Não é estranho ao Direito penal, como também não é o a qualquer ramo do Direito, a sua remodelação, tendo em vista a necessidade de sua adaptação a um novo contexto social, no qual poderá ocorrer a supressão de determinados bens jurídicos ou mesmo de determinados valores, o surgimento de outros a demandaram sua excepcional proteção, além de uma releitura de circunstâncias já existentes, mas que, até então, não tinham exigido a sua consideração enquanto bens jurídicos penais.
É o que assevera SÁNCHEZ (2002, p. 27):
Por um lado, cabe considerar a conformação ou generalização de novas realidades que antes não existiam – ou não com a mesma incidência –, e em cujo contexto há de viver o indivíduo, que se vê influenciado por uma alteração daquelas; assim, a mero título de exemplo, as instituições econômicas de crédito ou de inversão. Por outro lado, deve-se aludir à deterioração de realidades tradicionalmente abundantes que em nossos dias começam a manifestar-se como “bens escassos”, aos quais se atribui agora um valor que experimentam, como conseqüência da evolução social e cultural, certas realidades que sempre estiveram aí, sem que se reparasse nas mesmas; por exemplo, o patrimônio histórico-artístico.
Essas circunstâncias não são descuradas por BIANCHINI (2007, p. 21) que afirma a existência de uma “expansão razoável”, a qual “[...] obedece à aparição de novos bens jurídicos (informática, engenharia genética, por exemplo), bem como à maior valoração que aquelas já preexistentes passam a experimentar na sociedade (é o caso do meio ambiente, do assédio sexual, etc...).”
Sob essa perspectiva, nesse processo de expansão razoável, não se pode olvidar que o meio ambiente reclama proteção por parte do Direito Penal. Esse fato é inquestionável, sendo suficiente destacar a importância desse bem jurídico na sociedade contemporânea, ainda mais quando se tem em perspectiva a constante e permanente degradação ocasionada pela ação do homem, evidentemente mais acentuada nos dias atuais.
O que é necessário questionar, no entanto, é a opção legislativa construída para efetivar a proteção desse bem jurídico.
Ora, é evidente que, ocorrido o dano, ou havendo risco concreto de dano, sem se esquecer da necessidade de buscar dolo ou ao menos culpa na conduta lesiva empreendida pelo agente, há evidente possibilidade de aplicação de uma norma penal, sujeito-se o acusado a sanção penal, ainda que se tenha em conta uma concepção eminentemente preventista.
O problema, dentre outros tantos, é utilização indevida desse ramo do Direito quando se observa que os tipos construídos pelo legislador são extremamente abertos, ferindo inclusive a legalidade estrita. Nesse caso, vê-se de forma clara que se tem por objeto a construção de um Direito penal de prevenção, ou seja, idealiza-se esse ramo do Direito como um mecanismo eficaz de prevenção do dano, a ele direcionando todas as condutas, mesmo aquelas que melhor seriam atendidas em outras searas.
O problema então, reitere-se, não está (exclusivamente) na preferência da tutela dos bens supraindividuais, senão na forma de criminalização e na interpretação desses tipos penais. Desde que observada a construção do injusto penal centrado prioritariamente no desvalor do resultado, nem sempre será ilegítima a referida antecipação da tutela penal. Ao menos do ponto de vista do princípio da ofensividade não haverá nenhuma censura. Outra coisa é se norma respeita a proporcionalidade, taxatividade etc. (que configuram outras garantias penais). (BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 84)
O que se percebe, contudo, é um processo crescente de administralização do Direito penal, construído sobre um agigantamento desse ramo do Direito, anunciado pelo legislador e pela mídia como o mecanismo mais eficiente na prevenção dos bens jurídicos. Para estes basta a fixação de uma pena exacerbada e o estabelecimento de um rito processual célere, de preferência sem garantir quaisquer direitos aos acusados, para que se afaste a impunidade e, melhor, o sentimento de impunidade, o que evitaria a prática de iguais delitos por outros agentes.
É a velha concepção de que a pena serve, a um, como prevenção social (geral), já que coibi na comunidade a prática de outros crimes, e, a dois, como forma de inibir que o acusado, diante de dura condenação, reincida (prevenção especial).
