1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho analisa, à luz do direito brasileiro, a prática da difamação através dos sites de relacionamento, tomando como base o mais popular no Brasil: o Orkut.
O objetivo do estudo é demonstrar que a atuação no direito não se limita ao mundo não virtual e, conseqüentemente, descaracterizar o paradigma da internet como um espaço anárquico.
Num primeiro momento, o trabalho apresenta um breve histórico sobre a internet e sites de relacionamento; o fenômeno mundial que revolucionou a interação online. Posteriormente, apresenta a difamação bem como sua possibilidade de ocorrência via Orkut.
A conclusão salienta a relevância do estudo para o Direito, como ciência social dinâmica, demonstrando a importância de uma legislação que preserve e proteja o cidadão bem como toda a sociedade dos males advindos das novas tecnologias.
2. DIFAMAÇÃO VIA ORKUT: EFICÁCIA DOS DISPOSITIVOS LEGAIS VIGENTES
O final século XX foi marcado pela revolução tecnológica. Nunca antes na história a tecnologia utilizada pelo homem avançou tanto em tão pouco tempo. A mesma tecnologia que surgiu para tornar suas tarefas mais simples, rápidas e eficientes trouxe consigo a necessidade de reavaliar conceitos e valores.
Uma das inovações deste período foi a Internet, definida tecnicamente como o conjunto de redes que se comunicam através de protocolos comuns: Protocolo de Controle de Transmissão (TCP) e Protocolo de Internet (IP). (SAWAYA, 1999, p. 241)
Com a criação da internet, houve o surgimento de novas formas de comunicação e interação entre pessoas, especialmente através de sites de relacionamento. Essa possibilidade de divulgação quase instantânea de imagens e notícias trouxe inúmeros benefícios, por outro lado, expôs mais a vida daquelas pessoas que se utilizam de tais recursos.
A motivação de criar uma conta num desses sites de relacionamento é variada. As mais comuns são a possibilidade de utilizar desta ferramenta simples e prática para fazer novas amizades, manter contatos, reencontrar amigos e encontrar grupos de interesses semelhantes.
Com a grande adesão da população, o mesmo espaço concebido para troca de informação foi a via encontrada por alguns indivíduos para praticarem crimes, especialmente os contra honra.
O objetivo do presente trabalho é analisar a ocorrência, circunstâncias e características da difamação praticada no mundo virtual, em especial nos sites de relacionamento. Para tanto tomamos como base o Orkut, maior site de relacionamentos do Brasil.
Segundo dados divulgados, 53,94% dos seus clientes são compostos por brasileiros que possuem uma conta no site (ORKUT, 2008). Criado por Orkut Buyukkokten, foi lançado mundialmente em 2004 pela poderosa Google e já foi o maior site de relacionamentos do mundo.
A difamação, prevista no art. 139 do Código Penal, consiste na imputação de fato ofensivo à reputação da vítima. A existência de tal dispositivo no ordenamento penal deve-se ao interesse do Estado proteger a reputação do sujeito passivo no meio social e, com isso, assegurar a pacificação social, meta basilar de qualquer ordenamento jurídico.
O fato deve ser determinado, específico e não criminoso requisito último que, se satisfeito, configuraria a calúnia. Independentemente da veracidade do fato ou se constituir uma contravenção, por não ser considerada crime, ocorrerá a difamação. Argumenta nesse sentido MIRABETE (2007, p. 137):
Ao contrário do que ocorre com a calúnia, não é necessário que a imputação seja falsa. Há crime de difamação ainda que verdadeiro o fato imputado, se desabonador ao sujeito passivo. Justifica Hungria a impossibilidade da prova da verdade: ‘Desde que não se trate de imputação de um crime, como na calúnia, o interesse social deixa de ser o de facilitar o descobrimento da verdade, para ser o de impedir que um cidadão se arvore em censor do outro, com grave perigo para a paz social’.
A conduta pode ser praticada por qualquer pessoa desde que esta possua um cadastro no site de relacionamento. A utilização de cadastros falsos, conhecidos como “fakes”, não obsta a atividade persecutória, pois a Google, empresa gestora do Orkut, fornece mediante solicitação judicial informações tais como o endereço de IP, conforme o previsto em sua política de privacidade.
A crença de que a aplicabilidade das leis não se estende ao mundo virtual, a possibilidade de constranger e ofender a honra da vítima perante milhares pessoas com só alguns cliques, bem como a facilidade de extravasar certa opinião quando não se está frente a frente com a vítima são os motivos mais comuns que levam à pratica desse crime.
As vítimas podem ser quaisquer pessoas, sejam elas doentes mentais ou menores de 18 anos, independente de utilizar ou não do serviço do site, afinal perfis falsos e comunidades que atinjam a honra objetiva do ofendido podem ser criados.
