Quando se fala em “judicialização da política” se está a falar no papel que as Cortes Constitucionais passaram a desempenhar depois da Segunda Guerra Mundial, no sentido de defenderem os direitos humanos – liberdades públicas – direitos fundamentais das agressões provenientes do Estado, com ênfase, mas também de outros entes, de natureza privada – multinacionais, corporações financeiras, industriais, etc., dentro do ambiente judicial, valendo-se das técnicas dos processos judiciais. Além do foro natural que é o Parlamento, os debates políticos estariam sendo levados aos Tribunais, especialmente por parte das minorias sem forças bastantes para oporem-se à vontade da maioria. Trata-se de fenômeno global – para usar um termo tão em moda -, muito longe de constituir-se em brasileiro, como se pode ver em Mauro Cappelletti, Processo, Ideologias e Sociedade, Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. E embora a “judicialização da política” tenha merecido estudos sérios e interessantes no Brasil – destaco o livro “A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil”, de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, Ed. Revan, 1999 – ainda costuma ser associada a alguma espécie de usurpação do papel do Congresso Nacional pelo STF, ou pelos demais juízes e Tribunais, Superiores ou de revisão. Diga-se, de passagem, que essa visão extremamente conservadora, dissociada dos fenômenos históricos que marcaram profundamente as sociedades – as duas Grandes Guerras Mundiais, os regimes totalitários, nazista e fascista à frente, e a instituição das Cortes Constitucionais na Europa – ignora, também, a cada vez maior desimportância que os Parlamentos têm sofrido na vida cotidiana de todos os Estados Democráticos, com a solitária exceção dos EUA. No caso brasileiro, nem é preciso teorizar sobre isso – ou já nos esquecemos dos escândalos sobre escândalos que têm sido expostos aos nossos olhos, inclusive, transmitidos pela TV, como o “mensalão”, sem falar em tantos outros, como o do “Orçamento”, das “ambulâncias”, das “ONGs”...O que se deseja conservar, então, como reação àquela chamada “judicialização da política” ? E, não obstante, é essa a visão que é divulgada na grande imprensa, como ilustra a coluna de Merval Pereira no jornal O Globo, de 23.10.2007. O jornalista afirma que “tanto a “judicialização” da política, quanto a “politização”da Justiça são fenômenos reais, mas pontuais, e certamente passageiros”. O erro é completo. O fenômeno da “judicialização da política” só tem feito crescer e avultar de importância, nos últimos sessenta anos. E nada sugere que possa vir a ser revertido, enquanto a proteção aos direitos humanos for a bússola que deverá nortear as relações jurídicas e sociais nos Estados Democráticos de Direito.
Mas um outro fenômeno, menos abordado, conquanto tão freqüente e relevante que o da “judicialização da política”, é o da “judicialização da administração”. Note-se que não estou a me referir às Justiças Administrativas que existem na Europa, ou nas Administrações Quase – Judiciais que existem nos EUA, como as Agências inspiraram, de certo modo, as nossas Agências Executivas e Reguladoras. Estou falando da assunção, pelo Poder Judiciário, da tarefa de gerir os serviços públicos essenciais, em cada caso concreto, e isso em razão de omissão do Estado em fazê-lo. Acesso das crianças ao ensino fundamental, no que a maioria dos Municípios têm se omitido; regulação do direito de greve dos servidores públicos federais; da fidelidade partidária, ambas por causa da omissão do Congresso Nacional em legislar; regulação de serviço de táxi e aquisição de autorização por condutores auxiliares; e vários outros exemplos, dos quais o último são os juizados especiais nos aeroportos, como tentativa de se possibilitar ou a prestação imediata da obrigação específica de transportar o passageiro e sua bagagem, negligenciada pelas companhias de transportes aéreos, ou uma compensação justa ao prejudicado. Lembre-se o cenário que antecedeu à criação desses juizados especiais, e a omissão absoluta, que já completa mais de ano, da ANAC, da INFRAERO, do DAC, do Ministério da Defesa, e das companhias aéreas, no sentido de resolver um por um os graves problemas de infra-estrutura que estão a corroer não só os serviços de transportes aéreos, mas a própria imagem do Braisl no exterior, condenado como já foi pelas principais entidades internacionais representativas das empresas de transportes aéreos, controladores de vôo e seguradoras. Pois bem: tal como a “judicialização da política” foi incompreendida pela grande imprensa, também a “judicialização da administração” não escapou de críticas profundamente equivocadas. Assim, por exemplo, o jornalista André Pettry, em coluna na revista Veja de 12.10.2007, perguntou “por que as agruras dos brasileiros que se enfileiram nas escolas, nos ônibus, nos hospitais, nunca conseguiram amolecer o generoso coração dos juízes brasileiros”. A desinformação é completa. A uma, não se trata de “amolecer o coração dos juízes brasileiros”. Os juízes não estão adentrando na tarefa de administrar o caos dos serviços públicos essenciais que deveriam ser prestados pelo Executivo por terem tido o “coração amolecido”, mas sim porque, nos limites que o Direito lhes permite, foram chamados a resolver conflitos individuais e coletivos. Estão a exercer suas funções, e o novo papel que é administrar o caos criado pelo Executivo e por suas inexistentes ou falhas políticas públicas, com o único instrumento que têm, que é o Direito. E estão a fazê-lo com cortes orçamentários em tamanho “nunca vistos na História desse País”, para usar uma expressão tão a gosto nos dias de hoje. Sabem perfeitamente que não será o Direito que modernizará o CINDACTA, que criará um novo modelo de gerenciamento dos aeroportos brasileiros, que construirá e ampliará aeroportos, que treinará novos controladores de vôo. Tudo o que podem fazer é dar a cada um o que é seu, na medida do que for devido, e naquilo que for possível, por inteiro. A duas, sim, jornalista: crianças têm sido matriculadas em escolas públicas, e hospitais têm contratado médicos e pessoal de apoio, graças a decisões judiciais. O Judiciário tem sido chamado a ocupar um vácuo deixado pelo Legislativo e, em muito maior extensão, pelo Executivo. Não virá do Judiciário a solução definitiva desses e de outros problemas de infra-estrutura do País, e seria profunda demonstração de ignorância, ou de má-fé, exigir-se dele o contrário. Mas, nessas e em outras situações que estão a prejudicar os brasileiros a cada santo dia, o Judiciário não tem se omitido. Hoje em dia, do jeito que as coisas vão, onde virou moda ninguém assumir qualquer responsabilidade por aquilo que não fez, mas deveria ter feito, não é pouca coisa.
Uma última reflexão: Não é interessante observar que, quando a política ou a administração pública deixam de ser confiáveis e de funcionar, que seja o Judiciário chamado a fazê-lo? Não será essa uma demonstração prática da legitimidade democrática dos juízes?
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