I. Introdução
O tema sugere uma indagação inicial: é adequado ou pertinente tratar a Advocacia Pública como instância ou instrumento de controle da juridicidade dos atos da Administração Pública?
Se controle significa aferição de regularidade ou, em outras palavras, verificação de conformidade da conduta analisada com certos padrões previamente estabelecidos, não é possível esquecer da Advocacia Pública nessa discussão. Não restam dúvidas que a Advocacia Pública realiza, na essência das suas atribuições, uma análise da conformação de atos específicos aos ditames da ordem jurídica (1).
A rigor, a temática não é nova (2). Embora só recentemente passou a ocupar mais “espaço” nas reflexões doutrinárias. Registre-se que existem razões significativas para o relativo “esquecimento” do papel de controle a ser desempenhado pela Advocacia Pública.
II. A modernidade e a insuficiência dos instrumentos clássicos ou tradicionais de controle da atuação da Administração Pública
O pensamento político liberal construiu um importante instrumento de controle da atuação estatal: o sistema de freios e contrapesos próprio da divisão dos poderes (ou funções). Admitiu-se, durante considerável período histórico, a suficiência do modelo idealizado, notadamente para conter abusos e desvios no seio do Poder Público.
Ocorre que a crescente complexidade da vida econômica, política e social, inclusive com o alargamento do papel e do “tamanho” do Estado, decretou a insuficiência dos instrumentos clássicos ou tradicionais de controle da vida democrática dentro e fora do Poder Público, em particular o aludido sistema de freios e contrapesos.
A consciência, cada vez mais presente, da necessidade de controles mais efetivos sobre as ações multifacetadas do Poder Público importou na construção de importantes instituições nas últimas décadas. Os exemplos mais eloqüentes desse processo são: a) as Cortes de Contas; b) o Ministério Público; c) os sistemas de Controle Interno e d) a Advocacia Pública. Trata-se de um fenômeno contemporâneo caracterizado pela multiplicação de órgãos constitucionalmente autônomos com nítidas funções de controle, uma verdadeira pluralização de centros de poder para tornar mais eficientes os controles recíprocos no exercício das funções públicas.
De todas as instituições enumeradas, a Advocacia Pública é aquela com menos visibilidade como instância de controle. As razões são as mais variadas. Entre outras, podemos enumerar: a) a visão arraigada da “advocacia dos governos”, ou pior, a “advocacia dos governantes” e b) a “menoridade” institucional. Sublinhe-se que a Advocacia-Geral da União (AGU) não contabiliza sequer quinze anos de funcionamento !!!
III. A Advocacia Pública como instrumento de controle das ações do Poder Público
O controle exercido pela Advocacia Pública presente nas atividades de consultoria e de assessoramento jurídicos é mais evidente. Trata-se, por excelência, da aferição de legalidade e constitucionalidade dos atos administrativos de uma forma geral e das políticas públicas em particular.
Já o controle na atividade contenciosa é menos visível. Entretanto, está igualmente presente e é tão importante quanto aquele observado nas atividades de consultoria e de assessoramento.
Eis alguns dos mais importantes e contundentes instrumentos de controle manuseados na atividade contenciosa: a) ação de improbidade (Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992 – art. 17, caput e parágrafo terceiro); b) ação civil pública (Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 – art. 5o., caput e parágrafo segundo) e c) ação popular (Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965 – art. 6o., parágrafo terceiro) (3).
Destaque especial deve ser dado para o “olhar” de controle sobre o ato administrativo ilegal atacado em juízo. Existe, nessa seara, um imenso espaço para aperfeiçoar a ação da Advocacia Pública como instrumento de controle. Primeiro, é preciso superar as equivocadas visões arraigadas na linha da defesa “a todo custo” ou da defesa “contra tudo e contra todos”. Ademais, nesse campo, a Advocacia Pública pode contribuir de forma decisiva para a redução dos níveis de litigiosidade que chegam ao Poder Judiciário.
Importa consignar, com a ênfase devida, a missão fundamental da Advocacia Pública: sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito (interesse público primário). Isso significa que a defesa do interesse público secundário, meramente patrimonial ou financeiro, pressupõe compatibilidade com o interesse público primário. O conflito inconciliável entre as duas manifestações do interesse público resolve-se, com afastamento do secundário, em favor do primário (4).
Um dos mais significativos exemplos do papel de guardiã da juridicidade exercido pela Advocacia Pública pode ser observado no controle administrativo de legalidade para fins de inscrição de débito em Dívida Ativa. Trata-se de uma atividade pautada pelo interesse público primário. Com efeito, o crédito do Poder Público poderá ter seu registro negado, por vícios jurídicos identificados, com claro e direto prejuízo pecuniário para o Erário. Ademais, tais atividades não se enquadram nas vertentes tradicionais de atuação da Advocacia Pública (consultoria, assessoramento ou contencioso).
