I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES *
As observações extraídas do quotidiano forense e a solução que tem sido apresentada pelo Judiciário a respeito do crime de fraude no pagamento por meio de cheque levaram-me a encetar uma análise acerca dos problemas que gravitam em torno da figura penal positivada no art. 171, § 2º, inc. VI do Código Penal Brasileiro.
Pude, assim, colher, em minha pequena experiência profissional, as seguintes observações:
1ª Embora não se revista de gravidade comparável à de outros delitos em que o evento lesivo é irreversível, a emissão fraudulenta de cheques sem fundos situa-se, ao lado dos crimes de furto e de lesões corporais, entre os que mais atolam os escaninhos e prateleiras da Justiça.
2ª Na grande maioria dos casos, o processo-crime relativo a tal delito segue à revelia do acusado, já que é raríssima a situação em que se logra a localização do réu no endereço constante no verso do cheque ou no cadastro bancário. Esta constatação induz à reflexão de que a revelia do acusado credita-se à sua manobra para furtar-se à ação da justiça, ou deriva simplesmente da sua falta de conhecimento da existência de ação penal contra si instaurada em decorrência do não pagamento de cheque por ele emitido.
3ª Em uma considerável parcela dos casos, resulta evidente, ao cabo da instrução criminal, que a cártula não foi dada ao beneficiário como uma ordem de pagamento à vista, mas sim que a sua emissão teve o fito de garantir uma dívida assumida, prometer o adimplemento, em data pré-fixada, de um contrato de compra-e-venda, substituir um outro título representativo de um débito etc. De ver-se que o resultado da comprovação de uma destas situações - e de outras que enriquecem a casuística forense - leva o processo, salvo raras exceções, a um resultado desfavorável à acusação, eis que, pela sistemática penal vigente, reputa-se não ser juridicamente acertada a condenação do emitente do cheque sem provisão de fundos se este não emitido como uma ordem de pagamento à vista, ou se da falta de pagamento da cártula não resultou vantagem ilícita do seu emitente em prejuízo do tomador.
4ª Em outra considerável quantidade de situações submetidas à apreciação do Judiciário, o resultado é desfavorável à defesa, eis que se condena o acusado a quem se imputa a infração prevista no art. 171, §2º, inciso VI, do Codex penal, pelo simples e isolado fato de ter emitido um cheque que, apresentado ao banco sacado, é devolvido por falta ou insuficiência de fundos disponíveis, desprezando-se a necessária comprovação judicial de que tal conduta cercou-se do elemento subjetivo inerente à conduta em questão. Olvidam-se os produtores de tais sentenças que a fraude no pagamento por meio de cheque é uma modalidade do crime de estelionato, o que obriga a cabal demonstração do dolo (inerente à fraude) consistente em causar prejuízo a outrem, em proveito ilícito próprio, mediante a emissão do cheque ao beneficiário, induzindo-o ao erro de que a cártula possui correspondente provisão de fundos junto ao banco sacado.
Dentre as observações retro-indicadas, destaco as duas últimas, uma das quais traduz a impunidade de muitas condutas que, em face da opção legislativa pátria, não podem ensejar um decreto condenatório, a despeito da lesividade social do comportamento (observação 3ª), denotando a outra observação (4ª) a fragilidade e a ilegalidade das decisões judiciais que presumem a fraude pela simples emissão de um cheque que vem a ter o seu pagamento recusado pelo banco sacado por falta ou insuficiência de fundos.
II. O ELEMENTO SUBJETIVO
Parece inegável que, pela posição topográfica que ocupa no texto legal, a primeira conclusão a que se chega é a de que a "fraude no pagamento por meio de cheque"é um subtipo do crime de estelionato (caput do art. 171 do Código Penal) e, como tal, deste extrai seus princípios básicos, quais sejam, a fraude (consistente em induzir a erro a vítima, fazendo-a supor que o cheque possui fundos disponíveis no banco sacado), e o resultado dúplice, caracterizado pelo proveito ilícito do agente e pelo prejuízo patrimonial da vítima.
