Por força da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, o Código de Trânsito Brasileiro foi modificado para “endurecer” o tratamento dado aos motoristas flagrados ao volante sob a influência de bebidas alcoólicas ou de substâncias psicoativas.
Registre-se que a imprensa, em todas as suas formas de manifestação, tem prestado um relevante serviço à sociedade, notadamente quando dissemina amplamente a política de tolerância zero e ajuda na redução das absurdas estatísticas de mortes no trânsito relacionadas com o consumo de bebidas alcoólicas (1). Por outro lado, a mesma imprensa concorre para criar um ambiente de certa confusão e imprecisão no trato das conseqüências jurídicas das condutas dos motoristas afetados por substâncias proibidas.
A principal mudança introduzida pela aludida lei foi a tolerância zero para o álcool (“alcoolemia zero”). Ocorre que a drástica vedação possui uma importante “gradação”.
Com efeito, segundo o novo art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, caracteriza-se como infração administrativa “dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Não há, portanto, qualquer tipo de limite, de tolerância (2). Nesse sentido, o novo art. 276 do Código consagra expressamente: “qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165”. A infração é tida como gravíssima e será punida com multa, suspensão do direito de dirigir por doze meses, recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado.
Já o novo art. 306 do Código, definiu como crime “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. As penas aplicáveis são: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Em suma, para o álcool, a concentração inferior a seis decigramas por litro de sangue define uma infração administrativa (3). A concentração igual ou superior a seis decigramas qualifica-se como crime. Trata-se, nessa última hipótese, de crime de perigo abstrato (inexiste alguém, na condição de vítima, que tenha sofrido ou passado por um risco concreto, determinado) (4).
O Código de Trânsito Brasileiro, em seu art. 277, com redação ofertada pela Lei n. 11.275, de 2006, estabelece que “todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado”. A última referência, exatamente aos aparelhos que possam certificar o estado de embriaguez, contempla o aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), popularmente conhecido como bafômetro.
Seria indiscriminada a utilização do bafômetro? Em especial, os abstêmios (“a pessoa que se abstém do uso de drogas, mais especificamente de bebida alcoólica“, no Wikdicionário) serão constrangidos a soprar na “maquininha”, em nome de uma presunção de uso indiscriminado de bebidas alcoólicas?
A resposta para as indagações está posta na letra já relativamente antiga do Código de Trânsito Brasileiro. No ponto, o legislador foi sábio. Encontramos a seguinte definição no art. 277 do Código: “sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool”.
Assim, o bafômetro somente deverá ser utilizado quando houver suspeita. Não há definição de uso indiscriminado do aparelho. Suspeita pressupõe um quadro fático tal que justifique a providência. Suspeitar, no dizer do renomado Dicionário Aurélio, consiste em “julgar com certa base; supor com dados mais ou menos seguros”. Em suma, não basta a fiscalização por si só. É preciso que a fiscalização encontre uma situação fática justificadora da medida (utilização do bafômetro).
Portanto, os abstêmios podem ficar tranqüilos ante os dizeres da ordem jurídica. A mesma tranqüilidade não pode ser prescrita ante certos abusos de determinadas autoridades de trânsito imbuídas de um eventual espírito persecutório contra tudo e contra todos.
Subsiste uma questão interessante, sob a ótica jurídica. Qual a conseqüência da recusa em utilizar o bafômetro?
Segundo a lei, mais precisamente o parágrafo terceiro do art. 277, “serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”. Nessa linha, pretende o legislador que a recusa em utilizar o bafômetro seja penalizada.
Tal definição não é aceitável. Afinal, estão fortemente presentes na nossa ordem jurídica, por definição constitucional, os princípios da presunção de inocência e o de que ninguém é obrigado a se autoincriminar.
Se não há obrigatoriedade de adoção de determinada conduta, a recusa em observá-la não pode ser sancionada. Em outras palavras, não é juridicamente possível penalizar aquele que exerce um direito, especialmente um direito de estatura constitucional.
Aliás, muitas vozes abalizadas apontam para uma virtual inaplicação da lei e não-atingimento dos objetivos do legislador, salvo se “... a pessoa que assim desejar ou aquela que for enleada ou mal informada a respeito de seus direitos, e por isso optar por se submeter ou consentir em ser submetida a exames de alcoolemia ou teste do 'bafômetro' ...“ (5) (6) (7).
Portanto, são inegavelmente meritórias as motivações do legislador para apartar o álcool (e outras substâncias perigosas) do volante. Entretanto, vislumbram-se significativas dificuldades práticas ou operacionais a serem vivenciadas pela polícia de trânsito.
