A sempre atual discussão sobre a descriminalização do aborto costuma ser polarizada entre o bem e mal e, pois, entre supostos defensores da vida (contra a abolição do crime) e defensores da morte (a favor da abolição), como se criminalização significasse a afirmação da vida e a descriminalização a sua negação.
Mas essa polarização constitui, obviamente, uma simplificação grosseira, pois ser a favor da abolição do tipo legal de aborto não significa, necessariamente, ser a favor do aborto, nem da morte. Afinal, descriminalizar o aborto, uma questão de política criminal, não se confunde com apoiá-lo e eventualmente estimulá-lo, que é uma questão moral. O Estado que concede anistia não aprova os crimes anistiados necessariamente.
Com efeito, descriminalizar o aborto, assim como descriminalizar o adultério ou não criminalizar a prostituição ou o incesto, significa reconhecer apenas que se trata de um comportamento essencialmente moral, que, embora grave, deve ser objeto de outras instâncias de controle social (família, informação etc.). Significa reconhecer ainda que a intervenção penal, por seu caráter inevitavelmente traumático, cirúrgico e negativo (García-Pablos), só é legítima quando minimamente adequada e, pois, idônea a prevenir, em caráter geral e/ou especial, e subsidiariamente, novas práticas abortivas.
Mas no caso da criminalização do aborto essa adequação/capacidade preventiva não existe, porque, apesar do tipo penal, abortos acontecem sistematicamente e quem deixa de praticá-lo assim o faz por outras razões (morais, religiosas etc.), que não o temor de ser preso e condenado ou responder a uma ação penal etc.
Ademais, as cifras ocultas (não registradas oficialmente) do crime de aborto são altíssimas; os poucos casos que chegam à polícia e tribunais geralmente envolvem mulheres miseráveis que se submeteram a práticas abortivas primitivas, com graves riscos à saúde e à vida. Quem tem condições econômico-financeiras o faz com o médico de confiança ou numa clínica especializada, com alguma segurança.
Não é preciso lembrar ainda o quanto a clandestinidade do aborto tem levado mulheres a graves lesões e à morte inclusive. É provável, aliás, que, se os homens engravidassem, o tipo legal de aborto sequer existisse.
Condenar mulheres por aborto é apenas uma forma de acrescentar, inutilmente, uma violência (a pena) a uma outra violência (o aborto). Enfim, à semelhança das drogas, o aborto não é um problema de polícia, mas um problema de saúde pública, a exigir intervenções na causa do problema e não nos seus efeitos, tardiamente, porque problemas estruturais demandam soluções também estruturais. E intervenções individuais, embora necessárias, no mais das vezes apenas servem para manter as coisas como estão a pretexto de mudá-las; logo, têm caráter essencialmente conservador do status quo.
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