Em relação ao meio ambiente, ademais desses fatores, não se pode descurar que o Direito penal tem adotado como parâmetro os ideais preconizados pela globalização, elemento que efetivamente tem contribuído para um mau dimensionamento desse ramo do Direito.
Asseveram Bianchini e Gomes (2002) que o processo de hipertrofia do Direito penal se confunde com a própria formação do Estado.
É que, na tentativa de estabelecer um monopólio da aplicação da justiça pelo Estado, afastando o poder de decisão de determinadas autoridades administrativas, que não contavam com qualquer tipo de limitação e julgavam arbitrariamente, optou-se por transformar em delitos penais diversas infrações que, no Estado de polícia, eram consideradas infrações de cunho meramente administrativo.
Não resta dúvida que o estabelecimento desses tipos penais, bem como das regras processuais, tinham como intuito reduzir a discricionariedade existente e garantir ao acusado que o Estado, único legitimado para impor a sanção penal, esbarraria numa série de limites, os quais foram produzidos para reconhecer que os órgãos estatais têm o dever de agir, mas sem descurar das garantias existentes.
A crítica que se pode fazer a esse positivismo é a de ter levado para o âmbito “penal” um mundo de conflitos que não possuem caráter de Direito penal (infrações bagatelares, por exemplo). Também elas devem ser solucionadas com garantias, sem arbitrariedades, mas não é preciso colocá-las no âmbito do Direito penal (que é regido pelo princípio da subsidiariedade). (BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 45)
Com o advento do modelo globalizado de Estado, houve o incremento dessa concepção.
Há, inclusive, um maior reconhecimento da imprescindibilidade do Direito Penal, ainda que em jogo infrações menores, contrariando orientação já sedimentada: de um lado existe a defesa ferrenha de medidas despenalizadoras ou mesmo discriminadoras e, numa outra quadra, mas na mesma medida, depreende-se uma evidente perspectiva criminalizadora, especialmente quando se põe em jogo o desenvolvimento econômico da sociedade moderna (ou pós-moderna).
Particularmente agora, em que é maior a consciência de todos em relação aos riscos e ameaças decorrentes do processo de globalização da economia, das finanças e da informatização, acentuou-se o uso (indiscriminado) do Direito Penal, especialmente nesse âmbito bagatelar. O que era até bem pouco tempo objeto de uma regulação meramente acessória [...] passou para o âmbito do Direito penal principal, sujeitando-se às suas clássicas sanções penais (sem se descartar obviamente a pena privativa de liberdade). (BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 49)
De acordo com os autores, no que se referem às políticas-criminais, são quatro as principais tendências da era da globalização. Todas, como se verá perfeitamente atadas aos movimentos punitivistas.
A primeira se assenta na necessidade de descriminalização dos crimes anti-globalização, uma vez que não mais se pode considerar como delito as condutas que tem por objeto o desenvolvimento perfeito do processo de globalização econômico. Vale dizer: no mundo globalizado é impensável a descriminalização de comportamentos atinentes, v.g., ao livre trânsito de mercadorias.
Os crimes de descaminho (importar ou exportar mercadoria sem o devido pagamento de impostos e taxas), de evasão de divisas etc., dentro de pouco desaparecerão. Outros crimes terão vigência, mas sua perseguição será (claramente) seletiva. Por exemplo, a lavagem de capitais tem (na atualidade) e continuará tendo grande dificuldade de incidir sobre investimentos estrangeiros (quanto mais obstáculo um país impõe à circulação do capital estrangeiro, mas se distancia desse capital). (BIANCHINI e GOMES: 2002, p. 19)
Outra tendência é a globalização da política criminal, reconhecida na necessidade de haver uma uniformização internacional na repressão dos delitos, especialmente aqueles que tocam ao crime organizado. É que esses delitos, da mesma forma em que tem havido uma globalização da economia, tem ultrapassado fronteiras e alcançado diversos países.
Não basta, portanto, que cada nação estabeleça as suas medidas de repressão interna, é indispensável haver uma unidade de pensamento na comunidade internacional, que tem de estabelecer protocolos únicos na tarefa de coibir delitos dessa natureza. “Contra a criminalidade transnacional, reações também transnacionais”. (BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 20)
Ao lado dessa uniformização das políticas criminais em âmbito internacional é preciso também haver uma globalização da cooperação policial e judicial, no sentido de que as nações colaborem umas com as outras para efetivamente reprimir a prática de crimes transnacionais.