Destarte, não basta a emissão (ato de colocar a cártula em circulação) de um cheque (conceituado como ordem de pagamento à vista, com as características que lhe dá o art. 1º da Lei 7.357/85) que, ao ser apresentado ao sacado, tem o seu pagamento recusado por este em virtude da não provisão de fundos. Impõe-se, além destes dados de natureza objetiva, perquirir e comprovar se, ao emitir a cártula, sabia o emitente que ela não possuía o necessário lastro financeiro no banco sacado e que, com tal agir, estava auferindo vantagem ilícita em prejuízo do beneficiário daquela ordem de pagamento.
Vale transcrever, aqui, o lecionamento do mestre italiano F. ANTOLISEI, em seu consagrado Manuale di Diritto Penal, p. 303, onde anota, verbis:
"Sempre in applicazione dei principi generali, il dolo deve essere precedente o concomitante all'azione criminosa. Un dolo sucessivo, in conseguenza, non può dar luogo a responsabilità per truffa" (grifo nosso).
Sensível a este posicionamento, derivado da análise deste subtipo de estelionato, editou o Supremo Tribunal Federal a Súmula 246, segundo a qual "Comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundos".
Todavia, a imperfeita redação do citado preceito sumular, e também do tipo legal, tem dado azo a uma prática judiciária em que a presunção de culpabilidade (lato sensu) do acusado prevalece sobre a sua presunção de inocência, exigindo-se daquele a prova de que não agiu fraudulentamente, e, por conseguinte, isentando a acusação de provar elemento constitutivo do tipo penal em apreço, vale dizer, o seu elemento subjetivo característico, o animus lucri faciendi.
A propósito, como bem coloca o inigualável e saudoso Ministro NELSON HUNGRIA, in COMENTÁRIOS AO CÓDIGO PENAL, vol. VII, p. 246, "Por mais culposo que seja o erro do agente, ao supor que dispunha de provisão bastante em poder do sacado, inexistirá o elemento subjetivo do crime".
Não se há de aceitar, portanto, o uso de um instituto já superado pelas modernas conquistas da ciência penal - o dolus in re ipsa - ao argumento de que em determinados ilícitos o dolo está ínsito na própria materialidade da conduta, ou de que exigir-se a comprovação daquele elemento subjetivo seria enfraquecer sobremodo a acusação pública e cooperar com a impunidade dos infratores. Em arremate, "o dolo deve ser sempre diretamente verificado" (G. BETTIOL, in Direito Penal, vol. II, p. 105).
Dando prosseguimento a esta breve incursão sobre a infração penal sub examen, é de concluir-se que, ao menos dentro de nossa dogmática penal, amparada por maciço entendimento doutrinário-jurisprudencial, trata-se de um crime material, de dano, cujo bem jurídico imediatamente atingido é o patrimônio de alguém.
Dessume-se, pois, desta classificação que o crime se consuma no momento e local em que o agente obtém vantagem ilícita em prejuízo alheio, o que ocorre quando o sacado recusa o pagamento do cheque por insuficiência de fundos (Súmula 521 do STF), lesando o patrimônio do beneficiário do cheque, que se vê desfalcado em decorrência da fraude engendrada pelo emitente da cártula.
Daí ser possível falar-se em crime tentado se, por circunstâncias alheias à vontade do agente, o cheque vem a ser pago, ou porque o sacado decidiu honrar o cheque, ou porque alguém efetuou depósito na conta do emitente de modo a suprir a inicial ausência de fundos, como também se afigura possível uma situação de arrependimento eficaz se o próprio agente, após emitir fraudulentamente o cheque, provê de fundos a sua conta junto ao banco sacado antes que este recuse o pagamento da cártula. Não me iludo, todavia, em acreditar que situações como as descritas dêem ensejo a uma ação penal, eis que o crime em tela é daqueles que somente são noticiados às autoridades policiais quando consumados e quando o beneficiário do cheque não obtém a imediata reparação do prejuízo sofrido.
