Em que o Direito Civil e as teorias sobre a posse contribuíram para o atual quadro retratado em nosso país.
Primeiramente, devemos ressaltar a grande dificuldade que era a elaboração de uma legislação civil no Brasil, como o próprio texto assevera, após o fim das sesmarias, somente em 1850 que foi se editar uma lei que versasse sobre a questão posse/propriedade.
Qualquer um, aquela época diria que o direito era a porta de entrada para a civilização, e era impossível cruzá-la sem a codificação do mesmo.
Assim, mesmo sabendo que, no fundo, a promulgação do Código Civil não tinha a capacidade de resolver todos os problemas sociais de uma vez só, também achavam que, sem ele, a sociedade ficaria atrasada, deixada à influência dos costumes. E nada pior, naquela época, para esses juristas que se acreditavam "os eleitos da nação".
Os costumes significavam tradição, a tradição pertencia ao passado, e passado era, no Brasil, sinônimo de colonialismo, catolicismo e escravidão. O progresso, ao contrário, seria alcançado pela implementação de medidas liberais, das quais a codificação era uma das mais importantes. Para os juristas da época, o Código Civil brasileiro devia ser dotado de um caráter teórico, desvinculado mesmo de alguns aspectos da realidade do país. Dissociar o Código Civil dos próprios costumes da sociedade seria a única maneira de reformá-la, formulando regras abstratas que, ao serem aplicadas à sociedade brasileira, acabariam por forçar a sua transformação. Por isso que, para promover o progresso da nação, o Código Civil devia ser moderno e liberal, livre dos vícios que caracterizaram o passado brasileiro.
Acontece que essa era uma tarefa dificílima. O código de leis abstratas, gerais e modernas com que sonhavam os juristas, esbarrava em um problema simples de entender e complicado de resolver: a sociedade brasileira não era como eles queriam que fosse, e nunca seria. Mas o código com o qual sonhavam também encontrava um outro problema, o qual eles não aceitavam: o de que, mesmo que eles insistissem no contrário, o direito brasileiro era profundamente marcado pelos costumes escravistas, patriarcais e católicos que formavam a nossa sociedade.
Conforme mencionado, a primeira legislação que veio tratar sobre o problema das terras no Brasil, foi a lei de 1850.
Segundo o livro de José Reinaldo de Lima Lopes[1] (O Direito na Historia – Lições Introdutórias), em relação à questão fundiária no Império, José Bonifácio já demonstrava preocupação dentro do panorama da consolidação da nação, que carecia de um regime produtivo rentável e ordenado. Em 1821, Bonifácio apresentou a proposta de reforma geral do regime de terras. Segundo ele, no que dizia respeito às terras, as sesmarias não favoreciam a agricultura, pois acabavam tornando-as improdutivas. Sua idéia era de que essas terras não cultivadas voltassem para os bens nacionais. As terras devolutas seriam vendidas em pequenos lotes e o que fosse arrecadado com essa venda, seria utilizado para investir na agricultura.
Não se podia, a essa época, confundir a “posse” com a pequena posse do lavrador pobre. Posse haviam de inúmeras terras novas que estavam sendo aplicadas na lavoura do café. A regularização da posse da terra interessava aos grandes fazendeiros (eixo Rio - São Paulo - Minas), isto explica quem “patrocinava” a promoção da Lei de Terras.
A tentativa de reformar o regime fundiário partia principalmente dos cafeicultores do Rio. O problema era ao mesmo tempo, regularizar as terras e preparar o fim da escravidão, atraindo os colonos estrangeiros que trabalhavam livremente e tinham esperanças de se tornarem proprietários de algum pedaço de “chão”.
A Lei de Terras foi aprovada com modificações em pontos importantes do projeto inicial de Bernardo Pereira. Podemos destacar alguns desses pontos que a Lei dispôs como: definir as terras devolutas que seriam adquiridas mediante compra feita à Coroa em hasta pública, definiu como terras devolutas, as que não tivessem uso público, nem título legítimo de propriedade, etc.
