Não é de hoje que se fala em “toque de recolher” ou no denominado “recolhimento obrigatório” que nada mais é do que a proibição, decretada por uma autoridade competente, para que as pessoas não permaneçam nas ruas após determinada hora, individual ou coletivamente, de sorte que aquele que desobedecer aos mandamentos impostos pode ser detido e penalizado.
É ainda, o “toque de recolher” uma medida de segurança pública ou de proteção da ordem civil que pode ser usada também, como repressão política, como foi largamente utilizada por ocasião da segunda guerra mundial, principalmente pelos nazistas que impunham restrições ao povo judeu.
Atualmente, parece que alguns municípios encontraram no denominado “toque de recolher” a solução para o grande problema da delinqüência juvenil. Em que pese a boa intenção que pode estar embutida nessas medidas, vejo como preocupante a escalada do Estado na restrição da liberdade dos cidadãos, em nome de uma suposta paz social. A pior coisa que existe é o fato de se encontrar solução simplista, atacando um preceito fundamental que é a liberdade, sob duvidosa eficácia da medida de exceção.
A grave crise de insegurança vivida nos dias atuais nos grandes centros urbanos não poderá ser solucionada mediante medidas paliativas ou simplistas como essas que estão sendo adotadas em vários municípios. O problema da delinqüência juvenil tem raízes mais profundas que não são extirpadas com providências de caráter sensacionalista, como essas noticiadas.
Receio que a cada dia que passa o Estado, sob pretexto de proteger a sociedade, assuma uma escalada de cerceamento das liberdades públicas, sob olhares inertes da sociedade. De repente vão decretar “toque de recolher”, também, para os adultos, com o intuito de se evitarem assaltos, seqüestros relâmpagos e outros crimes. O adulto ficará proibido de permanecer ou transitar pelas vias públicas a partir de determinada hora. O Estado vai obrigar o cidadão a permanecer em sua casa, enclausurado – aliás, isso já vem ocorrendo nos grandes centros urbanos – para impedir a ocorrência de assaltos ou outros crimes.
Para se combater o crime contra a mulher, logo se justificará uma medida estatal no sentido de que as mulheres somente poderão se mostrar em público, usando “burcas”, “véus”, “saias cumpridas”, ou outros petrechos, se isso puder evitar assédio sexual ou crimes de estupros. Tudo em nome de uma pretensa segurança, justifica-se a violação das liberdades públicas duramente conquistadas pela sociedade.
Neste giro, a cada ocorrência que produza clamor popular, surgirão políticos oportunistas, propensos em aprovar mais leis inconstitucionais que mais causam transtornos jurídicos do que benefício para a sociedade.
O Estado, a meu ver, antes de tomar medidas paliativas e pirotécnicas como essas invencionices, deveria investir mais na educação, na cultura e no desenvolvimento da criança e do adolescente, criando programas que abram espaço cultural e de lazer, além de promover um processo educacional integral e de qualidade.
O jovem nessa situação, encontra-se em pleno desenvolvimento e a adoção do recolhimento obrigatório, afora o nítido cerceamento do direito de liberdade, fere os princípios da dignidade, do respeito, e do desenvolvimento da pessoa humana.
Embora tais direitos não sejam absolutos, podendo ser limitados justamente em vista da proteção integral das crianças e adolescentes, o certo é que a limitação se constitui em maiores malefícios para os jovens, na medida e que vão crescer em uma redoma de vidro, como se lá fora, tudo estivesse às “mil maravilhas”.
Queiramos ou não, esta é a sociedade que temos. Se ela não é boa, todos nós temos parcela de culpa, porquanto a sociedade é composta de valores éticos, morais e religiosos comuns a todos os seus integrantes e se constitui no desaguadouro das experiências e conhecimentos adquiridos dentro do círculo familiar.