É possível afirmar, sem dúvidas ou receios: o mais eficiente controle de juridicidade da Administração Pública pode estar, se provida dos meios necessários, na Advocacia Pública. Indaga-se, quem, além da Advocacia Pública, consegue, por exemplo, evitar ou se antecipar ao desvio ou abuso administrativo?
IV. As garantias e as prerrogativas dos Advogados Públicos
A fixação de garantias e prerrogativas para o exercício das atividades da Advocacia Pública não surge como uma outorga de favores ou privilégios inaceitáveis, particularmente quando se observa a sua nobre missão de sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito, zelando pela incolumidade dos interesses públicos primários.
Afinal, a possibilidade efetiva de contrariar interesses os mais diversos, desde aqueles dos governantes do momento até poderosas manifestações econômicas privadas, reclama a existência de proteções institucionais ao desempenho retilíneo das atribuições da Advocacia Pública.
Assim, as garantias e as prerrogativas dos membros da Advocacia Pública revelam-se meios ou instrumentos de realização plena do interesse público submetido, de uma forma ou de outra, ao crivo de análise dos vários segmentos da Advocacia Pública.
Nessa linha, o projeto da nova Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União contempla acertadamente as garantias e as prerrogativas dos membros da AGU juntamente com as definições, os princípios e as funções institucionais, apesar da existência de título específico destinado aos membros efetivos da instituição (5).
V. O controle do controle: as corregedorias
Dadas as relevantes e republicanas funções da Advocacia Pública como instrumento de controle, impõe-se uma indagação fundamental: quem faz o controle do controle? Tal papel está reservado, em regra, aos órgãos correicionais, ou simplesmente, às corregedorias.
Existe uma (triste) tradição nos órgãos correicionais, com honrosas exceções, de agir basicamente mediante provocação. Pontifica uma postura passiva, a exemplo daquela guarnição, permanentemente de prontidão, para combater o fogo quando esse aparecer, mostrar a face.
É necessário, no entanto, uma inversão substancial na lógica de funcionamento dos órgãos correicionais. Exige-se, como fator decisivo de combate aos desvios administrativos, uma postura ativa consubstanciada no desenvolvimento de linhas de ação e fiscalização inteligentes e propositivas. São procedimentos que buscam se antecipar aos eventos nocivos ou identificá-los de forma mais eficiente (6).
Paralelamente a mudança de postura dos órgãos correicionais, impõe-se a criação de importantes instrumentos institucionais de investigação e fiscalização, inclusive com a fixação de poderes especiais para acesso a dados, informações e manifestações técnicas.
Outra faceta de extremo relevo na atuação correicional está relacionada com a necessidade de conjugação de esforços dos órgãos encarregados de investigações. Tal esforço conjunto, notadamente em casos de maior fôlego, precisam ser efetivado por intermédio de forças-tarefas.
VI. Conclusão
A crescente complexidade da vida econômica, política e social, com o alargamento do papel e do “tamanho” do Estado, revelou a insuficiência dos instrumentos clássicos de controle da vida democrática dentro e fora do Poder Público. Nesse panorama histórico, surgiram, nas últimas décadas, novas e importantes instituições de controle das atividades estatais (Cortes de Contas, Ministério Público, sistemas de Controle Interno e Advocacia Pública).
A Advocacia Pública funciona como instrumento de controle das ações do Poder Público nas atividades de consultoria e assessoramento jurídicos e na atividade contenciosa. A missão fundamental da Advocacia Pública nesses campos de atuação consiste basicamente em sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito. Assim, a defesa do interesse público secundário, meramente patrimonial ou financeiro, pressupõe compatibilidade com o interesse público primário.
As garantias e as prerrogativas dos advogados públicos são mecanismos institucionais voltados para o escorreito desempenho das nobres missões da Advocacia Pública. Deve ser considerado, no trato desse assunto, que a Advocacia Pública pode criar enormes embaraços, alguns intransponíveis, para a realização de interesses que não estão em consonância com a ordem jurídica.
Exige-se, como fator decisivo de combate aos desvios administrativos, uma postura ativa dos órgãos correicionais da Advocacia Pública (o controle do controle). Invertendo substancialmente a lógica clássica de funcionamento passivo ou reativo, impõe-se o desenvolvimento de linhas de ação e fiscalização inteligentes e propositivas.
NOTAS:
(1) O exercício do controle suscita, pelo menos, duas questões cruciais: a) a correção do desvio identificado e b) a punição a ser aplicada ao agente causador ou responsável pelo desvio. Tais enfoques não serão tratados nesta singela reflexão. A abordagem aqui realizada se fixará no “núcleo” da problemática, no controle em si, realizado pela Advocacia Pública.