A Lei de Terras é importante, pois marca a transição do sistema em que a terra deixa de ser um domínio da Coroa e um título de prestígio, para se transformar em uma mercadoria. Essa lei não somente moderniza o domínio da terra, mas também legitima as grandes ocupações, como eram as dos cafeicultores e não permitia um acesso democrático à terra por ninguém. A Lei de Terras não foi à democratização da terra brasileira, mas o seu cercamento, ou seja, o estabelecimento de um sistema de propriedade em evolução, mercantil e exclusivista.
O resultado da lei foi insignificante no que diz respeito a separar as terras privadas das terras devolutas (públicas). O autor José Murilo, citado por Jose Reinaldo de Lima, noticiou os diversos relatos dos Ministros do Império sobre o assunto, que disse ser: “uma continua reafirmação das frustrações dos ministros e dos funcionários das repartições que eram encarregadas de executar a lei frente aos obstáculos que surgiam”. Sem o imposto territorial, sem as penas adequadas e fortes, a lei não foi cumprida. Tornou-se letra morta. Não é de hoje que se encontram diversos conflitos fundiários no Brasil sobre as áreas que nunca foram devidamente regularizadas.
Portanto, sem fazer com que a lei fosse cumprida, o Brasil não conseguiu rivalizar com outros países que se abriam para a imigração estrangeira, como por exemplo, os Estados Unidos onde as terras eram de melhor qualidade e a escravidão já havia sido abolida, por conseguinte não havia a “briga” de dois regimes de trabalho no campo, sem falar na facilidade de se adquirir um pedaço de terra. O relatório do Ministro de 1869 resumia: “A história da imigração no Brasil compõe-se de uma longa série de tentativas, todas abortadas.”.
Dessa forma, podemos observar que pela evolução histórica e principalmente após a lei de terras, grandes lotes de terras foram ocupados pelos que detinham um grande poderio econômico. Com isso, foi se desenhando o cenário para a elaboração da codificação civil, que iria, digamos, legitimar essa grande desigualdade.
Isso se observa logo pelos princípios norteadores do direito civil, principalmente dos direitos reais, quais sejam: a) Principio da aderência, não qual estabelece que surja um vinculo, uma relação entre o sujeito e a coisa, em que o sujeito passivo não depende em nada para existir, gerando uma relação direta e imediata, princípio esse retratado no nosso atual código no artigo 1.228. b) Princípio do absolutismo que diz que os direitos reais se exercem erga omnes, ou seja, contra todos, devendo os sujeitos se absterem de molestar o titular. Desse princípio, surge o direito do titular de perseguir a coisa e de reivindicá-la em poder de quem quer que esteja com ela, bem como o direito de preferência.
Não adentrando na discussão acerca se a posse é direito pessoal, real ou sui generis, que permeia nossos livros, se hoje, a posse suscita dúvidas, imagine naquele tempo, aliás, agora que deve suscitar dúvidas, pois pelo quadro que existia, não me admira se as “coisas” fossem consideradas direitos reais, pois assim se poderiam usar livremente os princípios mencionados acima e dessa forma, a contribuição para a alarmante situação que encontramos em nosso país até hoje.
Além da codificação, é necessário também verificar as teorias que influenciaram a elaboração do nosso código, mais precisamente, as teorias influenciadoras sobre o direito das coisas, principalmente a teoria de Ihering, que não só foi adotada por nossos códigos, mas em seu bojo, traz fundamentos que legitimam o grave quadro que sempre existiu no Brasil.
A teoria objetivista da posse, de autoria de Ihering[2], se caracteriza por entender que o elemento objetivo da posse, é suficiente para comprovar a existência da mesma. O autor vai além ainda ao explicar que a presença deste elemento objetivo pode ser detectado, com as escusas pelo propositado pleonasmo, de maneira objetiva, pois segundo ele, a posse é a exteriorização da propriedade, sua parte visível. O possuidor age em nome da coisa como se fosse o proprietário. Ao vislumbrar a posse, presume-se a propriedade.