III. BEM JURÍDICO OFENDIDO
A este ponto, a discussão se encontra amadurecida para a abordagem e a reflexão daquilo a que me proponho trazer à consideração do leitor. É necessário promover mudanças no tratamento que a lei penal confere à figura criminosa em estudo? A concretização do direito objetivo tem sido suficiente para a repressão do crime de emissão fraudulenta de cheque sem fundos? Deve o patrimônio ser o único bem jurídico a ser tutelado pela norma penal no que diz respeito à prática ilícita ora analisada?
Tomo a última indagação como alicerce sobre o qual se desenvolverá o raciocício doravante.
A inserção do ilícito descrito no art. 171, § 2º, inciso VI do Código Penal dentro do Capítulo VI do Título II de sua parte especial, revela duas nítidas intenções do legislador penal de 1940, a saber, tratar a emissão de cheques sem fundos como uma modalidade do crime de estelionato, e deixar claro que o bem jurídico tutelado pelo tipo em apreço é o patrimônio, in casu, o patrimônio de quem recebe um cheque a descoberto.
Por via de dedução, deixa de existir crime quando o ato de emitir cheque sem fundos não vier acompanhado da vontade do emitente dirigida a, com semelhante agir, perceber vantagem ilícita em prejuízo alheio.
Portanto, se a emissão se dá para pagar dívida já existente; se visa apenas a garantir uma dívida; se o cheque é dado para pagamento em data diferida, enfim, em todas estas e em muitas outras situações possíveis, ou o cheque não foi dado como uma ordem de pagamento à vista - e neste caso não se poderia supor e exigir que no momento da emissão do cheque houvesse lastro financeiro junto ao banco sacado (hipóteses do cheque dado como garantia de dívida ou pós-datado) - ou a cártula não foi a causa do prejuízo da vítima (cheque dado em substituição de outro título de crédito, ou em pagamento de dívida anteriormente existente, documentada ou não).
IV. A TUTELA METAPATRIMONIAL
Não há como negar que a simples colocação em giro de um cheque que não poderá ser pago por não dispor de lastro financeiro junto ao banco sacado, antes de afetar o patrimônio do beneficiário, afeta, abstratamente, a segurança das relações do comércio e a confiança que o público deve depositar neste título de crédito, concebido como instrumento de pagamento com valor assemelhado à moeda corrente.
Irrefutável, outrossim, que o dano patrimonial é fato contingente e remediável. Basta pensar na possibilidade - quase sempre verificada em concreto - do ressarcimento, por parte do emitente, do prejuízo sofrido pelo tomador do cheque com a sua devolução pelo banco sacado.
Por sua vez, o dano à fé pública e à segurança que as relações do comércio devem merecer é mais prolongado, senão irreversível. Se, em determinada localidade, há o hábito de se emitirem cheques a descoberto, ainda que todos os emitentes reparem o dano causado pela recusa do pagamento por insuficiência de fundos, não se poderá negar que a fé e a confiança que o público local depositavam neste instrumento de pagamento serão duradouramente afetadas. A propósito, caracterizam tal assertiva a famigerada sinalização que alguns comerciantes colocam à vista do público : "NÃO ACEITAMOS CHEQUES", OU "ACEITAMOS SOMENTE CHEQUES ESPECIAIS".
Outra não foi a razão - necessidade de proteção não somente ao patrimônio do particular, mas também da credibilidade do cheque - que levou alguns países a considerarem crime a simples conduta de emitir um cheque que não possa ter a sua ordem de pagamento cumprida por falta de fundos disponíveis em poder do sacado (neste sentido, as legislações alienígenas: Áustria, Lei de Cheques, art. 67; Colômbia, Lei 8ª, art. 3º; extinta Iugoslávia (art. 232-a do Código Penal de 1959; Itália, Lei 386/90, artigos 1º e seguintes; Espanha, Código Penal, art. 563, bis; Portugal, Decreto 13.003/27, art. 23; Argentina, Código Penal, art. 302).