Segundo atestam Bianchini e Gomes (2002, p. 20) é uma tendência inescapável a parceria entre os países, ao lado do estabelecimento de uma legislação repressiva de aspecto único:
Tratados ou acordos de cooperação, bilaterais ou multilaterais, estão se proliferando. Os órgãos encarregados da persecutio criminis (Polícia, Ministério Público, Juízes etc.) estão aproximando-se cada vez mais. Sem cooperação e a troca de informações não há como controlar o delito organizado internacional. A tendência é a unificação global dos acordos de cooperação entre os países.
A globalização da Justiça Criminal é a última das tendências da política criminal na era da globalização.
Recentes violações dos direitos humanos exigiram a criação de uma Justiça criminal permanente, o que efetivamente ocorreu em julho de 1998, em Roma, quando da criação do Tribunal Penal Internacional.
Essa corte, composta por 18 (dezoito) juízes, terá por objeto a repressão de sistemáticas violações aos direitos humanos, respeitando-se as garantias do devido processo legal e do juiz natural. Talvez, esses dois últimos aspectos é que autorizem afirmar que o Tribunal Penal Internacional supera, ao menos em força moral e jurídica, os tribunais ad hoc criados para o julgamento de condutas violadoras específicas.
No entanto, deve-se, jamais descurando da força que se imprimi a atuação desse Tribunal, que a Corte, até em respeito à soberania das nações signatárias, terá sua ação condicionada à desídia do país em que o delito ocorreu. Ou seja: na hipótese de já se ter instaurado inquérito policial ou mesmo ação penal, mesmo que esta tenha culminado na absolvição dos autores do crime, não terá o Tribunal Penal Internacional competência para julgar a matéria (NUCCI: 2006).
Outro ponto que vale destacar é o fato de que, p. ex., o brasileiro que praticou conduta delituosa sujeita à competência dessa corte internacional, deverá ser a ela encaminhado, ainda que não possa ser extraditado. O argumento que tem sustentado essa possibilidade se firma na alegação de que, por evidente, não haveria extradição strico sensu, já que o acusado estaria sendo encaminhado não a outro país, mas uma organização internacional que, em decorrência de tratado assinado e ratificado, detém competência para julgar delitos que foram praticados em solo nacional (NUCCI, 2006).
A controvérsia, no entanto, parece não se resolver de maneira tão simples, caso consideradas as garantias previamente estabelecidas no texto constitucional e que não podem ser contornadas com um simples jogo de palavras. Ora, o brasileiro nato, ao empreender o crime no território nacional, p. ex., tem a garantia constitucional de somente ser julgado em solo brasileiro e ser submetido às penas previstas na legislação pátria.
Admitir a malversação desse princípio diante da necessidade de preservar a competência de uma organização internacional parece despropositado. O melhor é julgar o Brasil pela sua desídia, aplicando-lhe as penas cabíveis, inclusive impondo o pagamento de indenização às vítimas não atendidas, e, no melhor dos cenários, obrigar o processamento do feito.
De qualquer forma, ressaltam Bianchini e Gomes (2002, p. 22) a importância do Tribunal Penal Internacional nesse cenário de globalização:
[...] será cada vez mais imprescindível a instituição de uma justiça penal internacional para julgar (no futuro) não somente criminosos genocidas ou ditadores (que são muitos ainda hoje, principalmente na América Latina, Ásia, África etc.), senão sobretudo outros crimes que provocam conseqüências danosas para muitos países em razão de sua transnacionalidade, como por exemplo algumas modalidades de crime organizado (tráfico de seres humanos, de órgãos humanos, de animais, de armas etc.), o crime informático e ecológico.
Do apanhado dessas tendências da política criminal na era da globalização, observa-se uma caminhada crescente no sentido de haver numa uniformização das políticas repressivas em cada um dos países e, tendo em conta os chamados delitos transnacionais, categoria na qual poderemos inserir inclusive os crimes contra o meio ambiente, percebe-se uma predisposição num envolvimento cada vez maior de organismos internacionais na repressão cada vez mais freqüente desse tipo de empreitada criminosa.