Medidas como essas preconizadas e tidas como acertadas escondem um mal maior: a falta de um mínimo de valores éticos no sistemas de ensino, agravado pela própria desintegração da estrutura familiar. A sociedade se conforma e aceita medidas simplistas por comodidade, esquecendo-se que a realidade presente é fruto do próprio comportamento individual egoístico, que se traduz na compreensão de que os problemas não são nossos e sim do Estado.
Apostamos no sucesso de nossos filhos, mas não queremos vigiá-los, porque isso os constrangeria. Nesse norte, é conveniente a delegação a função de amar, educar e vigiar, apenas ao Estado, porque os pais não têm tempo de tomar conta de seus próprios filhos.
Desse modo é mais fácil deixarmos correr tudo a solta, livre e sem limites e deixar a cargo do Poder Público, a tarefa de vigiar os nossos jovens. Hoje, a regra é não ter regras. O padrão de vida adotado é de total liberalidade, na crença que o desejo e a liberdade não possuem limites na responsabilidade. Tudo gira em torno do eu. Para mim, o outro não é importante. A importância do outro é medida em função do proveito que eu possa obter. Se não houver interesse, a relação é descartada com frieza e naturalidade.
Vivemos um tempo de futilidades. As coisas passam muito depressa. Perdemos o ponto de referência. Os mais velhos não significam mais nada e a criança e o adolescente, apenas objetos de egoísmos e ostentação de seus pais, pouco se importando com a sua formação ética. Poucos valores permanecem, porque o que importa é saciar o desejo por mais aventuras. Investimos tudo em mais consumismo. Os valores mudaram de paradigma, deslocando-se do ser para o ter.
Tudo isso é agravado ainda mais, em razão dos meios de comunicação, que joga para dentro das casas, programas de conteúdo completamente divorciado da cultura e do meio em que vive o jovem. Os pais tornaram-se reféns da mídia e da internet. Os filhos não querem mais os conselhos dos pais. Preferem às orientações do colega virtual da lista de relacionamentos do MSN ou do ORKUT e agora, do TWISTER, que é a onda do momento. A velocidade e intensidade das informações são espantosas e por isso mesmo fugazes, aliás, como é a vida de modo geral, nos dias atuais.
Não há valores e nem dogmas. Tudo é banalizado em função da imensa gama de informações que não permitem uma pausa para reflexão.
Antigamente, a lista de relacionamento do jovem não ia além de uma meia dúzia de amigos que residiam nas proximidades de sua casa e invariavelmente se encontravam na escola, nos jogos de futebol ou na igreja em que freqüentava. Muitas vezes, os pais dos seus amigos também se conheciam e sempre estavam presentes. Hoje, se envergonham com da presença dos seus pais. Querem ficar a sós, para curtirem a sua aventura. Os pais ou os mais velhos representam obstáculo às suas curtições.
Nessas condições “toque de recolher” ou coisa parecida, só servem para ocultar o problema no seu âmago. Não contribui para qualquer solução, além de algumas promoções e exposições dos seus idealizadores na mídia e a sensação de experimentar o minuto de fama, como criador da idéia. A verdade é que os tempos são outros. Por vivermos em uma nova realidade, com a qual temos que conviver. De nada adianta a tentativa de resolver os problemas, com medidas como essas, se a solução, só será possível, a partir de uma novo enfoque sobre o papel do Estado, como fomentador das políticas públicas da educação, na qual se possa forjar verdadeiros cidadãos e não apenas estudantes.
Voltando ao tema, podemos afirmar que estrondosa mudança de comportamento do jovem, por incrível que pareça, surgiu de dentro da casa para as ruas. Porque é no interior da casa que o jovem se conecta com o mundo e se relaciona com os seus pares. Quando sai às ruas, o jovem já está com a cabeça feita. A sociedade que vai recebê-lo é a mesma que conhece na grande rede da internet. Tudo aquilo que foi vivenciado entre as quatro paredes, vai se espraiar nas ruas. Nessas condições, se o jovem tem cabeça boa e consciente dos perigos que o cercam, nenhuma influência a sociedade irá exercer sobre o seu comportamento.