A intenção de ter a coisa como sua (animus), é desnecessária, segundo Ihering, para a comprovação da posse, a qual passa a existir quando esta preenche sua finalidade econômica, de acordo com a ordem natural das coisas. Isto significa que, para o autor, não há a necessidade do poder de fato sobre a coisa para a ocorrência do elemento objetivo, apresentando um elemento diferenciador sobre o próprio conceito de corpus trazido por Savigny.
Ihering nos mostra que o animus está subentendido no comportamento do possuidor, porque se age como dono, é porque tem a intenção dominus, quer dizer, o animus já se encontra no conceito de corpus, sendo este explicado com o propósito de utiliza a coisa como se fosse o proprietário, observando a sua função econômica.
Nessa teoria, o Direito visa proteger a posse em virtude da propriedade que a posse faz se supor. Serve para proteger a posse tendo em vista proteger os direitos do proprietário. Resumindo, a posse é condição de fato de utilizar-se economicamente da propriedade, é uma forma de defesa da propriedade. O direito de possuir está inserido no conteúdo do direito de propriedade.
O Código Civil de 2002, como o de 1916 (art. 485), adotou a teoria de Ihering. Conforme está escrito o art. 1196, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Joel Dias Figueira Junior[3] faz uma critica a redação desse artigo, no pedaço que considera a posse como necessitando de um exercício dos poderes inerentes à propriedade. Segundo ele, “por conta da consideração do corpus como um elemento da posse, surgiu o uso da expressão “exercício do poder”, para demonstrar a manifestação exteriorizada do poder de fato que corresponde à propriedade ou outro direito real”.
Porém, para ele, para que se caracterize a posse, não é necessário que sejam exercidos atos, bastando somente, em qualquer caso, a existência do poder sobre um bem. Por conta disso que é admitido a posse de um imóvel sem que o possuidor cultive, explore ou visite.
Dessa forma, ele afirma que a posse não é exercício do poder, mas sim o poder propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um determinado bem, caracterizando-se tanto pelo exercício como pela possibilidade de exercício. Para ele, ela é a disponibilidade e não a disposição; é a relação potestativa e não, e não a disposição, sendo que o titular da posse tem interesse em conservá-la e protegê-la de qualquer tipo mal que venha a ser praticado por outra pessoa, mantendo o bem com ela numa relação de normalidade, visando atender a sua efetiva função sócio-econômica.
Os atos de exercício dos poderes do possuidor são facultativos, come eles não se adquire nem se perde a posse, que nasce e subsiste independentemente do exercício desses atos. Assim, a adequada concepção sobre o poder fático não pode restringir-se as hipóteses do exercício deste mesmo poder”.
O Projeto de lei nº 6.960/02 propõe uma mudança na redação do referido artigo 1.196 que passará a ter a esta redação: "considera-se possuidor todo aquele que tem poder fático de ingerência sócio-econômica, absoluto ou relativo, direto ou indireto, sobre determinado bem da vida, que se manifesta através do exercício ou possibilidade de exercício inerente à propriedade ou outro direito real suscetível de posse". Adotando sugestão de Joel Dias Figueira Junior.
Sendo assim, fica claro que esta teoria contribuiu e muito para a formação dos latifúndios, uma vez que não é necessário que se faça uso da propriedade, propriamente dita, não há a figura da função social da posse ou da propriedade, basta que o proprietário demonstre o ser para ter sua posse assegurada.
Dessa forma vemos que principalmente nos séculos passados, muitos proprietários não se incomodavam em utilizar suas terras, tendo em vista que não sofriam qualquer ameaça de perdê-la, fazendo essa forma de “gestão” fundiária viesse a predominar, causando enormes transtornos para as gerações futuras e fazendo com que tenhamos ainda hoje, um grande problema com a distribuição das terras.
