ISSN - 1984 - 0454
NOVAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA CAUTELAR PENAL. A BIPOLARIDADE CAUTELAR DO SISTEMA BRASILEIRO. A PERSPECTIVA DE UM NOVO SISTEMA CAUTELAR. A MUDANÇA DE PARADIGMA. AS ALTERNATIVAS DO JUIZ, CONFORME A PROPOSTA DO PL Nº 4.208/01 .
1. NOVAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA CAUTELAR PENAL
Principalmente a partir do último quarto do Século XX consolidou-se tendência mundial em adotarem-se formas alternativas de punição, não mais adstritas ou centradas na pena privativa de liberdade.
Os malefícios causados pelo encarceramento penal – assunto já abordado no início deste trabalho – forçaram a adoção de alternativas punitivas, principalmente por meio de medidas restritivas de direitos que não o da liberdade humana.
As diretrizes estabelecidas nas Regras das Nações Unidas sobre Medidas não-privativas de liberdade, as conhecidas Regras de Tóquio, de 1990, condensaram o que já se previra em outros textos internacionais relativos aos direitos humanos. Nos consideranda do documento, afirma-se a convicção "de que as penas substitutivas da prisão podem constituir um meio eficaz de tratar os delinqüentes no seio da coletividade, tanto no interesse do delinqüente quanto no da sociedade" e de que "as penas restritivas de liberdade só são justificáveis do ponto de vista da segurança pública, da prevenção do crime, da necessidade de uma sanção justa e da dissuasão e que o objetivo último da justiça penal é a reinserção social do delinqüente".
Já no que toca ao objeto deste estudo, o encarceramento provisório, as Regras de Tóquio firmaram a convicção de ser tal medida cautelar o último recurso a ser adotado nos procedimentos penais, propondo a adoção de medidas substitutivas, "sempre que possível" (item 6.2.).
Essa declaração oficial das nações unidas refletiu a percepção, já incorporada ao direito positivo de alguns países ocidentais, de que as medidas cautelares, principalmente as de natureza pessoal, por privarem o indivíduo de um de seus mais preciosos bens – a liberdade – quando ainda não houve decisão definitiva sobre sua responsabilidade penal pelo fato que lhe é imputado, devem possuir um caráter de excepcionalidade e, outrossim, devem ser utilizadas apenas quando não for possível a adoção de outra medida menos gravosa, porém de igual eficácia.
Tal é o significado do princípio da proporcionalidade no processo penal, em sua máxima parcial (ou subprincípio) da necessidade ou subsidiaridade (chamado, também, de princípio da intervenção mínima, da indispensabilidade, ou da proibição de excesso) que, conforme já adiantamos no capítulo anterior, encontra-se materializado, inter alia, nos Códigos de Processo Penal da Itália (art. 275), de Portugal (art. 193), da Espanha (art. 502.2.), da Alemanha (art. 116) e da França (art. 137).
Trata-se, assim, de um fenômeno normativo irreversível, que paulatinamente se estende a outros países, inclusive ao Brasil, onde o Projeto de Lei nº 4.208/01, de que iremos cuidar logo adiante, introduz outras medidas cautelares diversas da prisão, abrindo-se um leque de alternativas ao juiz natural da causa para, de acordo com as peculiaridades e necessidades de cada caso examinado, escolher a medida adequada e suficiente para responder aos fins colimados pela cautela.
Releva destacar que, no âmbito do direito europeu, berço e fonte de toda a nossa legislação, tem sido fértil a produção do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o assunto. Sem embargo, o documento mais importante a tratar da matéria, no âmbito da Comunidade Européia, é a Recomendação R (80) 11, do Conselho de Ministros, de 27 de junho de 1980, na qual se enfatiza a necessidade de reduzir-se, por razões humanitárias e sociais, o uso das prisões provisórias nos países ao mínimo compatível com os interesses da Justiça, mediante os seguintes princípios:
1. A detenção provisória somente pode ser decretada contra os que legitimamente sejam suspeitos de haver cometido um delito e existam razões sérias para crer-se na ocorrência de perigo de fuga, de obstrução do curso da justiça ou do cometimento de uma infração grave;
2. Ainda que existam, esses perigos somente justificam a prisão provisória de modo excepcional, para responder a situações particularmente graves.