Comentários especiais são feitos em relação à pessoa jurídica. Para parte da doutrina não haveria possibilidade de crime contra a honra, pois dentre os vários argumentos, só possui honra a pessoa humana. Contudo, a doutrina majoritária tem se posicionado a em sentido contrário:
É certo que a definição legal do art. 139 do Código Penal fala “alguém”. Mas “alguém” significa “alguma pessoa”, em face do que se pode entender que o tipo cuida de toda espécie de pessoa, seja física, seja jurídica. [...] Tanto que, nos termos da Súmula nº 227 do STJ, “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”. (JESUS, 2005 p. 207)
Não podemos confundir a difamação com o direito de liberdade de expressão previsto no art. 5º, inciso IV, da Constituição Federal. Um cliente insatisfeito tem o direito de manifestar sua insatisfação com determinado produto ou serviço e sua prática em sites ou no próprio Orkut não é considerada ato atentatório à honra objetiva.
Assim já se encontra julgado na jurisprudência:
AÇÃO COMINATÓRIA - Pretensão do banco-autor voltada à condenação do réu a retirar da Internet a página destinada à divulgação da associação de pessoas supostamente lesadas pela instituição, bem como a se abster de manter ou incluir qualquer texto nessa rede de comunicação mencionando sua denominação, sob pena de incidir no pagamento de pena pecuniária - Procedência da demanda decretada em primeiro grau, ao argumento de que a associação em tela que foi criada com o inequívoco propósito de ofender a honra, a imagem e o nome do promovente - Decisório que não merece subsistir - Hipótese em que não emerge dos autos a indigitada ilicitude nos propósitos de criação e divulgação da associação em causa, notadamente o ânimo de difamar - Entidade que foi criada com a finalidade de defender interesses coletivos e individuais daqueles que teriam sido lesados pela instituição financeira, indicando sua página originária na Internet justamente o intuito de cadastramento dos interessados para participar de uma ação coletiva a ser ajuizada contra o banco-autor - Propósito assim delineado induzindo à conclusão de que a palavra lesado foi utilizada tendo em conta o seu significado jurídico, o que arreda a conotação ofensiva apregoada na petição inicial - Inexistência, destarte, de razão plausível para impedir a livre veiculação da existência da associação e de seus objetivos – Apelo provido para o fim de julgar improcedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência. (TJ/SP, 2003).
A consumação do delito ocorre quando qualquer terceiro, usuário do Orkut, visualizar o conteúdo ofensivo à reputação contido em certa comunidade ou na página de recados.
Em relação a consumação via depoimento cabem alguns comentários. Vale lembrar que o depoimento é um espaço que permite a inserção de elogios públicos feitos por terceiros. A publicação desses comentários no perfil está sujeita a aprovação do dono da conta. Se a conta pertencer a só uma pessoa bem como a senha, pode-se vislumbrar a ocorrência da tentativa, pois tais informações não chegarão a terceiros senão com a anuência do titular da conta. Outro argumento seria, dependendo do conteúdo, entender tal situação como injúria, afinal, deste modo, estar-se-ia atingindo a honra subjetiva do ofendido.
Sabendo que a honra é considerada direito disponível, a publicação do material difamatório pela vítima através da aceitação do depoimento descaracterizaria a ilicitude do fato e, conseqüentemente, o delito de difamação. Portanto, dentre as duas hipóteses acima formuladas (tentativa de difamação ou injúria), parece mais correto a opção pela caracterização “in casu” da figura da injúria, já que a tentativa de difamação, na realidade estaria descaracterizada, seja pelo fato de que a honra é bem jurídico disponível, seja pela incidência do crime impossível (artigo 17, CP), já que o conteúdo difamatório não poderia chegar ao conhecimento de terceiros sem a anuência do próprio ofendido, configurando-se uma situação de impropriedade absoluta do meio eleito pelo infrator.
As possibilidades de crime impossível e de tentativa de difamação seriam descartadas, no entanto, se, numa conta criada e administrada por A e B, B tomasse conhecimento primeiro e o fato fosse imputado a A. Nessa situação o conteúdo difamatório teria chegado ao conhecimento de terceiro e o crime de difamação estaria consumado, independentemente de sua divulgação ulterior pelo site de relacionamentos.
No mundo não virtual há divergências em relação a propalação de fato difamatório. NORONHA (apud MIRABETE, 2007, p. 137) e NUCCI (2007, p. 127), por ausência de previsão legal, sustentam a impossibilidade de incriminação do propalador. Em sentido contrário MIRABETE (2007, p. 137) e JESUS (2005, p. 222) entendem que a propalação, apesar de não ter previsão legal assim como ocorre na calúnia, constitui nova difamação. No âmbito virtual, os usuários do Orkut também não estão imunes à propalação de fatos difamatórios. Cita-se, por exemplo, a possibilidade em que A passa a divulgar fotos ou mensagens de conteúdo difamatório de C contidas em página de recados ou álbum de B.
Entende-se que a segunda posição é mais coerente e, dada a exposição instantânea a todos os membros do site, sejam conhecidos ou não da vítima, enseja também o aumento da pena em um terço, conforme disposição do art. 141, inciso III do Código Penal, pois podemos considerar o Orkut como meio facilitador do crime. Aliás, a aplicabilidade da causa especial de aumento de pena sobredita não se limita aos casos de propalação, mas a toda conduta perpetrada através do site de relacionamento ou da rede mundial de computadores, face à sua inegável instrumentalidade facilitadora da divulgação.
