sumária do acusado sem o anterior recebimento da denúncia. O juiz julgaria qual pretensão improcedente, se sequer recebeu a acusação? Absolveria o acusado de que, se sequer houver recebimento da denúncia? Seria incoerente, em nosso sentir, uma absolvição sem que houvesse processo, sem recebimento da denúncia.”
No mesmo sentido, acerca do momento do recebimento da denúncia, importante lição de Guilherme de Souza Nucci em Código de Processo Penal Comentado 8ª ed., pág. 715 (comentando o art. 396 do CPP):
“40. Recebimento da denúncia ou queixa: estando apta a peça acusatória, preenchidas as condições da ação penal, logo, havendo justa causa, deve o magistrado receber a denúncia ou queixa. Assim fazendo, determina-se a citação do réu para responder à demanda, nos mesmos moldes estabelecidos para o procedimento do júri (art. 406, caput, CPP).”
E pág. 719/720 (comentando o art. 399 do CPP):
“ 54. Início da instrução e erro de redação: é inegável o equívoco legislativo na redação do art. 399 ('recebida a denúncia ou queixa'), dando a entender que seria a peça acusatória recebida duas vezes, pois já fora realizada essa atividade por ocasião do disposto no art. 396, caput. Tanto que este artigo é bem claro, mencionando, até de maneira desnecessária, que a peça acusatória, se não for liminarmente rejeitada, será recebida. Ocasião em que o magistrado ordenará a citação do réu para responder à acusação. Ademais, por uma questão de lógica, somente tem sentido falar-se em absolvição sumária, quando a relação processual aperfeiçoou-se, ou seja, a peça acusatória foi recebida, o réu foi citado e ofereceu sua defesa. Se a defesa prevista no art. 396-A fosse mera defesa preliminar, a denúncia ou queixa não teria sido recebida, nem falaria em absolvição sumária, mas em simples rejeição da peça acusatória, caso acolhidos os argumentos defensivos. (...) Por isso, a única cautela para dar sintonia aos artigos do CPP, com nova redação, é ignorar a expressão 'recebida a denúncia ou queixa', prevista no início do art. 399. Quis-se dizer: 'tendo sido recebida a denúncia ou queixa, nos moldes do art. 396, caput, e não tendo havido a absolvição sumária, nos termos do art. 397' deve o juiz continuar com a instrução. Nada mais que isso.”
Também é valiosa a lição de Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto em Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, pág. 338 (quando comenta o art. 396 do CPP):
“Aqui a denúncia ou queixa já foi recebida, como mencionado, textualmente, no artigo em exame. Receber não é sinônimo de ter em mãos. O vocábulo receber somente admite sua interpretação sob o aspecto técnico e, nesse aspecto, recebimento da denúncia ou queixa é o ato pelo qual o juiz acata a acusação, nela vislumbrando elementos mínimos que autorizam a deflagração do processo penal. Ademais, a lei determina a citação do acusado. Ora, citação pressupõe, necessariamente, a existência da ação penal. Nesse sentido, aliás, a nova redação do art. 363. in verbis: 'O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado'. É verdade que o art. 399 torna a mencionar o recebimento da denúncia ou queixa, dando a impressão desavisada que tais acusações, aé então não haviam sido recepcionadas. Não é assim. Na verdade, o vocábulo recebida foi indevidamente empregado pelo legislador, que teria andado melhor caso utilizasse, no art. 399, a expressão 'não tendo sido o acusado absolvido sumariamente'. A propósito, não se imagina que alguém possa ser absolvido sem que esteja sendo processado.”
Assim, pelo que foi exposto, o entendimento de que o recebimento da denúncia deve ser feito logo após o oferecimento da mesma pelo Ministério Público é da essência do novo sistema processual penal, pois, estando o processo completamente formado com a citação do acusado (actum trium personarum), o magistrado deverá integrar a relação processual manifestando objetivamente quanto a admissão da denúncia.
Ademais, o juiz deve analisar o processo antes de notificar o acusado para apresentar defesa preliminar, pois se faltar condição da ação, deve rejeitar de imediato a pretensão acusatória. Ao não rejeitar a denúncia e determinar a citação do acusado, o magistrado está fazendo um juízo de admissibilidade, o que entendemos ser um recebimento da denúncia.
b) Do recebimento somente na fase do art. 399 do CPB:
Os defensores desta hipótese arvoram-se no fundamento de que o processo somente se instaura após a defesa preliminar, em virtude da previsão constitucional da ampla defesa e do contraditório.
Com a denúncia, o magistrado deve notificar o acusado para apresentar defesa preliminar, e, após a mesma apresentada, tendo o réu realizado o contraditório, o juiz, aí sim, verificaria se é admissível a acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia.