3. Para decretar a prisão provisória o juiz deverá levar em consideração as peculiaridades do caso concreto, particulamente as circunstâncias relativas à natureza da infração penal, a importância dos indícios que pesem sobre o sujeito passivo da medida, a pena susceptível de ser-lhe imposta em caso de condenação, a personalidade, os antecedentes judiciais do réu, sua situação pessoal e social e seus vínculos sociais, e, por último, o comportamento do réu, sobretudo em relação às obrigações que lhe foram impostas em processo penal anterior.
4. A prisão provisória não deve ser ordenada se a privação da liberdade é desproporcional em relação à natureza do crime atribuído ao réu e à pena a ele correspondente.
5. Toda decisão que decrete a prisão provisória deve indicar o mais precisamente possível o seu objeto, e ser especialmente motivada.
E, naquilo que mais diz respeito ao tema ora em exame, a Recomendação R (80) 11 afirma a idéia de que a autoridade judiciária, para poder decretar a prisão cautelar (provisória), deve examinar se alguma medida alternativa pode ser aplicada no lugar da prisão (Capítulo II, item 9).
Parece, enfim, haver um consenso de que a prisão-cautela possui os inconvenientes e malefícios da prisão-pena, com o agravante de que nem mesmo pode servir como meio de ressocialização ou reeducação do preso, se é que isso pode ainda ser defendido como um dos objetivos da pena em sistemas penitenciários com perfil similar ao do brasileiro.
Logo, se a pena privativa de liberdade, como zênite e fim último do processo penal, é um mito que desmorona paulatinamente, nada mais racional do que também se restringir o uso de medidas homólogas (não deveriam ser) à prisão-pena, antes da sentença condenatória definitiva. É dizer, se a privação da liberdade como pena somente deve ser aplicada aos casos mais graves, em que não se mostra possível e igualmente funcional outra forma menos aflitiva e agressiva, a privação da liberdade como medida cautelar também somente há de ser utilizada quando nenhuma outra medida menos gravosa puder alcançar o mesmo objetivo preventivo.
A tal conclusão se chega com maior facilidade quando se relembra que a prisão cautelar é aplicada a quem ainda é considerado inocente, ou, pelo menos, deve ser tratado como tal. Ora, se mesmo em relação a quem já foi considerado culpado a prisão é vista como um mal, um mal necessário, o que dizer de aplicar-se igual privação de liberdade a quem não foi julgado? No mínimo, que se trata de um mal, necessário que seja, ainda maior.
2. A BIPOLARIDADE CAUTELAR DO SISTEMA BRASILEIRO
O Brasil, como sói ocorrer, continua atrasado na modernização de seu sistema punitivo, que ainda é permeado, de um modo geral, pela mesma carga científica e ideológica dos longínquos anos 40, década em que estávamos mergulhados em uma visão-de-mundo absolutamente distinta da atual, com costumes bem diversos, com uma economia de mercado ainda inexistente e uma sociedade regida por valores e condicionamentos que o tempo cuidou de modificar radicalmente.
Nosso sistema processual penal ainda trabalha com soluções bipolares, é dizer, ou o acusado responde ao processo com total privação de sua liberdade, ou, então, lhe é concedido o direito à liberdade "provisória", quer mediante o simples compromisso de comparecimento aos atos processuais (no caso da liberdade provisória sem fiança) quer, se exigida a fiança, mediante a obrigação de não mudar de residência sem autorização judicial e de não ausentar-se por mais de oito dias sem comunicar ao juiz. Assim, a única medida cautelar alternativa à prisão ad custodiam em nosso país é a liberdade provisória, que se qualifica, por ser um substitutivo da prisão em flagrante, como uma contracautela.
Saliente-se, a propósito, que nosso sistema não admite submeter alguém ao regime de liberdade provisória sem que esteja previamente preso em flagrante. Em outras palavras, se alguém está em liberdade desde o início da persecução penal, não poderá ser submetido ao regime de liberdade provisória – que importa em obrigações processuais – , pois esta pressupõe que o acusado tenha sido preso em flagrante, ou, quando muito, preso em razão de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível, se admitida a autonomia jurídica dessas duas modalidades de prisão.