O recolhimento cedo não vai impedir que o jovem venha a consumir drogas lícitas (álcool, cigarros) ou ilícitas (entorpecentes). Pelo contrário, o recolhimento favorece a ocasião para o vício, porque, na realidade, o jovem não sai à rua com essa finalidade. Ele sabe que é muito mais fácil e seguro consumir drogas ilícitas, confinado dentro de casa. Nos espaços públicos e abertos, o consumo de drogas ilícitas até pode acontecer, mas se torna mais restrito, diante do monitoramento realizado por câmera de vídeo em toda a parte e a presença de uma fiscalização mais eficiente por parte dos órgãos estatais.
A propalada medida demonstra a meu ver, uma clara incompetência do Estado em lidar com esses problemas. Fechando bares, coibindo o jovem de sair à rua, etc, torna o trabalho de fiscalização menos custoso e serve de um pano de fundo para encobrir as verdadeiras mazelas sociais.
A minha preocupação é que o cidadão amedrontado com a escalada da violência e da insegurança, agravado pelo clamor provocado pela imprensa sensacionalista que dá ênfase a qualquer fato, sem uma análise mais profunda, não se dá conta que concordando passivamente em ceder os seus espaços de liberdade, está autorizando o Estado a cercear a sua liberdade cada vez mais.
Isso aconteceu com a Alemanha de Hitler, que sob o martelar de uma supremacia do Estado, era necessário tirar a liberdade do povo alemão. No início todos aplaudiram a idéia e cederam seus direitos naturais e conquistados anteriormente para que Hitler concentrasse todo o poder em suas mãos, mergulhando aquela maravilhosa nação numa aventura bélica, sem precedentes, na qual milhões perderam suas vidas e mais da metade da população teve que sair de suas casas ou se deslocar para outros lugares.
Vejo com preocupação que a cada crime, os legisladores sob a pressão da imprensa, decretem o endurecimento das penas ou a cada fato de repercussão momentânea, criem novas tipificações criminais, transformando o cidadão em inimigo do Estado. Temo que nessa escalada da supressão das liberdades públicas, o cidadão passe a ser visto como mero inimigo do sistema. O Estado ao invés de protegê-lo passa a persegui-lo , tudo em nome de uma suposta segurança pública.
A impunidade é o maior problema hoje em dia. Não seria aumentar o rigor da lei ou ampliar as criminalizações que iremos obter a paz social. Tudo deve ser analisado com muita imparcialidade, com raciocínio numa perspectiva histórica, jurídica e social. O aparelho estatal representado pelo Judiciário, Ministério Público e órgãos policiais, como é publico e notório, estão mais propensos em ser mais rigorosos com o filho do pobre e mais benevolentes com o filho do rico. Isso significa que essas medidas só servem para instituir um desequilíbrio injusto no meio social e onde se supõe ter encontrado a solução, surge outro problema mais grave ainda que é a discriminação.
Enquanto o Estado Democrático de Direito não tiver cumprido a sua lição de casa, conferir a cada um dos membros da sociedade, independentemente de raça, condição social, cultural e econômica, a garantia plena dos direitos proclamados na Constituição Federal, não podemos nos dar ao luxo de caminhar na contra mão do novo constitucionalismo, criando mais medidas autoritárias, sejam a que pretexto for, sob pena de se inverter a ordem jurídica institucional insculpida no modelo do Estado Democrático Brasileiro, transformando o modelo que ainda precisa ser lapidado, numa república do “faz de conta”.
Delegado de polícia aposentado, foi vereador no período 1983-1988 em Guareí, Advogado com Pos Graduação em Direito Público e atual Chefe de Gabinete da Prefeitura de Guareí.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEIRA, Mariano Higino de. Toque de recolher em tempo de paz Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 set 2009, 08:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18425/toque-de-recolher-em-tempo-de-paz. Acesso em: 23 dez 2024.
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