Neste sentido Lenio Luiz Streck em Reforma penal: O impasse na interpretação do artigo 369 do CPP, Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2008:
“Desta forma, o processo somente será instaurado após a defesa escrita e circunstanciada. Essa é a chave do problema. Citação implica processo penal instaurado. E isso não pode ocorrer se quisermos preservar a tese do que a reforma veio para instaurar o império da igualdade, da ampla defesa e do contraditório. É este o ponto fulcral, resolvido, agora, em sede de interpretação conforme a Constituição, até para não tornar inútil o artigo 399.”
Embora os argumentos sejam sedutores, ousamos divergir desta corrente.
Entendemos que fere mais a dignidade do acusado ter de ser ouvido para após o juiz manifestar acerca do recebimento da denúncia, fazendo com que o réu fique com a espada da persecução penal sobre sua cabeça, do que abrir ao magistrado a análise logo que receba o feito, podendo rejeitar a denúncia logo de plano.
Ademais, após a defesa preliminar, o magistrado tem agora a possibilidade de absolver sumariamente o réu (o que para os legalistas não existia no rito anterior). Assim, mesmo recebida a denúncia, se o acusado demonstrar as hipóteses do art. 397 do CPP, poderá o magistrado absolver o réu das acusações.
O entendimento do recebimento da denúncia somente na fase do art. 399 do CPP talvez fosse mais plausível sob a égide do rito antigo, quando o juiz depois de receber a denúncia deveria levar o processo até o final, onde somente após toda a instrução poderia absolver o acusado.
O novel instituto da absolvição sumária permite ao magistrado encerrar o feito desde logo quando o acusado demonstra ser o mesmo inviável.
Assim, em decorrência de própria previsão legal de que o processo tem sua formação completa com a citação do acusado e de que o contraditório não é violado face a possibilidade de absolvição sumária do acusado, entendemos que esta hipótese não deve prevalecer.
c) Do recebimento tanto na fase do art. 396 quanto na fase do art. 399 do CPB:
Esta hipótese arvora-se somente na interpretação literal da lei, sem buscar o verdadeiro intuito do legislador.
Não podemos conceber dois recebimentos da denúncia, pois muitas conseqüências resultariam de tal fato.
Primeiramente, o recebimento da denúncia é causa interruptiva da prescrição, sendo que se aceitássemos dois recebimentos, o réu teria contra si duas interrupções da prescrição. Mesmo que aceitássemos que a prescrição somente seria interrompida uma vez, em qual dos recebimentos isso ocorreria?
O recebimento é a admissão da acusação pelo magistrado, admissão esta que é feita somente uma vez no intuito de se instaurar a relação processual entre as partes.
São duas coisas bem diferentes o recebimento da denúncia e a absolvição sumária, sendo que estas podem coexistir em perfeita sintonia, pois embora o magistrado tenha admitido a acusação (presença de condições da ação) pode absolver o acusado de forma sumária (se este provar causa excludente de ilicitude ou culpabilidade, demonstrar estar extinta a punibilidade, etc).
Assim, não encontra sustentabilidade jurídica a tese de dois recebimentos da denúncia.
Conclusão
Por tudo que foi acima delineado, em uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, vislumbramos que o recebimento da denúncia deve ser feito na fase do art. 396 do Código de Processo Penal, isto é, quando o juiz tem o primeiro contato com a denúncia, devendo rejeitá-la quando ausentes as condições da ação, e recebê-la quando em ordem, determinando neste último caso a citação do acusado para a formação plena do processo.
Quanto ao art. 399 do CPB, entendemos que o mesmo deva ser entendido assim: “Recebida a denúncia ou queixa, e não sendo caso de absolvição sumária, o juiz designará audiência.”.
No âmbito do Ministério Público, temos nos confrontado com a diversidade de entendimento quase que diariamente, sendo que em relação ao recurso cabível, quando o magistrado entende que o recebimento deve ser realizado somente na fase do art. 399 do CPP, manejamos a correição parcial com o argumento que o recebimento tardio enseja inversão tumultuária do processo. O recurso tem o escopo de que o Tribunal determine ao magistrado a quo a análise quanto ao recebimento ou rejeição da denúncia na fase do art. 396 do Código de Processo Penal, retroagindo os efeitos da decisão de recebimento ou rejeição ao dia do despacho que determinou a citação do réu.
Certamente as discussões sobre este tema ainda subsistirão por muito tempo, acalmando-se com a interpretação que for dada pelos nossos Tribunais Superiores.
Referências bibliográficas:
GOMES, Luiz Flávio et. al. Comentários ãs Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: RT, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed., São Paulo: RT, 2008.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008.
STRECK, Lenio Luiz. Reforma penal: O impasse na interpretação do artigo 369 do CPP. Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2008.
HOLTHE, Leo van. Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Podivm, 2008.
Promotor de Justiça no Estado do Tocantins, titular da Promotoria de Colinas do Tocantins. Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Estadual de Montes Claros/MG.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUILHERME GOSELING ARAúJO, . O recebimento da denúncia no rito ordinário após a Lei 11.719/08 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2008, 09:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16115/o-recebimento-da-denuncia-no-rito-ordinario-apos-a-lei-11-719-08. Acesso em: 23 dez 2024.
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