É importante enfatizar que a liberdade provisória, no sistema vigente, não substitui a prisão preventiva (ou mesmo a temporária), já que são medidas inconciliáveis entre si. Quem está preso a título de prisão preventiva stricto sensu ou a título de prisão temporária poderá ser posto em liberdade, quer por revogação da cautela, por não mais ser necessária tal medida, quer por relaxamento da prisão ou concessão de ordem de Habeas Corpus, em face da ilegalidade da custódia. Em ambas as hipóteses o réu é posto em liberdade sem assumir qualquer dever processual. Não se sujeita às obrigações a que aludem os artigos 310, 327 e 328 do Código de Processo Penal porque, repita-se, não é beneficiário de liberdade provisória, mas de liberdade pura e simples.
No Brasil, em suma, pode-se falar na existência de uma única medida alternativa à prisão cautelar – a liberdade provisória – ao contrário do que ocorre em outros ordenamentos, onde a liberdade provisória é uma de tantas outras medidas cautelares autônomas, que podem, destarte, ser impostas mesmo a quem se encontre em liberdade total, conforme examinaremos mais adiante.
A liberdade provisória, por conseguinte, é considerada, no sistema pátrio, uma medida de contracautela, que traduz uma situação intermediária entre a liberdade total, sem qualquer vínculo, e a prisão cautelar. Isso implica dizer que o acusado pode responder ao processo em uma das seguintes situações pessoais:
1ª em regime de liberdade sem vínculo ou total, o que ocorre quando o acusado ou não foi preso em flagrante, ou, tendo sido cautelarmente preso (não importa qual a modalidade de prisão), adveio revogação da prisão ou concessão de Habeas Corpus ou relaxamento da prisão, hipóteses em que nenhuma obrigação lhe é impingida;
2ª em regime de liberdade vinculada, o que se dá nas hipóteses em que o acusado (ou, mesmo antes, o indiciado) é posto em liberdade, aceitando certos compromissos e obrigações, que configuram a provisoriedade dessa contracautela, que poderá importar no retorno ao status quo ante (prisão) se descumprida alguma dessas obrigações;
3º em regime de prisão cautelar, que poderá convolar-se em alguma das situações anteriores, a depender da análise judicial.
3. A PERSPECTIVA DE UM NOVO SISTEMA CAUTELAR
Diante desse quadro de ausência de opções, o Governo apresentou ao Congresso Nacional, dentro de pacote de reformas da legislação processual (civil e penal), o Projeto 4.208/01, que cuida "da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória", dispondo, em seu art. 319 de outras medidas cautelares diversas da prisão.
Pretende-se, com a nova legislação, "proceder ao ajuste do sistema às exigências constitucionais atinentes à prisão e à liberdade provisória e colocá-lo em consonância com modernas legislações estrangeiras, como as da Itália e de Portugal" (Exposição de Motivos do Anteprojeto encaminhado ao Parlamento pelo Ministro da Justiça).
O texto está assim redigido:
CAPÍTULO V
DAS OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES
Art. 319. As medidas cautelares diversas da prisão serão aplicadas nas seguintes hipóteses:
I - comparecimento periódico em juízo, quando necessário para informar e justificar atividades;
II - proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares em qualquer crime, quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição de ausentar-se do país em qualquer infração penal para evitar fuga, ou quando a permanência seja necessária para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga nos crimes punidos com pena mínima superior a dois anos, quando o acusado tenha residência e trabalho fixos ;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando haja justo receio de sua utilização para a prática de novas infrações penais;
VII - internação provisória do acusado em crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (artigo 26 e parágrafo único do Código Penal) e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento aos atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada a ordem judicial.
Parágrafo único. A fiança será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI, deste Título, podendo ser cumulada com outras medidas cautelares.