Porém não devemos criticar com tanto entusiasmo nossos antepassados, pois o nosso atual código, repetiu muitas coisas do antigo, de 1916, até porque essa situação não se modificou muito do Século XVII pra cá. Dos responsáveis pela elaboração das leis, muitos são aqueles que detêm (são proprietários) grandes latifúndios improdutivos. Passou o tempo, mas pouco se alterou no país. Não há interesse por parte deles, em que seja mudada essa política, tendo em vista suas terras, muitas vezes servirem para especulação, fazendo com que milhares de pessoas morrem Brasil a fora, quando elas necessitam, é um pedaço de terra para trabalhar e viver dignamente.
A Perspectiva da hermenêutica dos direitos reais sob a luz do Direito Civil-Constitucionalista para dirimir o quadro social
Segundo o autor Paulo Luiz Netto Lobo[4], o direito civil vai ressurgir como um sistema jurídico de fundamental importância para a realização cotidiana da dignidade da pessoa humana, que passa a ter mais importância que as relações patrimoniais, as quais eram consideradas como as mais importantes nas codificações liberais. A sua unidade não está mais vinculada aos códigos civis, mas sim ao conjunto de princípios que foram elevados à Constituição e aos tratados internacionais que possuíam matérias a ele vinculadas.
Não vai se tratar apenas de estabelecer uma comunicação entre os diversos saberes jurídicos, principalmente entre o direito público e o privado ou investigar como o direito civil se insere na Constituição jurídico-positiva, mas sim o de ver os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem ser extraídos.
Atualmente não se busca demarcar os espaços distintos ou mesmo contrapostos. Antes havia uma separação, hoje existe uma unidade hermenêutica que tem a Constituição como o ápice conformador da elaboração da legislação civil. É grande a mudança de atitude: o jurista deve interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não o contrário como muitas vezes é feito.
É possível afirmar que a constitucionalização é o meio pelo qual se dá a elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil e que passam a exigir observância pelos cidadãos e a aplicação pelos tribunais da legislação infraconstitucional.
Com o Código Civil de 2002, impõe-se ao interprete e a quem for aplicar o direito, a grande responsabilidade de interpretá-lo de acordo com os princípios e valores presentes na Constituição, ou seja, trazer o código para a contemporaneidade, visto que muitos dos artigos do Código de 1916 foram mantidos no Código de 2002, salvo algumas mudanças e que não mais exprimem ou tem o significado pensado pelas pessoas que o escreveram em 1916.
Os códigos civis tiveram como modelo o cidadão dotado de patrimônio, ou melhor, o burguês que estava livre do controle ou do impedimento público. Foi dessa maneira que foi entendido o homem comum, deixando a grande maioria fora de seu alcance.
Ao Estado coube somente estabelecer as regras que diziam respeito ao jogo das liberdades privadas, no plano infraconstitucional, de sujeitos de direito formalmente iguais, sem suas desigualdades reais. Foi consumado o darwinismo jurídico, prevalecendo os economicamente mais fortes, sem brechas para a justiça social. A codificação liberal e a ausência de uma constituição econômica acabaram servindo como instrumento de exploração dos mais fracos pelos mais poderosos, gerando conflitos que “desaguaram” no advento do Estado social.
Houveram duas etapas na evolução do movimento do Estado liberal: a primeira foi a da conquista da liberdade e a segunda a exploração da mesma. Como “herança” do Estado liberal a liberdade e as igualdades jurídicas, mesmo sendo formais, incorporaram-se ao catálogo dos direitos das pessoas humanas e não somente aos sujeitos das relações jurídicas e nenhuma ordem jurídica democrática pode abrir mão das mesmas.
Para o autor, o Estado social, no plano do direito, é todo aquele que tem incluso em sua Constituição a regulação da ordem econômica e social. Além de limitar o poder político, são limitados também os poderes econômicos e sociais projetando para além dos indivíduos a tutela dos direitos, inclusos aí o trabalho, educação, moradia, etc.