Em termos práticos, verifica-se que as vítimas, ao invés de promoverem processos de natureza penal, optam por buscar a tutela jurisdicional cível com o objetivo de, na maioria das vezes, retirar conteúdo difamatório do Orkut e pleitear a devida indenização por danos morais:
REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. OFENSAS PERPETRADAS POR ALUNO AO PROFESSOR ATRAVÉS DE PÁGINA DO ORKUT. DANO MORAL. EXISTÊNCIA. POUCA ESCOLARIDADE DOS RESPONSÁVEIS QUE NÃO SE PRESTA A APAGAR A CONDUTA DO ADOLESCENTE. UTILIZAÇÃO DE XINGAMENTOS E PALAVRAS OFENSIVAS. PROVIMENTO DO APELO PARA CONDENAR OS RESPONSÁVEIS AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, LEVANDO-SE EM CONTA O FATO, SUAS CIRCUNSTÂNCIAS, A CONDIÇÃO DA VÍTIMA E DE SEU OFENSOR. PRECEDENTES NESTE TJRJ E EM OUTROS TRIBUNAIS DO PAÍS. A crença de que é compatível com o ordenamento a conduta de insultar pessoas através da rede mundial de computadores, certamente influi negativamente na formação do caráter e no comportamento de adolescentes, dando uma idéia de permissibilidade, afastada do conceito global de educação. (TJ/RJ, 2008)
REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. CRIAÇÃO DE PERFIL FALSO EM SITE DE RELACIONAMENTOS NA INTERNET. “ORKUT”. CONTEÚDO OFENSIVO À HONRA E À IMAGEM. PROVEDOR QUE, INTERPELADO PELO USUÁRIO SOBRE A FRAUDE, NADA PROMOVE PARA EXCLUIR A CONTA FALSA NEM FAZER CESSAR A VEICULAÇÃO DO PERFIL. NEGLIGÊNCIA CONFIGURADA. DEVER DE REPARAR OS DANOS MORAIS A QUE DEU CAUSA, POR PERMITIR A PERPETUAÇÃO DA OFENSA E O AGRAVAMENTO DA LESÃO À PERSONALIDADE DO AUTOR.
1. Não se olvida que o requerido é um provedor de serviços da Internet, funcionando como mero hospedeiro das informações postadas pelos usuários. Assim, dele não é razoavelmente exigível que promova uma censura preventiva do conteúdo das páginas de Internet criadas pelos próprios internautas, notadamente porque seria difícil definir os critérios para determinar quando uma determinada publicação possui cunho potencialmente ofensivo. O monitoramento prévio de informações, portanto, é inexigível.
2. Em que pese isso, o provedor tem o dever de fazer cessar a ofensa, tão-logo seja provocado a tanto, em razão de abusos concretamente demonstrados. No caso dos autos, mesmo tendo sido interpelado da ocorrência da fraude, o réu quedou-se inerte, nada tendo promovido por cerca de um mês Permitiu fossem perpetradas, a cada dia, novas ofensas à honra e a imagem do autor, agravando ainda mais a lesão à sua personalidade. Foi negligente. Agindo com culpa, praticou ato ilícito, devendo responder perante o autor pela reparação dos danos causados.
3. Dano moral configurado, ante a violação do direito fundamental à honra e à imagem (art. 5º, X, da CF), possibilitada a perpetuação dessa ofensa e o agravamento da lesão, por ato omissivo da ré.
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ/RS, 2007)
3. CONCLUSÃO
O avanço da tecnologia coloca a cada dia novos desafios a serem enfrentados pelo direito. Embora a concepção popular já tenha mudado bastante, ainda é comum encontrar inúmeras pessoas que acreditem que a internet é um espaço sem fronteiras e, portanto, livre da tutela jurisdicional do Estado.
Verifica-se que tal evolução tecnológica impulsiona, por sua vez, a adequações e atualização das legislações penais existentes. Contudo, em relação aos crimes contra a honra, em especial a difamação, verificamos que o texto de 1940 encontra total adequação para os casos ocorridos via internet.
Por fim, conclui-se que a inevitável evolução tecnológica traz reflexos diretos à sociedade. Isso exige cada vez mais preparação do Estado para lidar com essas questões. A discussão exaustiva, como a proposta no presente trabalho é a primeira etapa na busca de soluções justas aos conflitos da vida moderna.
Referências Bibliográficas
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Vol.2. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol.2. 25ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Orkut. Notícias e Dados Demográficos. Orkut, Disponível em: < http://www.orkut. com.br/Main#MembersAll.aspx >. Acesso em: 31.08.2008.
SAWAYA, Márcia Regina. Dicionário de Informática e Internet. São Paulo: Nobel, 1999.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Cibercrimes: estudo da difamação no orkut Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2009, 10:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16363/cibercrimes-estudo-da-difamacao-no-orkut. Acesso em: 23 dez 2024.
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