(2) Na linha da preocupação antiga com o papel de controle da Advocacia Pública, notadamente no plano administrativo federal, pode ser observado o disposto no art. 10, inciso XIII, do Decreto-Lei n. 147, de 1967 (Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional). A norma possui o seguinte formato: “Ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional compete: zelar pela fiel observância e aplicação das leis, decretos e regulamentos, especialmente em matéria pertinente à Fazenda Nacional, representando ao Ministro sempre que tiver conhecimento da sua inobservância ou inexata aplicação, podendo, para êsse fim, proceder a diligências, requisitar elementos ou solicitar informações a todos os órgãos, do Ministério da Fazenda ou a êle subordinados ou vinculados, bem como a qualquer órgão da Administração direta ou autárquica”. Vale ressaltar que a regra em questão encontra-se repetida, em termos, na competência dos Procuradores da Fazenda Nacional de uma forma geral.
(3) No âmbito da Advocacia-Geral da União observa-se uma atenção especial para com o tema. Num primeiro momento, o Procurador-Geral da União, Advogado da União Luís Henrique Martins dos Anjos, por intermédio da Ordem de Serviço n. 27, de 29 de maio de 2007, delegou, com algumas exceções, “aos Procuradores-Regionais e Procuradores-Chefes da União nos Estados a atribuição de decidir sobre a intervenção ou não da União nas ações civis públicas, populares e de improbidade administrativa, nas quais a União seja intimada ou de que tome conhecimento no âmbito do Estado-Membro em que está sediada a respectiva Procuradoria”. Num segundo momento, essa última definição foi inserida no Ato Regimental n. 7, de 11 de outubro de 2007, do Advogado-Geral da União, Ministro José Antônio Dias Toffoli, juntamente com a criação do Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa. “O departamento cuidará especificamente das ações que envolvam a recuperação de verbas desviadas irregularmente das contas públicas, em razão de atos de improbidade, corrupção e fraude. O objetivo é atuar de maneira pró-ativa na proposição de ações judiciais” (conforme notícia veiculada pela Assessoria de Comunicação Social da AGU).
(4) “Com efeito, o dever precípuo cometido aos Advogados e Procuradores de qualquer das entidades estatais é o de sustentar e de aperfeiçoar a ordem jurídica, embora secundariamente, e sem jamais contrariar essa primeira diretriz constitucional, possam esses agentes atuar em outras missões de natureza jurídica ou administrativa voltadas às atividades-meio, como aquelas que se desenvolvem em sustentação às medidas governamentais, à assessoria jurídica, à direção de corpos jurídicos etc.
Mas é importante ter-se presente que, em caso de colidência entre as atribuições secundárias, que porventura lhes sejam cometidas, com aquelas duas, primárias, estas deverão prevalecer sempre, por terem radical constitucional, ou seja, em síntese: por serem missões essencialmente de sustentação da ordem jurídica.” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado Revisitada. Essencialidade ao Estado Democrático de Direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo. Vitória: PGE/ES, 2005, Volume 4. Número 4. Pág. 48).
(5) O projeto de nova Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União foi apresentado pelo Advogado-Geral da União Substituto, Procurador da Fazenda Nacional Evandro Costa Gama, no “Seminário Brasileiro sobre Advocacia Pública Federal”, realizado, em Brasília, nos dias 15, 16 e 17 de agosto de 2007.
(6) São várias as linhas de investigação “alternativas” com significativo potencial de desenvolvimento. Eis algumas delas: a) sindicâncias patrimoniais; b) análise das manifestações jurídicas nos processos administrativos onde foram realizados os maiores pagamentos pela Administração Pública; c) conferência das petições apresentadas nos processos judiciais mais relevantes (segundo vários critérios de aferição) e d) verificação dos pronunciamentos jurídicos nos processos administrativos e judiciais relacionados com “escândalos” noticiados pela imprensa e “operações” conduzidas pela Polícia Federal e pela Controladoria-Geral da União. Registre-se que essas possibilidades “fogem” da lógica tradicional de considerar o órgão jurídico como “foco” (ou “alvo”) de aferição de regularidade e de eficiência dos serviços jurídicos.Procurador da Fazenda Nacional. Corregedor-Geral da Advocacia da União. Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB. Coordenador da Especialização (a distância) em Direito do Estado da UCB. Ex-Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional. Ex-Coordenador-Geral da Dívida Ativa da União. Home page: http://www.aldemario.adv.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Aldemario Araujo. A Advocacia Pública como instrumento do Estado Brasileiro no Controle da Juridicidade dos Atos da Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 mar 2009, 06:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16565/a-advocacia-publica-como-instrumento-do-estado-brasileiro-no-controle-da-juridicidade-dos-atos-da-administracao-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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