A ideologia do social que é traduzida nos valores de justiça social ou de solidariedade social, passou a dominar o cenário constitucional do século. A sociedade exige o acesso aos bens e serviços que são produzidos pela economia.
A codificação civil liberal tinha como um valor necessário da realidade da pessoa, a propriedade, em torno da qual giravam os demais interesses privados que eram juridicamente tutelados. O patrimônio, ou seja, o domínio sobre bens, inclusive contra a vontade imperiosa de quem detinha poder político, realizava a pessoa humana.
Para o autor, pode-se afirmar que as relações civis têm um forte cunho patrimonialista e para se confirmar isso, basta recordar que entre seus principais institutos estão a propriedade privada e o contrato, que é um modo de circulação da propriedade. Porém, o fato de o patrimônio prevalecer como um valor individual que precisava ser tutelado pelos códigos, fez com a pessoa humana fosse substituída passando a figurar como simples e formal pólo de relações jurídicas, como sujeitos abstraídos de suas dimensões reais.
Para Paulo Luiz Netto Lobo, a patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos com um sentido de primazia, não tem compatibilidade com os valores fundados na dignidade da pessoa humana que foram adotadas pelas Constituições modernas, incluindo-se aí a brasileira (art. 1º, III). A repersonalização vai reencontrar a trajetória da história da emancipação humana, no sentido de recolocar a pessoa humana como o centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de mero coadjuvante nem sempre necessário.
O grande desafio que é posto perante os civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda a sua dimensão ontológica e através dela seu patrimônio. A restauração da primazia da pessoa humana nas relações com a condição primeira de se adequar ao direito e à realidade e aos fundamentos constitucionais.
O abstratismo do liberalismo econômico cede espaço para o homem concreto da sociedade contemporânea, na busca de um humanismo socialmente comprometido. É a centralização em torno do homem e dos interesses imediatos que faz o direito civil. Firma-se a convicção de que o domínio sobre as coisas não é um fim em si mesmo, mas a idéia de um patrimônio mínimo, formado de bens e créditos, que garanta a sobrevivência de cada um, é imprescindível como suporte de realização do princípio da dignidade humana.
Para ele, o caminho da sociedade moderna, comprovado em geral por uma análise mais detida das tendências dominantes da legislação e da aplicação do direito é o da solidariedade social, ou seja, da responsabilidade não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e de cada um dos membros individualizados, pela existência social de cada um desses outros membros da sociedade.
Para que a personalidade individual se desenvolva, é imprescindível o adimplemento dos deveres inderrogáveis de solidariedade social e que implicam em condicionamentos e comportamentos entre os indivíduos realizados em um contexto social.
A doutrina entende que os princípios constitucionais são auto-executáveis, portanto, se deve atender a esses princípios, visando o bem estar da coletividade e o aproveitamento dos recursos disponíveis, com vistas à por em prática de uma forma efetiva a dignidade da pessoa humana.
Mudando o foco para a posse/propriedade, segundo o autor, nossa Constituição prevê duas regras sobre a questão em seu art. 5º, que se lidas isoladamente, provocam certa antinomia: o inciso XXII – é garantido o direito de propriedade – aqui se visualiza a garantia da propriedade, do Estado Liberal; Já no inciso XXIII – a propriedade atenderá a sua função social – é a previsão coletiva que veio surgir com o Estado Social. A antinomia segundo ele, é reproduzida no artigo 170, que se refere à atividade econômica, sendo que por um lado o que prevalece é o interesse individual e do outro o interesse social.
Dessa forma, a solução para o conflito fundiário brasileiro é analisar as regras sob o prisma do princípio da proporcionalidade, no sentido de se ponderarem direitos e interesses em conflito. Não se deve interpretar as normas de forma isolada, nem prevalecer uma sobre a outra, deve-se encontrar uma solução harmônica tendo em vista que as duas tem a mesma hierarquia constitucional.
