Sumário: I. Introdução. II. Direitos Fundamentais. III. Os Direitos Fundamentais como Limites Materiais à Reforma da Constituição. IV. O Direito à Educação no Plano Internacional. V. O Direito à Educação no Brasil. VI. A Eficácia das Normas Constitucionais. VII. O Direito Subjetivo à Educação. VIII. O Direito à Educação e o Mínimo Existencial IX. A Questão da Efetividade do Direito à Educação e os Recursos Públicos Disponíveis. X. Síntese Conclusiva. Referências Bibliográficas.
I. Introdução
O substantivo educação, que deriva do latim educatio, educationis, indica a ação de criar, de alimentar, de gerar um arcabouço cultural.[1] A educação, longe de ser um adorno ou o resultado de uma frívola vaidade, possibilita o pleno desenvolvimento da personalidade humana e é um requisito indispensável à concreção da própria cidadania. Com ela, o indivíduo compreende o alcance de suas liberdades, a forma de exercício de seus direitos e a importância de seus deveres, permitindo a sua integração em uma democracia efetivamente participativa. Em essência, “educação é o passaporte para a cidadania”. Além disso, é pressuposto necessário à evolução de qualquer Estado de Direito, pois a qualificação para o trabalho e a capacidade crítica dos indivíduos mostram-se imprescindíveis ao alcance desse objetivo.
Em linhas gerais, o presente estudo busca analisar o enquadramento do direito à educação sob a epígrafe dos direitos fundamentais e como parcela indissociável do denominado mínimo existencial. Demonstrada a essencialidade dos direitos sociais, dentre os quais se inclui a educação, discorre-se sobre a sua imutabilidade, tratando-se de um exemplo característico de limite material ao exercício do poder de reforma constitucional.
Os contornos básicos do direito à educação são identificados a partir de uma breve enumeração das convenções internacionais relativas ao tema e, no âmbito interno, com o estudo dos textos constitucionais, atual e pretéritos, além de algumas normas infraconstitucionais. Esse singelo apanhado normativo almeja sedimentar uma visão cosmopolita do direito à educação, o que em muito contribuirá para a sua definitiva inclusão nos fluidos limites do mínimo existencial, de alcance tradicionalmente restrito aos originários e inalienáveis direitos de liberdade, como dizia Locke[2] pouco depois da Glorious Revolution de 1688.
Avançando, é traçado um paralelo do instituto do direito subjetivo nas searas pública e privada, o que visa a demonstrar a imediata exigibilidade do direito à educação fundamental e o dever jurídico do Poder Público em atendê-lo. Ainda sob a ótica da efetividade do direito à educação, são tecidas algumas considerações sobre o princípio da divisão das funções estatais, não raras vezes a pedra angular do entendimento que tenta obstar o poder de coerção a ser exercido pelos órgãos jurisdicionais, bem como a prestigiada tese da reserva do possível, que busca legitimar a postura abstencionista do Poder Público com a constante alegação de insuficiência de recursos para o atendimento de todos os direitos consagrados no texto constitucional.
II. Direitos Fundamentais
São considerados fundamentais[3] aqueles direitos inerentes à pessoa humana pelo simples fato de ser considerada como tal, trazendo consigo os atributos da tendência à universalidade, da imprescritibilidade, da irrenunciabilidade e da inalienabilidade. Não encontram sua legitimação em um texto normativo específico ou mesmo em uma ordem supralegal de matiz jusnaturalista, mas, sim, em uma lenta evolução histórica. O historicismo[4] aqui referido, no entanto, não tem por fim afastar uma visão prospectiva das conquistas sociais. Visa, tão-somente, a estabelecer um elo de continuidade e sedimentação na evolução social, permitindo que direitos, liberdades e garantias conquistadas no passado sirvam de esteio àqueles do presente, e estes aos vindouros, concepção que permanece hígida ainda que a evolução de um instituto social possa apresentar dissonâncias entre os fins a serem alcançados em suas diferentes fases. A metodologia histórica, longe de mostrar a mera sucessão de fenômenos sociais, indica suas formas vitais, seu desenvolvimento e sua desaparição.[5]
Costuma-se identificar três dimensões ou gerações de direitos fundamentais, as quais, não obstante sucessivas entre si, não excluem as anteriores, coexistindo harmonicamente. São os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos de fraternidade, classificação que repete o ideário político da Revolução Francesa: liberté, egalité et fraternité. A primeira geração alcança os direitos individuais e políticos, que são verdadeiros direitos de defesa, impondo limites à ação estatal.[6] Tais direitos foram consagrados no Bill of Rights of Virginia, de 12 de junho de 1776, fruto da Revolução Americana, na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789 e nas dez primeiras emendas à Constituição americana, que, após a ratificação por três quartos dos Estados da Federação, entraram em vigor em 1791. A segunda geração corresponde aos direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem um facere do Estado, vale dizer, uma ação positiva com o fim de propiciar melhores condições de vida (lato sensu) à pessoa humana e diminuir as desigualdades sociais. Como marcos fundamentais dessa geração, podem ser mencionadas as Constituições do México de 1917 e a alemã de Weimar, esta de 1919.[7] A terceira geração alcança os direitos difusos, que rompem a individualidade do ser humano para abarcar grande parcela do grupamento ou a própria espécie, do que é exemplo o meio ambiente - em síntese: são direitos despersonalizados, pertencentes a todos e, simultaneamente, a ninguém em especial.