Ilustrando a matéria, CUELLO CALON, jurista mexicano citado por seu compatriota A. DOMINGOS DEL RIO, in "La tutela Penal del Cheque", p. 23, aduz que
El cheque, instrumento de pago, que hoy casi llega a asumir il rango de verdadera moneda, ha alcanzado en nuestra epoca como es bien sabido una considerable difusión. Mas para que llene satisfactoriamente su función es menester que infunda confianza, que su tomador tenga seguridad completa de que será pagado, a su presentación, que tenga casi la misma seguridade que la moneda".
Em sentido semelhante se posiciona o consagrado penalista argentino, SEBASTIÁN SOLER, in "Derecho Penal Argentino", vol. 5, p. 494, cujas palavras merecem transcrição:
"El bien juridico tutelado por esta infracción es el de la confianza en instrumentos de valor pecuniario a los cuales debe ir unida la más estrecha garantia de immediata realización. Pero un protectión generica del valor de esos papeles solamente es alcanzada cuando ese valor es defendido en si mismo, con independencia de los daños concretamente causados em un caso determinado"
Um pouco mais adiante, arremata o preclaro autor:
"La protección legal se tiende aquí sobre la confianza publica, y está mas inspirada por el fin de evitar, más que directos perjuicios patrimoniales, los transtornos que puede causar la entrada en circulación de um documento espurio".
Entre nós, cabe destacar o doutrinamento de HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, em suas celebérrimas "Lições de Direito Penal", parte especial, p. 93, onde ressalta que, embora perante a lei penal pátria o interesse imediatamente protegido seja o patrimônio do tomador do cheque,
"Em geral, as leis que especificamente regulam a emissão e o pagamento por meio de cheque procuram penalmente tutelá-lo como interesse em si mesmo e sem consideração aos danos que possam advir de seu emprego fraudulento. Protegem, assim, a confiança no cheque como instrumento de valor e meio de pagamento, considerando o interesse público na circulação fiduciária do mesmo. Essa orientação explica que o crime se situe entre as infrações penais à fé pública".
Observa, porém, o mestre brasileiro que, a exemplo do que ocorreu na França em 1975 (Decr. 75.903/75, que modificou artigos do Decreto-lei de 30/10/35), a tendência atual - contestada por autores de idêntico quilate, como S. Soler e J. de Asúa - é a de descriminalizar a emissão fraudulenta de cheques sem fundos, com a substituição das penas criminais por sanções civis e administrativas (imposição de multas e interdição ao direito de usar cheques).
Seja qual for a solução adotada, creio não se poder aceitar como acertada a forma pela qual uma questão de tamanha relevância social vem sendo tratada pelo nosso ordenamento positivo.
Apenas para enriquecer este escrito, cabe informar que, segundo dados do Banco Central, durante o mês de janeiro do ano de 1992 (época em que foi feita a consulta, mas certamente ainda refletindo a situação atual), foram compensados pouco mais de duzentos e setenta e seis milhões de cheques em todo o país, sendo que três milhões e seiscentos mil foram devolvidos pela rede bancária por insuficiência de fundos. Somente na cidade de São Paulo, naquele mês, novecentos e oitenta e quatro mil cheques tiveram o pagamento recusado pelos bancos por insuficiência de fundos.
Felizmente - para a Justiça - a grande maioria destes cheques não geram processos criminais, eis que os emitentes das cártulas efetuam o resgate do valor, eliminando o prejuízo do beneficiário da cártula, que se dá por satisfeito.
Aliás, cumpre abrir-se aqui um parêntesis para salientar que a maioria das emissões de cheques a descoberto se deve à negligência do correntista em sua contabilidade bancária. De fato, assim como a condução de um automóvel exige atenção e certos conhecimentos técnicos do motorista, o uso de um talonário de cheques requer uma constante vigilância do saldo bancário e um sedimentado conhecimento de matemática por parte do usuário, o que nem sempre ocorre. Não é raro, diga-se de passagem, encontrarem-se exemplos de pessoas que "puxam" o saldo do canhoto do talonário de cheques mentalmente, ou que se orientam somente pelo extrato bancário, hábitos que podem ensejar a emissão culposa de um cheque sem fundos, o que, conquanto indesejável, não é passível de punição penal ante o nosso ordenamento positivo.