Embora não se possa descurar de que está ocorrendo uma globalização das práticas criminosas e com isso uma globalização dos protocolos (procedimentos e delitos) adotados na prevenção e repressão desses crimes, é importante considerar a necessidade de esse processo ser conduzido parcimoniosamente, respeitando o sistema de garantias clássico, nem sempre afeito a esse crescente movimento de criminalização.
Características do Direito Penal na globalização
De acordo com Bianchini e Gomes (2002, p. 25 a 33), são quatorze as características do Direito penal na globalização, todas eles a contribuir para uma erosão dos direitos e garantias clássicas estabelecidas em prol do acusado.
De início, destaca-se uma deliberada política de criminalização que, doravante, caracteriza-se não somente pela penalização de infrações bagatelares e aplicação do Direito penal em relação às classes marginalizadas, decorrência da sempre existente seletividade nesse ramo do Direito, mais também da extensão dessa onda punitivista aos crimes dos poderosos.
É o que lecionam Bianchini e Gomes (2002, p. 26):
A novidade é que agora o fenômeno da hipertrofia do Direito penal conta com uma dupla fonte de impulso: sob o influxo do movimento da lei e da ordem são atacadas as classes marginalizadas, isto é, postulam a criminalização (mais dura) da microcriminalidade (dos crimes of de powerless), assim como a prisionização em massa dos excluídos (isso já ocorre, por exemplo, de modo candente, nos EUA); mas também não escapam as classes abastadas, isto é, há um clamor geral (mas principalmente da “esquerda punitiva”) pela criminalização da macrocriminalidade (criminalidade dos poderosos – crimes of the powerful). O que existe em comum nos dois movimentos é a bandeira da criminalização (ou endurecimento do Direito penal).
Grande contribuinte dessa mudança de postura é a esquerda punitivista. Antes adepta do discurso da descriminalização, passou a defender o projeto da criminalização, encontrando apoio nessa tarefa não só na população, como também nos meios de comunicação. (BIANCHINI e GOMES, 2006, p. 19)
Tarefa inglória, no entanto, é reconhecer a legitimidade desse discurso que, embora reverbere midiaticamente, não tem o condão de produzir resultados concretos, ao menos quando se tem em perspectiva a prevenção do delito.
Aliás, tem produzido efeito diverso do pretendido.
A mídia tem tratado a violência como um produto de mercado, descortinado-a em cada noticioso ou melodrama apresentado nos horários nobres. “São mercadorias da indústria cultural. Grande parcela da responsabilidade pela banalização da violência e do Direito penal se de aos políticos e aos meios de comunicação.”(BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 75)
Segundo BIANCHINI e GOMES (2002, p. 76), pesquisa realizada pela Datafolha e divulgada em 2000 indicava que, conquanto o número de pessoas assaltadas permanecesse estável, 79% (setenta e nove por cento) dos entrevistados tinham a percepção de aumento da criminalidade.
Vale dizer: a exposição exagerada da violência nos meios de comunicação, com a sempre comum manifestação por parte de grande maioria dos comunicadores (dos moderados àqueles que defendem ferrenhamente a pena de morte) de que o brasileiro está em constante estado de guerra com os criminosos, conduziu à falsa percepção de aumento da criminalidade.
Embora fundado em mero empirismo, não é pouco comum se escutar de indivíduos que residem nas cidades apontadas como de maior incidência de crimes, que, ao longo dos anos, não foram vítimas de qualquer violência.
Esse sentimento de crescimento de criminalidade e da necessidade de uma efetiva expansão do Direito penal com o estabelecimento de normas mais duras, foi incrementado no processo de globalização e na chamada sociedade de risco.
Como já afirmado, o profundo desenvolvimento tecnológico e econômico tem produzido, ademais de um incremento do bem-estar individual, diversas perplexidades, já que, em algumas circunstâncias, quaisquer comportamentos podem implicar na construção de condutas lesivas que podem atingir um número indefinido de vítimas.