Assim, o exercício do direito de posse/propriedade tem de ser feito visando a sua utilidade, não somente para o “utilitário”, mas para a coletividade em geral, o que a torna incompatível com a especulação.
A nossa constituição tem meios para evitar que isso ocorra fazendo com que proprietários percam suas terras, caso inobservem a função social da mesma, (Art. 182 – Propriedade urbana e art.186 – propriedade rural), pois assim, outras pessoas podem dar uma destinação que venha a atender os interesses da sociedade.
Segundo nossa constituição, o fato da propriedade ter de ser útil, se sobrepõe ao simples domínio da coisa, necessitando também a efetiva ocupação e destinação social da mesma.
Ainda sobre a questão da função social da posse/propriedade, vale ressaltar também que nossa constituição prevê que o proprietário não pode “destruir” o meio ambiente (art. 225, CF), devendo o mesmo cuidar da preservação do mesmo, pois o meio-ambiente é pertencente à coletividade e, portanto prevalece sobre qualquer direito de propriedade ou posse.
Portanto, a concepção de propriedade oriunda da Constituição Federal, é bem mais abrangente que o domínio sobre coisas corpóreas, tradicionalmente consideradas. Envolvendo a própria atividade econômica assim como quaisquer propriedades intelectuais. Portanto, todas as propriedades, sem exceções, estão sujeitas a sua função social.
A Função Social da Posse e tentativas de amenizar os conflitos fundiário no Brasil.
O princípio da função social da posse está ganhando cada vez mais importância pela valorização da chamada posse-trabalho, prevista nos artigos, 1.238, parágrafo único; 1.242, parágrafo único; e 1.228, parágrafos 4º e 5º, do Código Civil. Nesses artigos, estão previstas a redução do período da usucapião nos casos em que o possuidor, utiliza o imóvel com fins de morar, ou realizando obras ou investimentos que tenham objetivo de produzir algo ou aumente a produção da mesma, todas essas obras tem um relevante valor econômico e social, indo de acordo com a solidariedade social.
A posse, ainda que seja exteriorização da propriedade, contribui para comprovar sua função social, a posse com ela não pode e nem deve se confundir. Sabemos que uma pessoa pode ter a posse sem ser proprietária do bem, já que ser proprietário é tão somente o domínio da coisa a qual se refere. A posse está relacionada a se ter tão somente a disposição da coisa, dela se usufruindo, com fins sócio-econômicos. De acordo com o conceito do Código Civil de 2002, pode-se afirmar que todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário (arts. 1.196 c/c 1.228 do CC).
Dessa forma, percebemos que nos nossos dias não há como ver a propriedade ou a posse, que não esteja sendo destinada para algum tipo de fim. É imperioso valer a letra da Constituição no sentido de que não há mais espaço para que se utilize principalmente os imóveis, para fins de mera especulação.
O texto se refere bastante as ações do Poder Executivo, porém não é somente ele que tem o poder para fazer valer a função social da posse, não estou aqui querendo defender o Governo Lula, muito pelo contrário, por tudo o que prometeu, deixa muito a desejar, sobretudo na questão da reforma agrária, e ele foi o único presidente que foi eleito com apoio de movimentos que lutam pela terra.
Porém o poder Judiciário também tem um importante papel nesse sentido, como a experiência de vida e forense é curta, me basearei em passagens da entrevista concedida ao jornal Brasil de Fato pelo ex-procurador do Estado do Rio Grande do Sul, Jacques Távora Alfonsin[5].
Para ele, muitos juizes costumam julgar em favor dos proprietários, bastando que os mesmos comprovem ter um direito adquirido sobre ela. E os defensores da reforma agrária não concordam com isso, pois se baseiam na Constituição, Código Civil, etc., para demonstrar que o direito adquirido sobre a propriedade nem sempre equivale a um direito conservado, pois a mesma está sujeita a sua função social, que pode ser mensurada pelo modo como se usa a terra, e não somente pelo seu registro.