Além dessas alternativas à prisão preventiva, o Projeto prevê a possibilidade de o juiz substituir a prisão preventiva cumprida em estabelecimento prisional, por prisão domiciliar, em situações bem restritas, indicadoras da inconveniência e da desnecessidade de se manter o recolhimento em cárcere. Correspondem, como diz a exposição de motivos do Anteprojeto, às hipóteses que autorizam prisão albergue no regime aberto (art. 117 da Lei 7.210/84), relacionadas no artigo 318: pessoa maior de 70 (setenta anos); pessoa sujeita a severas conseqüências de doença grave; pessoa necessária aos cuidados especiais de menor de 7 (sete) anos de idade, ou de deficiente físico ou mental; gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
Com essa nova realidade normativa, passa o juiz da causa a dispor de maiores opções – que não apenas a liberdade provisória – para a proteção dos bens e interesses que estejam sob ameaça em razão da existência de um processo penal, sem, necessariamente, sacrificar a liberdade do acusado, a quem se impõem obrigações adequadas às peculiaridades do caso concreto, de modo proporcional à gravidade do crime e às exigências cautelares.
4. A MUDANÇA DE PARADIGMA
Em que pese o avanço da novel legislação, há imperfeições a sanar. A mais relevante delas é de cunho científico e denota, a nosso juízo, a falta de percepção quanto à mudança de paradigma decorrente do abandono do sistema ainda vigente. Com efeito, o art. 321, na redação que lhe dá o Projeto, assevera que "inexistindo os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz poderá conceder liberdade provisória, impondo as medidas cautelares previstas no artigo 319 e observados os critérios do art. 282". Por sua vez, o § 2º do art. 283 dispõe que "quando não couber prisão preventiva, o juiz poderá decretar outras medidas cautelares (art. 319)".
Ora, as medidas alternativas à prisão preventiva não pressupõem, ou não deveriam pressupor, a inexistência de motivos ou de requisitos, como indica o texto legal, que autorizam a decretação da prisão preventiva, mas sim a existência de uma providência igualmente eficaz para o fim colimado com a medida cautelar principal, porém com menor grau de lesividade à esfera de liberdade do indivíduo.
É essa, precisamente, a idéia da subsidiariedade processual penal, que permeia o princípio da proporcionalidade, em sua máxima parcial (ou subprincípio) da necessidade: o juiz somente poderá decretar a medida mais extrema – a prisão preventiva – quando não existirem outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do acusado por meio das quais seja possível alcançar os mesmos fins colimados pela prisão cautelar.
Trata-se, como já dito no capítulo anterior, de uma escolha comparativa, entre duas ou mais medidas disponíveis – in casu, a prisão preventiva e alguma (s) das outras arroladas no art. 319 do CPP – igualmente idôneas para atingir o objetivo a que se propõe com a providência cautelar.
Desse modo, é plenamente possível que estejam presentes os motivos ou requisitos que justificariam a prisão preventiva, mas, sob a influência do princípio da proporcionalidade e à luz das novas opções fornecidas pelo legislador, deverá valer-se o juiz de uma ou mais das medidas indicadas no art. 319 do CPP, desde que considere sua opção suficiente e idônea para obter o mesmo resultado – a proteção do bem sob ameaça – de forma menos gravosa.
Para tornar essa idéia mais clara, consideremos o exemplo de alguém que, respondendo a um processo por crime de corrupção ativa, sinalize, em virtude de atos concretos como a venda de seus bens, a lavratura de procuração com amplos poderes a terceira pessoa, além da compra de passagem para o exterior, a intenção de fugir do país. Inegavelmente estão presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, tendo em vista que há prova da existência de um crime punido com pena de reclusão, indícios suficientes de autoria e claros indicadores de que a aplicação da lei penal está ameaçada de não se efetivar com a iminente fuga do acusado. Porém, para evitar a efetiva lesão ao direito ameaçado (o ius puniendi do Estado, que se concretiza, em última análise, com a imposição e o cumprimento da sanção penal decorrente da sentença condenatória irrecorrível), o juiz poderá – em avaliação criteriosa – entender suficiente condicionar a manutenção da liberdade do acusado às obrigações constantes dos incisos IV e V do art. 319 do CPP, ou seja, proibição de ausentar-se do país (inc. IV) e recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga (inc. V), determinando, outrossim, a fiscalização das fronteiras do país e a entrega, pelo acusado, de seu passaporte (art. 320).
