Se o oficial do registro imobiliário exigir do apresentante de um título a registro o preenchimento de qualquer requisito atinente ao registro do título, tem o apresentante três alternativas possíveis: 1) atender às exigências; 2) desistir do registro título; 3) requerer seja a dúvida suscitada, para ser dirimida pelo juiz corregedor, ao qual está o oficial do registro imobiliário hierarquicamente vinculado quanto ao mérito dos atos a praticar na condição de agente público (delegado).
Na hipótese 1 o registro será efetuado; na hipótese 2, o apresentante terá direito à restituição dos emolumentos pagos por ocasião da apresentação do título (art. 14, da LRP), exceção feita aos referentes à busca e à prenotação (art. 206, da LRP), mas o título não será registrado e ele não obterá os direitos decorrentes do registro do título (ex. aquisição da propriedade do imóvel, que é decorrente do registro da escritura pública de compra e venda).
Na hipótese 3, o oficial do cartório suscitará um processo administrativo, em razão do requerimento do apresentante do título, ao seu juiz corregedor. Esse processo é chamado de processo de dúvida.
Dúvida, em seu sentido técnico, é a exigência formulada pelo oficial do registro imobiliário ao apresentante do título.
Embora o processo de dúvida culmine com a declaração de procedência ou de improcedência da dúvida, não tem ele a natureza de processo judicial. Ademais, como se pode intuir, não há conflito de interesses entre o oficial do cartório e o apresentante do título, razão pela qual, a princípio, esse processo administrativo não é litigioso.
Por outro lado, não tem o processo de dúvida a natureza jurídica de uma “promoção administrativa”, não sendo o meio cabível para que o oficial do registro imobiliário esclareça suas “dúvidas”, de caráter subjetivo. Muito ao revés, o oficial de registro imobiliário deve apenas fazer as exigências que entender cabíveis e não as que, por “dúvida” sua, pense que, talvez, sejam adequadas ou exigíveis.
Se o juiz julgar que a exigência formulada pelo oficial não é devida, prolatará sentença pela improcedência da dúvida. Não tem direito o oficial do registro imobiliário a recorrer dessa decisão – exatamente por falta de interesse e de legitimidade, uma vez que ele não é titular de qualquer direito em julgamento – devendo apenas cumprir a decisão, registrando o título apresentado. Os efeitos desse registro retroagirão à data da prenotação (protocolo para registro) do título, com efeitos erga omnes.
Contudo, se entender que é devida, prolatará sentença pela procedência da dúvida. Evidentemente, tem interesse e direito o apresentante a recorrer, por meio de apelação (art. 202, da LRP), dessa decisão, que será apreciada pelo órgão judicial que for, administrativamente, superior ao juiz corregedor, nos termos da legislação local.
Importante notar que, a despeito da decisão final, no processo de dúvida, quanto ao cabimento (juridicidade) da exigência formulada pelo oficial (dúvida) ser dada por um órgão do Poder Judiciário, a natureza jurídica dessa decisão não é judicial, mas sim administrativa. Com efeito, o que existe é um pedido administrativo diretamente ao órgão do Estado (cartório imobiliário) encarregado da prestação de um serviço público (registro). Se o agente público (oficial do registro) se nega a prestar esse serviço, de forma fundamentada (dúvida), tem direito o apresentante do título, por meio do instituto de direito administrativo denominado direito de petição (que, no caso, se traduz no direito de requerer seja a dúvida suscitada), a que seja o cabimento da dúvida apreciado pelo juiz corregedor. Além disso, ainda terá o apresentante o direito à apelação dessa decisão, conforme vimos acima. Tudo isso, porém, está no âmbito administrativo, a despeito dessas competências administrativas terem sido conferidas a órgãos do Poder Judiciário.
E tanto é assim que o art. 204, da LRP, não exclui a possibilidade da utilização de processo judicial, ao estabelecer que “a decisão da dúvida tem natureza administrativa e não impede o uso do processo contencioso competente”.
Contudo, na hipótese de existir um terceiro interessado do registro do título, isto é, interessado em que o registro não seja feito, haverá um conflito de interesses. Disso decorre que existirá lide no processo de dúvida?
Imaginemos que duas pessoas procederam ao pedido de registro de duas hipotecas incidentes sobre o mesmo imóvel. Qual será a prioritária? Se a dúvida suscitada por ocasião do primeiro pedido de registro for julgada improcedente, a segunda hipoteca não terá prioridade: como se vê, o interesse do segundo apresentante ficará prejudicado.
O processo de dúvida não julgará, de forma direta, o conflito de interesse entre os apresentantes dos títulos. Ele estará latente no processo de dúvida, mas não será por ele apreciado.
Tem interesse, note-se, esse segundo apresentante a recorrer da decisão que julgar improcedente a dúvida formulada pelo oficial do registro imobiliário em face de título do primeiro apresentante, exatamente porque contraditório com o seu. A Lei de Registros Públicos, inclusive, estabelece esse direito de forma expressa, no art. 202.
No caso, se há dois títulos apresentados por duas pessoas com interesses antagônicos, no bojo de um processo (ainda que de natureza administrativa) que dará uma decisão pela procedência, por via reflexa, de um pedido contraditório com o de outro, há um manifesto conflito de interesses entre dois particulares. Disso não decorre, contudo, que o processo de dúvida tenha a natureza de um processo litigioso, mesmo se latente o conflito de interesses entre os apresentantes dos títulos contraditórios: esse conflito de interesses está fora do âmbito do processo de dúvida.
É importante observar que o objeto do processo judicial – cabível para dirimir de forma direta o conflito de interesses entre as partes - é mais amplo do que o de dúvida: com efeito, no processo judicial podem ser discutidas questões relacionadas com o registro, mas também com o título, com o ato jurídico gerador do título, bem como com a causa ensejadora do ato jurídico em questão. Já no processo de dúvida, apenas se discute questões diretamente relacionadas com o registro do título de um dos apresentantes, que se traduzem no cabimento ou descabimento das exigências formuladas pelo oficial do cartório imobiliário.
Na verdade, a ausência de litigiosidade do processo (administrativo) de dúvida, mesmo na hipótese em que existe um terceiro com interesse conflitante, com direito de recorrer, decorre da ausência de objetivo de ser o conflito de interesses nele dirimido: visa apenas o processo de dúvida afirmar se a exigência formulada pelo oficial é devida ou não. O processo de dúvida não visa dirimir conflito de interesse entre as partes: exatamente por isso ele não pode ser considerado litigioso, a despeito de existir – fora do âmbito do processo de dúvida – um latente conflito de interesses entre os apresentantes dos títulos em confronto.
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