NOTAS:
(1) “A relação álcool-volante revela facetas cruéis. Em cerca de 75% dos acidentes com vítimas fatais nas ruas e rodovias de nosso país existe um motorista alcoolizado envolvido. O Brasil está no topo da lista de países com maior número de acidentes de trânsito no mundo, com um milhão de acidentes por ano. Resultam daí 300 mil vítimas, 50 mil fatais. O álcool na corrente sanguínea provoca o afrouxamento da percepção e o retardamento dos reflexos. A dosagem excessiva conduz à perigosa diminuição da percepção e à total lentidão dos reflexos, diminuindo a consciência do perigo. Todo condutor em estado de embriaguez, mesmo leve, compromete sua segurança, a dos demais usuários da via e a dos passageiros que estão apostando suas próprias vidas 100% nas condições deste motorista”. Disponível em: < http://www.autoban.com.br/concessionaria/dicas/dicas_detalhes.cfm?objectId=BBD7 AF5E-1321-0A9F-1BBABDD454763FE0>. Acesso em: 8 jul. 2008. “De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 150.000 motoristas dirigem bêbados todos os dias”. AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. As modificações no Código de Trânsito Brasileiro e o "déjà vu" automobilístico . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1835, 10 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2008.
(2) Segundo o art. 1o, §1o, do Decreto no 6.488, de 19 de junho de 2008, “as margens de tolerância de álcool no sangue para casos específicos serão definidas em resolução do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, nos termos de proposta formulada pelo Ministro de Estado da Saúde”. Ainda segundo o aludido decreto, enquanto não editado o ato de que trata o §1o, a margem de tolerância será de duas decigramas por litro de sangue para todos os casos e quando a aferição da quantidade de álcool no sangue for realizada por meio de bafômetro, a margem de tolerância será de um décimo de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões (§§ 2o e 3o do art. 1o).
(3) “Apenas a título de ilustração, seis decigramas equivalem aproximadamente a dois copos médios de cerveja ou a uma dose de bebida destilada para uma pessoa que pesa setenta quilogramas”. LATOCHESKI, Luiz Gustavo. Álcool e direção: alguns breves apontamentos sobre as últimas alterações do Código de Trânsito Brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2008.
(4) “... Porque do contrário estaríamos admitindo o perigo abstrato no Direito penal, o que (hoje) é uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio (constitucional implícito) da ofensividade, que não permite nenhum delito de perigo abstrato (cf. GOMES, L.F. E GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). Todo tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito penal).” GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei n. 11.705/2008): novo delito de embriaguez ao volante. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 2 jul. 2008.
(5) MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2008.
(6) “ ... a lei facilita a vida daqueles que dirigem bêbados. A razão é simples: adotouse, de forma inédita, um critério matemático para a definição do crime de embriaguez ao volante. E esse critério só pode ser aferido por meio da utilização do etilômetro, popularmente conhecido como bafômetro. Daí, decorrem dois problemas seriíssimos para a efetividade da lei. Primeiramente, ninguém pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo ("privilégio contra a auto-incriminação"). Assim, ao contrário do que tem sido feito, ninguém pode ser compelido a assoprar no bafômetro. Caso a pessoa exerça esse direito e recuse-se a produzir provas contra si mesma, nada poderá ser feito para comprovar a existência daquela quantidade específica de álcool no sangue. Estaria, assim, impossibilitada a condenação. A lei conseguiu produzir a risível situação de que a condenação do réu depende apenas dele mesmo! Atualmente, apenas dois tipos de pessoas submetem-se a esse teste: os desavisados, que não têm conhecimento da existência desse direito, e aqueles que se sentem coagidos pela polícia. Nas duas situações, a prova será obtida por meios ilícitos e, portanto, de uso vedado no processo penal”. AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. As modificações no Código de Trânsito Brasileiro e o "déjà vu" automobilístico . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1835, 10 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2008.
(7) “É interessante notar que o discurso de rigor do legislador, embora bem aplicado na seara administrativa, não seguiu a mesma senda no âmbito criminal. Afinal de contas, a partir da alteração legal, na verdade, por direção sob efeito de álcool, só é preso em flagrante e, principalmente, condenado, quem quiser! Como já mencionado, é notório o conhecimento de que ninguém pode ser compelido a produzir prova contra si mesmo. Assim sendo, os exames e testes sobreditos só serão realizados se o suspeito decidir livremente colaborar. Quando ele se negar, a prova será impossível, já que ninguém, nem mesmo um médico ou policial mais experimentado, é capaz de determinar taxas de alcoolemia por meio de um mero exame clínico ou de uma simples passada de olhos sobre o suposto infrator. Lembremos que a "tolerância zero" e os meios variados de comprovação da infração previstos nos artigos 276 e 277, CTB, referem-se tão somente à infração administrativa do artigo 165, CTB, hoje claramente distinguida pela lei da infração penal do artigo 306 do mesmo diploma”. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre as inovações do Código de Trânsito Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 10 jul.
Procurador da Fazenda Nacional. Corregedor-Geral da Advocacia da União. Professor da Universidade Católica de Brasília - UCB. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília - UCB. Coordenador da Especialização (a distância) em Direito do Estado da UCB. Ex-Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional. Ex-Coordenador-Geral da Dívida Ativa da União. Home page: http://www.aldemario.adv.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Aldemario Araujo. Os abstêmios e o Bafômetro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2009, 08:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16813/os-abstemios-e-o-bafometro. Acesso em: 23 dez 2024.
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