Essa opção judicial produziria o mesmo resultado – evitar a fuga do réu e o conseqüente prejuízo à aplicação da lei penal ("obstáculos ...à execução da sentença", na linguagem da nova redação proposta para o art. 312 do CPP) – sem a necessidade de suprimir, de modo absoluto, a liberdade do acusado. Além do menor custo pessoal e familiar da medida, pois o não recolhimento à prisão do réu poupa-o, bem assim seus entes mais próximos, de um sofrimento desnecessário, o Estado também se beneficia com essa escolha, porquanto poupa vultosos recursos, humanos e materiais, indispensáveis à manutenção de alguém sob custódia, a par de diminuir os riscos e malefícios inerentes a qualquer encarceramento (lesões corporais, tortura, ou mesmo homicídio, eventualmente cometidos por outros presos ou por carcereiros, transmissão de doenças infecto-contagiosas, criminalização do preso, estigmatização etc).
No exemplo citado, o acusado estará sob regime de liberdade provisória (embora o Projeto não se valha de tal expressão no art. 319), mediante termo de comparecimento periódico em juízo, tal qual similarmente se dá hoje na hipótese prevista no art. 310 do CPP. Assim, a liberdade provisória – que poderá converter-se em prisão preventiva, como prevê a nova redação dada ao art. 312, parágrafo único, pelo Projeto, em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas ao réu – expele um aroma de nítida função cautelar, cumprindo os mesmos propósitos da prisão preventiva, porém com menor gravidade para o imputado, na medida em que lhe garante maior respeito à sua liberdade natural (VILAR, 1988, p.179).
Semelhante ilação nos leva a criticar outro aspecto do texto do Projeto, tanto do art. 283, § 2º, quanto do art. 321: a perda de referência cautelar das medidas diversas da prisão, ao condicionar-se sua decretação à ausência de requisitos para a prisão preventiva.
Expliquemo-nos. O art. 282 do Projeto deixa claro que "as medidas cautelares previstas neste Título [o que inclui, desse modo, tanto a prisão, quanto as outras medidas cautelares e a liberdade provisória] serão aplicadas com base nos seguintes critérios", os quais são indicados em dois incisos, o primeiro muito claro ao mencionar a "necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações penais".
Pois bem, esse critério é, conforme melhor detalhado no art. 312, o que justifica a prisão preventiva, ou seja, a necessidade de sacrificar a liberdade do investigado ou acusado, por representar um perigo (periculum libertatis) à investigação ou instrução do processo (cautela instrumental), à aplicação da lei penal (cautela final) ou à ordem pública ou econômica (medida de defesa social, como já dizia Faustin Hélie na metade do Século XIX).
Sendo assim, tanto a prisão preventiva (stricto sensu) quanto as demais medidas cautelares introduzidas pelo Projeto no ordenamento processual penal destinam-se a proteger os meios (a atividade probatória) e os fins do processo penal (a realização da justiça, com a concreta imposição da pena), ou, ainda, a própria comunidade social, ameaçada pela perspectiva de novas infrações penais. O que varia, portanto, não é a justificativa ou a causa final da cautela, mas o grau de lesividade e a dose de sacrifício decorrente de cada uma delas. Decretar a prisão preventiva ou determinar o recolhimento domiciliar noturno tem, na sua ratio essendi, igual preocupação em proteger o processo, a jurisdição ou a sociedade, variando apenas a quantidade – se é que assim podemos nos referir – da liberdade retirada do âmbito de disponibilidade do investigado ou acusado.
Isso equivale a dizer que os motivos justificadores da prisão preventiva são os mesmos que legitimam a adoção de qualquer outra das medidas cautelares a que alude o art. 319 do Projeto, sendo equivocado condicionar a escolha de uma dessas últimas ao não cabimento da prisão preventiva. Na verdade, a prisão preventiva é cabível, mas a sua decretação não se mostra necessária, porque, em avaliação judicial concreta e razoável, devidamente motivada, considera-se suficiente para produzir o mesmo resultado a adoção de medida cautelar menos gravosa.
A idéia torna-se ainda mais clara em sistemas – como o alemão – em que o dispositivo indica o uso da medida cautelar alternativa à prisão como uma medida de "suspensão" da execução da ordem de prisão. Vejamos o que prevê o § 116 da StPO:
§ 116. O juiz suspende a execução de uma ordem de detenção que somente está justificada por perigo de fuga quando medidas menos radicais atendam suficientemente o prognóstico de que o fim da prisão preventiva poderá também ser alcançado por elas.