É o que afirmam Bianchini e Gomes (2002, p. 76 e 77):
[...] estamos vivendo agora, neste princípio de milênio, isto é, na era da globalização, que se caracteriza pela presença de riscos (alguns reais, outro fantasiosos) inerentes à sociedade tecnologicamente avançada. A grande ameaça, agora, depois da queda do muro de Berlim (1989), já não vem representada pelo comunismo, senão pelos riscos que permeiam nossa sociedade difusa e complexa, que enfrenta enfermidades incuráveis (AIDS) ou epidêmicas (dengue, por exemplo), conseqüências nefastas de difícil controle (vacas loucas), grandes catástrofes ecológicas (Chernobil), máfias, corrupção generalizada, crime organizado (inclusive dentro dos presídios – PCC, megarrebeliões), terrorismo etc.
É o que ocorre, p. ex., com as condutas lesivas ou potencialmente lesivas ao meio ambiente. Nestas, o legislador, reconhecendo, primeiro, a necessidade de proteção desse bem jurídico, em que há dificuldade, em algumas circunstâncias inclusive impossibilidade, de definir quais as condutas efetivamente danosas, observa que as técnicas legislativas ordinárias não têm aplicação quando em jogo os chamados bens supra-individuais.
Utiliza-se, então, de um novo norte legislativo, fundado não só num aumento quantitativo dos tipos penais, como também na adoção dos crimes de perigo abstrato. Ambas as técnicas tem por objeto abarcar a complexidade do fenômeno ambiental, conquanto, contraditoriamente, parta do pressuposto que essa tarefa é consideravelmente difícil diante de não haver certezas no momento da definição dos riscos.
A segunda característica do Direito penal da globalização são as freqüentes e parciais mudanças no Código Penal e nas legislações especiais, o que se justifique não somente pelo fato do Estado ter se afastado da construção de diversas políticas no campo da saúde, educação ou mesmo meio ambiente, concentrado essa tutela na seara Penal, mais também pelo fato de não haver um controle específico na produção legislativa. Esta é realizada açodadamente, no calor do momento, sem que haja uma efetivamente preocupação com a manutenção de um ordenamento consistente.
A terceira característica é o aumento dos marcos penais dos delitos clássicos, da forma como sucedeu com a Lei 8.038 de 1990, que culminou no agravamento do tratamento de diversos delitos classificados como hediondos. Em alguns casos, a exacerbação foi de tal monta que é possível vislumbrar delitos em que a pena mínima é superior a 30 (trinta) anos de prisão, muito embora seja esse o limite máximo para o cumprimento da pena.
Outro exemplo dessa característica se encontra na Lei 11.343 de 2006 (nova Lei de Drogas), a qual, embora reduza substancialmente a punição do indivíduo que porta drogas para uso próprio, agravou exponencialmente a pena pela prática do crime de tráfico, previsto no art. 33 do referido diploma legal. Antes com uma pena mínima de 03 (três) anos de reclusão, possibilitando, inclusive, a conversão da pena privativa de liberdade em restritiva de direitos (ao menos após a modificação da jurisprudência nacional e posteriormente da lei de crimes hediondos, circunstância já referidas alhures), a nova Lei fixou a reprimenda base em 05 (cinco) anos de reclusão.
Não bastasse isso, dentre outras circunstâncias, veda o legislador a concessão de liberdade provisória, conquanto se caracterize facilmente como uma medida de caráter inconstitucional, já que desconsidera as condições do caso concreto, impingindo ao pequeno traficante e ao traficante internacional os mesmos institutos repressivos.
Com quarta característica, deve-se destacar a preferência a bens jurídicos supraindividuais, elemento que demonstra ter havido uma viragem em relação ao papel ocupado pelo princípio da proteção dos bens jurídicos. Segundo Bianchini e Gomes (2002, p. 28), esse princípio, doravante, “[...] deixa de cumprir seu papel de limite ‘negativo’ da criminalização para assumir um ‘moderno’ e ‘positivo’ papel, que se materializa em exigências hipertrofiadas de intervenção penal.”
A quinta característica é a ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato. Já referidos em diversas ocasiões ao longo desse trabalho, a opção por essa técnica, ademais de dificultar ou mesmo impossibilitar o exercício da defesa, torna sem obstáculo a persecução penal, uma vez que, em regra (ao menos na forma preconizada por esse direito globalizado), não necessita de comprovação da ocorrência, nem mesmo, de perigo concreto de dano. Vale dizer: para a configuração do delito, basta a realização da conduta.