Deve ser observado se o proprietário está observando as necessidades da comunidade, se está respeitando o meio ambiente, seus empregados, etc. Para ele a posse/propriedade tem ser compatibilizada com o bem-estar coletivo, com interesses e direitos de todas as pessoas. Segundo ele, graças a pressão exercida pelos movimentos sociais, o caráter social tanto da posse quanto da propriedade, começa a ser melhor avaliado pelos juizes. Nesse sentido, ele diz[6]:
Nós já contamos com uma decisão famosa, relacionada com uma fazenda situada em Bossoroca (RS), ocupada pelo MST em 1998, em que 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado negou a reintegração de posse em favor da proprietária, baseada no fato de que, quando se encontrarem em conflito direitos patrimoniais (como o dos latifundiários) e direitos humanos fundamentais (como o dos sem-terra), se a solução do caso deve passar pelo sacrifício de alguns deles, os sacrificados deverão ser os patrimoniais.
Esse julgamento tem causado muita discussão no país inteiro, mas demonstra, por si só, que o Judiciário, como poder de Estado, não pode se deixar levar pelo conhecido clamor daquela parte majoritária da mídia submissa aos latifundiários, que não enxerga mais do que crime nas ocupações de terra.
Ao ser perguntado se o judiciário também tem uma visão parecida com a dos defensores do latifúndio que dizem ser o direito à propriedade privada, um direito inalienável – sagrado, às vezes.
Esse entendimento ainda prevalece em muitas sentenças, deixam de perceber que a posse/propriedade é um bem indispensável à coletividade e também é indispensável que ela seja destinada para algum fim social buscando melhorar a qualidade de vida das pessoas, respeitando também o meio ambiente, ou seja, cumprir uma função social. Para ele[7]:
Tais julgamentos admitem o tratamento jurídico da terra como aquele com que se trata uma simples mercadoria, coisa que acontece, por exemplo, quando um conflito sobre latifúndio em desuso, seja ele urbano ou rural, é julgado a favor do seu proprietário, mesmo que esteja sendo assim deixado como simples reserva especulativa de valor. Nenhuma lei admite isso. As sentenças que assim procedem, além de injustas, infringem, pelo menos, a Constituição Federal, o Código Civil, etc.
Ao ser questionado sobre de que forma o Judiciário poderia tentar amenizar esse quadro social, o mesmo afirma que há a urgente necessidade de se mudar o modelo interpretativo das leis, que não leva em conta a Constituição Federal. Os conflitos de terras são muitas vezes vistos, como uma briga interindividual, entre proprietário e os movimentos sociais, sendo que a questão fundiária é um problema do país todo.
Nesse tipo de conflito, deve ser observado os direitos humanos daqueles que não são proprietários e o direito difuso de proteção ao meio ambiente em contra partida aos do latifundiário.
A função social da posse/propriedade, só é cumprida com a devida observância dos direitos alheios, tendo o judiciário que passar a julgar esses conflitos não mais com base no direito privado pura e simplesmente, mas também sob a ótica da Constituição Federal, nesse sentido completa: [8]
Isso é coisa que não depende apenas da cabeça do juiz, mas também do seu coração, já que a dignidade humana, permanentemente em causa quando se trata de terra, ultrapassa a letra fria da lei. Não é por acaso que a palavra sentença tem a mesma raiz de sentimento.
O jurista ainda foi perguntado se os movimentos sociais, com suas ações, conseguem pressionar para essa mudança. No entender dele sim, visto que, para ele, muitas das ocupações de terra, estão baseadas na lei, citando o artigo 188, inciso II, do Código Civil, onde reza que não se constituem atos ilícitos “a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente”.
Não há perigo mais iminente do que milhares de famílias passando fome e muitas que não têm onde morar.
Ele questiona o fato das interpretações sempre serem em favor daqueles possuidores de uma propriedade, mesmo que elas não cumpram sua função social.Completa[9]:
A dignidade humana de pessoas pobres, comprovadamente desrespeitadas nos seus direitos humanos fundamentais, revela situação de perigo até mais do que iminente perigo que já obteve danosas e injustas conseqüências, impedindo que elas satisfizessem as suas mais elementares necessidades vitais.