Mais adiante, no item 4 desse mesmo artigo, reforça-se essa idéia, ao estabelecer-se que
O juiz pode suspender a execução de uma ordem de prisão que tenha sido emitida de acordo com o § 112a, quando está fundado suficientemente no prognóstico de que o imputado seguirá determinadas instruções e que por isso se alcançará o fim da prisão.
A leitura desses dispositivos legais torna evidente no direito alemão o que, para nós, ainda é fruto de uma proposta de interpretação lógica e teleológica da futura normatização: que a liberdade obtida por meio da aplicação de uma medida alternativa à prisão preventiva deixa subsistente a decisão que serve de lastro a tal providência mais extrema.
Logo, a prevalecer a dicção normativa sugerida pelo Projeto – "inexistindo os requisitos que autorizam a prisão preventiva, o juiz poderá conceder liberdade provisória, impondo as medidas cautelares previstas no art. 319 e observados os critérios do art. 282" – é de perguntar-se, então, com base em quê será autorizada a providência cautelar menos gravosa? Se os requisitos cautelares indicados no art. 282, I, são inerentes a quaisquer das medidas previstas no Título IX do Código, o que restará como fundamento ou supedâneo para justificar, por exemplo, a proibição de o réu manter contato com pessoa determinada (inc. III do art. 319), se a proteção a uma fonte de prova (imaginemos a testemunha ocular do fato, que se sente intimidada pelo rotineiro contato com o acusado), é precisamente o que justifica a cautela instrumental ante o notório periculum libertatis? Se não cabe a preventiva, não deverá caber também qualquer outra medida restritiva da liberdade do acusado, igualmente direcionada a proteger aquela fonte de prova.
Decerto que nem todas as medidas cautelares possuem os mesmos requisitos exigidos da prisão preventiva. Tal é o caso, por exemplo, da interceptação das comunicações telefônicas e da busca e apreensão domiciliar, que se destinam, basicamente, a obter provas que permitam o melhor exercício da jurisdição penal, cujo êxito depende da reconstrução histórica do fato objeto da acusação. Sem embargo, as medidas cautelares de natureza pessoal importam em algum grau de sacrifício da liberdade de locomoção do sujeito passivo da cautela, o que condiciona sua validade à existência de motivo concreto que demonstre o perigo de manter-se a liberdade do investigado ou acusado totalmente desimpedida.
Em outras palavras, para privar-se alguém, total ou parcialmente, do direito de ir e vir, em razão de uma acusação penal, é mister que se demonstre, além do pressuposto inerente a qualquer cautela (fumus comissi delicti), uma situação que, não houvesse qualquer outra providência cautelar, justificaria a prisão preventiva como instrumento de proteção do bem ameaçado com a liberdade do imputado (periculum libertatis).
Resta clara, portanto, a impressão, ao ler o texto integral do Projeto, de que, muito embora se tenha avançado para um outro modelo normativo, o reformador permaneceu com um pé fincado no sistema cautelar ainda em vigor, o qual, repita-se, trabalha apenas com duas hipóteses: prisão cautelar ou liberdade provisória, sendo esta apenas possível de ser deferida, com ou sem fiança, ante a ausência de motivo para a prisão preventiva.
5. AS ALTERNATIVAS DO JUIZ, CONFORME A PROPOSTA DO PL nº 4.208/01
Resumindo o que se disse acima, e procurando empreender-se uma análise global de todo o Projeto, é possível concluir que a reforma abandona o sistema bipolar – prisão e liberdade provisória – e passa a trabalhar com várias alternativas, cada qual adequada a regular o caso concretamente examinado, levando-se em consideração os seguintes fatores: "gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado" (inciso II do art. 282).
O juiz poderá, então, decretar, de ofício, a requerimento das partes ou, quando cabível, por representação da autoridade policial (art. 282, § 2º) as medidas cautelares previstas no Título IX do CPP, de forma isolada ou cumulativamente (art. 282, § 1º), sempre que possível, mediante audiência da parte afetada pela cautela (art. 282, § 3º).