BIANCHINI e GOMES (2002, p. 28) dão claro exemplo da utilização dessa técnica ao fazer referência do art. 15 da Lei 7.802 de 1989 que, em poucas palavras, trata da produção, comercialização e utilização de agrotóxicos em desacordo com as determinações legais.
Para a consumação do crime basta, v.g., a venda em desconformidade com o disposto na lei, conduta que, conquanto ilícita, melhor seria atendida em sede administrativa.
Isso porque o Direito penal exige, sempre, uma ulterior conseqüência (ofensa ao bem jurídico), ou, no mínimo, um perigo concreto de lesão àquele bem, o que não decorre, necessariamente, da falta de cumprimento das exigências a que remete o artigo. (BIANCHINI e GOMES: 2002, p. 28)
Essa característica implica dizer que há menosprezo patente ao princípio da lesividade ou ofensividade, outra dos traços distintivos desse Direto penal globalizado.
Nesse particular, o exemplo mais evidente se depreende do chamado Estatuto do Desarmamento, na medida em que está permeado de tipos que abandonam a necessidade de considerar, ao menos, a potencialidade lesiva in concreto da conduta qualificada como criminosa.
A esse propósito, basta citar o disposto no art. 14 da referida Lei que trata do porte ilegal de arma de uso permitido. Segundo esse dispositivo para que qualquer pessoa seja submetida à pena prisão, que pode variar entre dois e quatro anos, é suficiente, p. ex., que esteja portando, sem autorização legal, uma arma de fogo de uso permitido. Aqui, há uma presunção de que o agente pode estar causando danos à ordem pública. No entanto, ao menos se considerado a forma pela qual o tipo está descrito, não passa de uma mera presunção.
Tanto é assim que o entendimento majoritário, inclusive como apoio em jurisprudência recente Supremo Tribunal Federal, determinar que só há que se falar no delito de porte ilegal de arma, na hipótese desta se encontrar municiada e com seu potencial lesivo devidamente comprovado. Somente nessas circunstâncias é que se pode afirmar que o porte de arma de fogo se traduz num perigo concreto de dano.
Ainda no que se refere ao tipo criminal, outra característica do Direito penal é a erosão do conteúdo da norma de conduta, o que significa afirmar a utilização constante e excessiva de normas que se valem de elementos a serem preenchidos por conceitos e definições oportunamente fornecidas pela administração. Há nessa toada um flagrante desrespeito a um dos mandamentos centrais do Direito penal, inclusive como elemento claro de limitação do poder Estatal, que é a taxatividade.
Não quer se afirmar que o legislador não pode se valer das chamadas normas penais em branco, notadamente quando a definição de certos ilícitos demanda, necessariamente, o fornecimento de determinados conceitos por parte de setores bem determinados da administração pública.
É o que sucede, v.g., como o delito de tráfico de drogas, no qual a própria definição do que pode ser considerado como droga, não pode prescindir de manifestação do Ministério da Saúde.
A ausência da taxatividade, de outro lado, resta bem vislumbrada no tipo do art. 54 da Lei 9.605 de 1998, que tem a seguinte redação:
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandande de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Como sê vê, é um tipo que traz um campo interpretativo muito largo, uma vez que se utiliza de cláusulas abertas, o que pode implicar na classificação de grande número de condutas como criminosas.
A propósito desse dispositivo, Prado (2005, p. 418 e 419), condenado a sua estrutura e denunciado uma nova e preocupante classificação delitiva, afirma:
O tipo legal é extremamente amplo e vago, com cláusulas normativas, de cunho valorativo, que estão muito aquém das exigências do princípio da legalidade em sua vertente de taxatividade-determinação da lei penal. A expressão de qualquer natureza, reveladora de um objeto indeterminado, abrange sejam quais forem a espécie e a forma de poluição, independentemente de seus elementos constitutivos (atmosférica, hídrica, sonora, térmica, por resíduos sólidos etc.).Trata-se de um delito de forma livre.
Percebe-se, então, o surgimento de outra categoria de delito, antes impensável na perspectiva de um Direito penal liberal, fundado num ideal garantista, que é o crime de forma livre, o qual, no que se refere a sua configuração, não se encontra sujeito, como visto, a quase nenhum limite.