Já é hora, portanto, de a sociedade civil como um todo; os proprietários de latifúndios rurais e urbanos e o próprio Poder Público passarem a se questionar sobre se ainda pode ser considerado crime toda e qualquer ocupação de terra, mesmo aquela que mais não faça do que defender a vida, e vida com dignidade.
Portanto, conforme já dito, e procurando sugerir algo que possa ser considerado como uma solução entendo que toda posse/propriedade deve obedecer a sua função social, devendo o Poder Público buscar os meios para que sejam perseguidas ao máximo a efetividade tanto da tão batida função social da posse/propriedade, como também dos princípios norteadores do Estado Brasileiro, principalmente o da dignidade da pessoa humana, fazendo com que também possamos a cada dia, darmos um passo em busca da tão proclamada igualdade material, construindo uma sociedade mais justa para todos e fazendo se não cessar, ao menos diminuir os conflitos no campo, uma vez que todos os anos, eles tiram vidas de milhares de pais de famílias, sejam eles posseiros, proprietários, policiais, etc., todos aqueles envolvidos nos referidos conflitos.
Bibliografia
- Lopes, José Reinaldo de Lima. O Direito na Historia – Lições Introdutórias. 2ª ed. Revista. Max Limonade.
- IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da posse. São Paulo: Edipro, 2002, 2ª edição.
- Novo Código Civil Comentado, p.1062-1063, e Posse, cit.,v.I,p.95-97 in Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, v. V: direito das coisas. 2ª ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva.
- Lobo, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. In Farias, Cristiano Chaves de (org.). Leituras Complementares de Direito Civil: o direito civil-constitucional em concreto. Bahia. Podium, 2007.
- REFORMA AGRÁRIA: Toda terra tem uma função social. JORNAL BRASIL DE FATO. Rio Grande do Sul, 2006 - diário. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/v01/impresso/anteriores/jornal.2006-12-13.4782019942/editoria.2006-12-15.2047547286/materia.2006-12-27.8762845265. Acesso 24/03/2008.
- Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume V: direito das coisas. 2ª ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva.
[1] Lopes, José Reinaldo de Lima. O Direito na Historia – Lições Introdutórias. 2ª ed. Revista. Max Limonade.
[2] IHERING, Rudolf von. Teoria Simplificada da posse. São Paulo: Edipro, 2002, 2a edição.
[3] Novo Código Civil Comentado, p.1062-1063, e Posse, cit.,v.I,p.95-97 in Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, v. V: direito das coisas. 2ª ed.rev. e atual. p.42. São Paulo: Saraiva.
[4] Lobo, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. In Farias, Cristiano Chaves de (org.). Leituras Complementares de Direito Civil: o direito civil-constitucional em concreto. Bahia. Podium, 2007. pág. 21-36.
[5]REFORMA AGRÁRIA: Toda terra tem uma função social. JORNAL BRASIL DE FATO. Rio Grande do Sul, 2006 - diário. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/v01/impresso/anteriores/jornal.2006-12-13.4782019942/editoria.2006-12-15.2047547286/materia.2006-12-27.8762845265. Acesso 24/03/2008 às 11h:27.
[6] Idem. Ibid.
[7] Idem. Ibid.
[8] Idem. Ibid.
[9] Idem. Ibid.
Formado pelo Centro Universitário do Pará - Cesupa/2010. ós-Graduado (Especialista) em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Assessor de Juiz, Vinculado à 7a Vara de Família da Capital no Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Twitter: http://twitter.com/@Nando_Vianna09 . blog: http://veritas-descomplicandoavida.blogspot.com/ <br>e-mail: [email protected]<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Fernando José Vianna. Uma visão sobre a posse do Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2009, 09:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17464/uma-visao-sobre-a-posse-do-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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