Poderá, então, o investigado ou acusado constituir-se em sujeito passivo de uma das seguintes medidas cautelares:
1. PRISÃO EM FLAGRANTE, hipótese na qual o Projeto determina que o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá (e não, como dito atualmente, poderá) – não sendo caso de relaxamento da prisão, por ilegalidade, ou de sua conversão em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312 – conceder ao autuado LIBERDADE PROVISÓRIA, com ou sem fiança (art. 310, itens I, II e III).
2. PRISÃO PREVENTIVA, se ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença; ou que venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa (art. 312, caput). Cumpre destacar que, restringindo as hipóteses de prisão preventiva atualmente vigentes, o Projeto somente admite tal cautela em relação a crimes dolosos punidos com pena máxima superior a quatro anos ou, independentemente da sanção penal, quando o acusado houver sido definitivamente condenado por outro crime doloso (art. 313). Da conjugação desses dois preceitos, modificados pelo Projeto, condutas relativamente graves, como as de reiteração criminosa na prática de furto a residências, estelionato ou mesmo de receptação de automóveis, ficarão imunes à providência cautelar mais gravosa, o que, convenhamos, poderá significar ausência de proteção penal eficiente à sociedade.
3. PRISÃO DOMICILIAR, consistente no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, de onde somente poderá ausentar-se mediante autorização judicial (art. 317), nas hipóteses de pessoa maior de setenta anos ou sujeita a severas conseqüências de doença grave; ou de pessoa necessária aos cuidados especiais de menor de sete anos de idade, ou de deficiente físico ou mental; ou, ainda, na hipótese de gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco, em qualquer dessas situações mediante prova idônea (art. 318).
4. LIBERDADE PROVISÓRIA, como substituta da prisão em flagrante, com ou sem fiança, quando o juiz considerar que não é necessário manter-se a prisão (inciso III do art. 310) ou quando verificar que o agente praticou o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (parágrafo único do art. 310).
5. LIBERDADE PROVISÓRIA como providência cautelar autônoma, consistente em uma ou mais DAS OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES previstas no art. 319. Perceba-se que tais medidas cautelares são alternativas à prisão, podendo ser impostas – nada indica o contrário – mesmo se estiver o acusado em liberdade desde o início dos atos de persecução penal, como condição para que assim continue. Portanto,
5.1. poderá o juiz tanto condicionar a manutenção da liberdade do acusado ao cumprimento de uma das medidas elencadas no art. 319, sob pena de decretar a prisão preventiva, quer originalmente (art. 311 c/c 312), quer como sanção processual, justificada pela verificada insuficiência da medida menos gravosa para proteção do interesse ameaçado, decorrente do descumprimento da providência cautelar alternativa; como, também,
5.2. poderá o juiz substituir a situação de prisão em flagrante, ou mesmo a prisão preventiva, por uma das medidas menos gravosas arroladas no art. 319, que funcionarão como alternativas para obviar a providência extrema, somente justificada ante a constatação de que outra, supostamente eficaz ou apta para alcançar os mesmos fins, porém com menor custo para a esfera de liberdade do indivíduo, não se mostra concretamente adequada e bastante à espécie.
É possível objetar-se que somente a prisão domiciliar foi concebida para substituir a prisão preventiva, tendo em vista a circunstância de que a letra do caput do art. 319 não repete o adjetivo "preventiva" após o substantivo "prisão", como o faz o art. 318. Em reforço, será oponível a argumentação, também decorrente da letra dos artigos 283, § 2º e 321, e do art. 324, III, no tocante à fiança.
No que concerne à primeira possível objeção, não cremos se possa restringir o uso de uma das providências cautelares numeradas no art. 319 tão somente à hipótese de prisão em flagrante. Ora, conforme a basilar lição de hermenêutica, odiosa restringenda, favorabilia amplianda (restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável). Deveras, dispondo de modo amplo, sem limitações evidentes, o texto há de ser interpretado a todos os casos passíveis de subsunção à hipótese prevista. Outrossim, em razão da também antiga regra que impõe a prevalência da liberdade, em caso de dúvida (in dubio pro libertate, manifestação tópica do favor rei), reforça-se outra regra de hermenêutica, segundo a qual descabe ao intérprete distinguir onde a lei não distingue (ubi lex non distinguit, nec interpress distinguere debet). No caso em exame, o caput do art. 319 não faz qualquer alusão a modalidade de prisão, cingindo-se a indicar quais são as medidas cautelares diversas da prisão.