Pouca preocupação com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, também se apresenta como uma das características do Direito penal na globalização, porquanto calcado na concepção de que, com a intimidação, poder-se-á prevenir futuros delitos, ou seja, para melhor evitar a prática de outros crimes imprescindível é o recrudescimento da norma penal, com o estabelecimento de significativas penas, sem que existam maiores preocupações em adequar proporcionalmente estas aos tipos.
Os autores suscitam, ainda, como característica a transformação funcionalista de clássicas diferenciações, como autoria e participação; consumação e tentativa, dentre outras, uma vez que “[...] fundadas na imputação objetiva e subjetiva do delito, inclusive porque a imputação individual acaba construindo um obstáculo para a eficácia da nova política criminal.” (BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 31)
É também marcante característica desse Direito penal a imputação de responsabilidade penal à pessoa jurídica que, como se verá, por não haver como se aferir a culpabilidade desse ente jurídico, resta estabelecida a responsabilidade penal objetiva, nada obstante não existe nenhum resultado prático relevante em decorrência da condenação penal da empresa.
Por derradeiro, Bianchini e Gomes ainda apresentam como características: uso do Direito penal como mecanismo de política de segurança; endurecimento da fase executiva da pena; e privatização ou terceirização da justiça.
A análise detalhada das tendências da política-criminal e as transformações do Direito penal na globalização, além das características do Direito penal dessa era, deixam bem claro quais são os fundamentos que norteiam a atividade criminal-repressiva.
Distante de qualquer dúvida que todos os elementos considerados demonstram que há, não só uma efetiva expansão do Direito penal, que passa a alcançar condutas antes tratadas pelo Direito administrativo ou civil, como a sua utilização de forma a afastar a limitação que antes impunha ao Estado.
A esse propósito, valiosa a lição de Juarez Tavares:
[...] “esta política criminal, que Hassemer qualifica de sombria e que se transforma gradualmente no mais perfeito instrumento de guerra aos preceitos que contemplam os direitos fundamentais, é velha conhecida da América latina, desde a aventura tão da segurança nacional até chegar à prática dos modelos neoliberais atuais, que se fundamentam na extensão da repressão penal na sua disseminação. (TAVERES apud BIANCHINI e GOMES, 2002, p. 33)
É essa perspectiva simbólica que tem norteado não só a formação da legislação nacional, como também a própria atuação do aplicador do Direito.
Prova maior disso está na Lei 9.605 de 1992. Ali, como já ressaltado, ademais do legislador ter destacado como conduta criminosa, diversos fatos que poderiam ser abordados como mais eficiência por outros ramos repressivos, previu a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Cópia mal elaborada de legislações alienígenas, o estabelecimento da responsabilidade criminal, nada obstante o esforço argumentativo produzido por renomados doutrinadores do Direito Ambiental, é concepção que tem seus pés fincados na simbologia que tem acompanhado o Direito penal.
Como se vê, há um injustificável movimento do Direito Penal à consolidação do movimento punitivista, efetivamente exacerbado em razão da globalização.
Referências:
BIANCHINI, Alice. Os grandes Movimentos de Política Criminal na atualidade: movimento Lei e Ordem, Minimalismo Penal e Abolicionismo. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG.
____________. Política Criminal, Direito de Punir do Estado e Finalidades do Direito Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG.
____________. Do processo de incriminação de condutas. Material da 2ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL/REDE LFG.
BIANCHINI, Alice, GOMES, Luiz Flávio. O Direito Penal na era da Globalização. São Paulo: RT, 2002.
_____________. “Direito penal” do inimigo e os inimigos do direito penal. Revista Ultima Ratio. Coord. Leonardo Sica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ano 1, p. 329-356. Material da 2ª aula da Disciplina Política Criminal, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Ciências Penais – UNISUL – IPAN - REDE LFG.
PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, Luiz Regis (coord.). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: RT, 2001.
___________. Direito Penal Ambiental. São Paulo: RT, 2005.
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal. São Paulo: RT, 2002.
Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Maranhão; Professor Universitário/Especialista em Ciências Penais - UNISUL/LFG Cidade: São Luís (MA)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Aureliano Coelho. Globalização e a expansão do direito penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 set 2009, 08:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18336/globalizacao-e-a-expansao-do-direito-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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