V. POSSIBILIDADES DE REFORMAS
Impõe-se, dessarte, que se reformule a legislação - após a necessária reflexão doutrinária - a fim de não se deixar desprotegido este instrumento tão importante para a circulação de riquezas e para o desenvolvimento da economia nacional, e também ao escopo de se minimizarem as conseqüências processuais que derivam do tratamento penal atualmente dado ao problema em comento.
Algumas idéias poderiam ser pensadas e discutidas.
1ª A previsão de ilícito penal - quiçá a título de contravenção - na conduta de quem emite cheque sem provisão suficiente de fundos em poder do banco sacado, ou sem a sua autorização, desde que ausente, em tais condutas, a intenção de fraudar o pagamento, quando, então, aplicar-se-á o caput do art. 171 do Código Penal.
Separam-se, assim, duas condutas que atingem bens jurídicos diversos: na primeira, por lesar a fé pública, o sujeito é punido por colocar em circulação um documento ideologicamente falso, já que contém uma ordem de pagamento que sabe não poderá ser cumprida, no momento da emissão da cártula, pelo banco sacado, seja porque não dispõe o emitente de fundos disponíveis em sua conta corrente, seja porque não está autorizado ao uso de cheques; na segunda, protege-se o patrimônio do beneficiário da cártula, que sofre prejuízo em virtude de uma ação fraudulenta do emitente do cheque, que usa este instrumento de pagamento como artifício para enganar o tomador e auferir vantagem ilícita. Na primeira situação, sabe que o cheque não tem fundos no momento da sua emissão (fato que pode até ser do conhecimento do beneficiário da cártula, como no exemplo do cheque com data de pagamento diferida), mas não deseja ilidir o seu pagamento em data posterior; na segunda hipótese, o agente sabe que não dispõe de fundos e é sua intenção, desde a emissão do título, não honrá-lo.
2ª Outra possibilidade a ser estudada seria prever, também como conduta ilícita, o ato de receber ou endossar cheque, e, em seguida, colocá-lo em circulação, ciente de sua falta de cobertura junto ao banco sacado. Um dispositivo desta natureza teria dois objetivos imediatos, a saber:
a) evitar a prática, atualmente corriqueira no comércio, de se celebrarem negócios com o uso de cheques funcionando indevidamente como ordens de pagamento a prazo (cheques pré ou pós-datados, como preferem alguns), o que, além de desvirtuar a função típica do cheque (ordem de pagamento à vista), coloca em perigo as relações de comércio e a fé pública depositada neste instrumento de pagamento, em decorrência da colocação em circulação, por parte de quem recebe o cheque, de documento apto a lesar não somente aqueles bens jurídicos abstratos, mas também o patrimônio alheio. Seria, assim, uma conduta punida com dolo de perigo, e não com dolo de dano, como é a situação típica do estelionatário.
b) permitir a equiparação do endossante ao emitente, o que atualmente é rejeitado por grande parte da doutrina e da jurisprudência, que invocam, com razão, a proibição do uso da analogia in malam partem no Direito Penal.
3ª Como medida de política criminal, seria adequado criar-se uma possibilidade de não punição do emitente de cheques sem fundos ou daquele que frustrou o seu pagamento na hipótese em que vier a ressarcir, em moeda corrente, o valor do cheque não pago, dentro de prazo e mediante condições a serem definidas. Despiciendo dizer que, presente a vontade do emitente em lesar o patrimônio alheio, valendo-se deste meio fraudulento, não se deveria permitir a aplicação da solução proposta, muito embora ainda se aceite, comodamente, a validade da Súmula 554, não obstante o teor do art. 16 do Código Penal.