Já em relação à segunda objeção que se poderia lançar à possibilidade de conceder uma ou mais das medidas cautelares previstas no art. 319 como providência substitutiva também da prisão preventiva, reforçamos, de modo resumido, o que já foi dito linhas atrás: uma vez que os critérios a serem aplicados na escolha de todas as medidas cautelares previstas no Título IX do Código de Processo Penal são basicamente coincidentes (conforme deixa claro o Projeto na redação dada ao art. 282, incisos I e II), exigindo-se apenas requisitos complementares para a medida extrema da prisão preventiva (artigos 312 e 313), nada obsta a que, considerando a adequação da medida à gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado, opte o magistrado por lhe impingir, por exemplo, duas das medidas previstas no art. 319, quais sejam, a obrigação de comparecer periodicamente a juízo (inc. I) e a proibição de ausentar-se do país (inc. III) juntamente com o recolhimento do passaporte do réu (art. 320).
Vê-se, portanto, que a esperada transformação em lei do PL nº 4.208/01 resultará em substanciais mudanças no sistema cautelar penal.
A prisão preventiva, nesse novo sistema, passa a ser reservada para os casos em que se considere não ser idônea e suficiente à proteção do bem ameaçado pela plena liberdade do réu alguma das providências menos gravosas, as quais poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente (art. 282, § 1º), de acordo com a avaliação que o magistrado empreender no caso concreto, de ofício, ou a requerimento das partes ou por representação policial (art. 282, § 2º), devendo, em qualquer das hipóteses, ouvir o Ministério Público, quando não for ele próprio quem postula a providência, e, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, dar oportunidade ao acusado para manifestar-se sobre o pedido (art. 282, § 3º).
Também é importante anotar que as novas medidas cautelares alternativas à prisão preventiva poderão ser, como regra, aplicadas a autores de quaisquer infrações penais a que se cominar pena privativa de liberdade, o que inclui crimes culposos e crimes a que a lei preveja a possibilidade de substituição da pena, respeitada a proporcionalidade da medida.
No novo sistema que se pretende acolher, haverá tão somente duas restrições relativas às modalidades de crimes que comportam tais medidas cautelares: a primeira diz respeito à determinação de recolhimento domiciliar noturno e nos dias de folga (inc. V do art. 282), cabível apenas para crimes cuja pena mínima seja superior a dois anos (que se deduz ser de reclusão); a segunda refere-se à internação provisória do acusado, hipótese somente aplicável a autores inimputáveis ou semi-imputáveis de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça (art. 282, inc. VII).
Certamente o sistema processual penal brasileiro estará, com tais inovações – a despeito de suas imperfeições, apontadas neste estudo – melhor equipado para regular situações em que diferentes peculiaridades de cada caso concreto demandarem respostas também diferenciadas do Poder Judiciário.
Publicado na obra coletiva LEITURAS COMPLEMENTARES DE PROCESSO PENAL". Rômulo Moreira (Coordenador). Salvador: Podium, 2008.
Promotor do MPDFT. Doutor em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco). Tese intitulada "A PROIBIÇAO DE DUPLA PERSECUÇAO PENAL (ne bis in idem): limites no Direito Brasileiro", defendida e aprovada em 18 de junho de 2007, perante Banca Examinadora composta pelos professores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes, Oswaldo Duek e Sérgio Shimura. Mestrado em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco) - Dissertaçao intitulada "GARANTIAS PROCESSUAIS NOS RECURSOS CRIMINAIS: IGUALDADE, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO", defendida e aprovada em 24 de abril de 2002, perante Banca Examinadora composta pelos Professores Doutores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e David Azevedo Teixeira. Home page: http://www.metajus.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Rogério Schietti Machado. A subsidiariedade Processual Penal e Alternativas à Prisão Cautelar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2009, 09:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17409/a-subsidiariedade-processual-penal-e-alternativas-a-prisao-cautelar. Acesso em: 21 nov 2024.
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