Esta previsão revelaria sensibilidade do legislador à realidade social e aos costumes já incorporados ao comércio, evitando, assim, um tratamento penal excessivamente rigoroso, permitindo o arrependimento do infrator ou a prova concludente de que, ao fazer circular um cheque sem fundos, não buscara e nem mesmo assumira o risco de lesão quer à fé pública depositada naquele documento, quer ao patrimônio do beneficiário da cártula.
A natureza jurídica deste instituto seria objeto de discussão doutrinária, porquanto se poderia concebê-lo como uma causa extintiva de punibilidade, como elemento do crime ou mesmo como condição de procedibilidade.
Note-se que na legislação argentina o não cobrimento do cheque, pelo emitente,
"dentro de las 24 horas de habersele comunicado la falta de paga mediante aviso bancario, comunicación del tenedor o cualquier otra forma documentada de interpelación"
integra a própria definição do tipo (art. 302 do Código Penal), tratando-se, como leciona SOLER, "de um caso excepcional de delito plurisubsistente al que concurre una omisión" (op. cit. p. 499).
Por outro lado, o mesmo SOLER, em 1960, apresentou projeto de lei propondo que
"em todos los casos el librador deberá ser informado de la falta de pago, mediante protesto u outra forma documentada de interpelación, quedando exento de pena si abonare el importe del cheque dentro de las veinticuatro horas siguientes".
Como se pode ver, aqui o ressarcimento do valor do cheque, após a sua recusa de pagamento pelo sacado, não integra o delito, mas se constitui em causa extintiva da punibilidade, solução que nos parece mais acertada.
Aliás, a questão é assim concebida no direito espanhol, cujo Código Penal, em seu art. 563-bis, estabelece:
"No obstante lo dispuesto en los números anteriores, quedará exento de responsabilidad penal el librador del cheque o talón que hiciere efectivo su importe en el plazo de cinco dias contados a partir de la fecha de su presentación al cobro"
4ª A prevalecer o entendimento de que não se devem criar novos tipos penais - dentro da tendência que inegável e acertamente vem ganhando corpo na moderna ciência penal - a solução seria estabelecer uma regulamentação mais rigorosa no que tange às relações entre bancos ou instituições financeiras e correntistas, relativas à concessão e ao uso de talonários de cheques, bem como entre aquelas entidades e o Banco Central, o qual deveria ser dotado de mecanismos mais eficientes e de maior coercitividade para exercer sua rotineira fiscalização . Multas efetivamente significativas (tanto aos correntistas quanto aos bancos que se descuram no fornecimento de cheques), além da proibição definitiva do uso de cheques, independentemente de sanções penais, a quem não demonstre responsabilidade no manuseio destes títulos de crédito, é algo que se espera e pode ser concretizado com uma simples determinação política.
* adaptação à palestra proferida por ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ em simpósio intitulado "Reforma da Legislação Penal", promovido pela Fundação Escola Paulista do Ministério Público, em maio de 1992.
Livro de Estudos Jurídicos, v.9
Promotor do MPDFT. Doutor em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco). Tese intitulada "A PROIBIÇAO DE DUPLA PERSECUÇAO PENAL (ne bis in idem): limites no Direito Brasileiro", defendida e aprovada em 18 de junho de 2007, perante Banca Examinadora composta pelos professores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes, Oswaldo Duek e Sérgio Shimura. Mestrado em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco) - Dissertaçao intitulada "GARANTIAS PROCESSUAIS NOS RECURSOS CRIMINAIS: IGUALDADE, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO", defendida e aprovada em 24 de abril de 2002, perante Banca Examinadora composta pelos Professores Doutores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e David Azevedo Teixeira. Home page: http://www.metajus.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Rogério Schietti Machado. Anotações sobre o crime de fraude no pagamento por meio de cheque Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2009, 08:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17636/anotacoes-sobre-o-crime-de-fraude-no-pagamento-por-meio-de-cheque. Acesso em: 03 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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