Como derivação da própria necessidade de coexistência dos distintos valores por eles incorporados, tem sido voz corrente que os direitos fundamentais são princípios jurídicos, estando sujeitos ao tratamento lógico-jurídico dispensado a essa espécie normativa, daí decorrendo a possibilidade de ponderação, consoante as circunstâncias, para solver possíveis colisões entre dois ou mais princípios que incidam no caso.[8]
No Brasil, a Constituição de 1934 previu um título específico para a ordem econômica, ali incluindo, pela primeira vez, os direitos sociais. Na Constituição de 1988, os direitos sociais foram previstos em capítulo próprio, havendo especial deferência aos direitos dos trabalhadores. Segundo o seu art. 6º, "são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".[9]
III. Os Direitos Fundamentais como Limites Materiais à Reforma da Constituição
Além dos lineamentos intrínsecos que indicam a fundamentalidade de um direito, a sua inserção em uma Constituição rígida, com a conseqüente imposição de limites materiais à sua reforma ou supressão, é um indiscutível fator de indicação desse status. Atenta à importância e à essencialidade dos denominados "direitos e garantias individuais", a Constituição de 1988, em seu art. 60, § 4º, IV, os erigiu à condição de "cláusulas pétreas", insuscetíveis de qualquer modificação que venha a reduzir, de forma qualitativa ou quantitativa, o seu conteúdo.
Com isto, além das naturais limitações que se espraiam sobre o legislador infraconstitucional, cujo espaço de conformação é necessariamente limitado pela Constituição - concebida como o vértice da pirâmide normativa estatal, isto para utilizarmos a sugestiva imagem de Kelsen[10] - também o poder de reforma terá a sua atividade confinada aos limites ali traçados. Assim, lhe é vedado conferir colorido constitucional a uma prescrição normativa que esteja em desacordo com as normas que o Constituinte ergueu à condição de núcleo imutável da Carta Política, o que é essencial à preservação das decisões político-fundamentais ali exaradas.[11]
Os limites materiais do poder reformador derivam justamente desse núcleo imutável da Carta Política. Nessa perspectiva, os limites tanto podem ser explícitos, recebendo o designativo de "cláusulas pétreas", como implícitos ou imanentes.[12] No que concerne aos últimos, que também buscam preservar as características essenciais da Constituição, apesar da ausência de uniformidade quanto ao seu exato alcance, a doutrina majoritária os acolhe.[13]
Frise-se, no entanto, que a existência do poder reformador, cujos atos devem estar em harmonia com os limites materiais, formais, temporais e circunstanciais previstos na Constituição, é um imperativo de ordem lógica. Ainda que o texto constitucional passe ao largo de uma visão dirigente e programática, limitando-se a traçar as linhas estruturais do Estado, não raras vezes será necessário adequá-lo aos influxos sociais que passaram a nortear a sociedade após a sua edição. Apesar de a produção normativa ser primordialmente voltada para o futuro, sendo prospectiva por excelência, é indiscutível que, em dado momento, se esgotarão aquelas situações adredemente disciplinadas, tornando imperativa a regulamentação de outras mais, o mesmo ocorrendo em relação às mutações verificadas em tais situações.
Especificamente em relação aos direitos sociais, dentre os quais está o direito à educação, é indiscutível a existência de limites ao poder reformador. Os direitos sociais, apesar de não mencionados em sua literalidade pelo art. 60, § 4º, da Constituição de 1988, que somente se refere aos "direitos e garantias individuais", são meras especificações desses últimos. Os direitos ali referidos, em verdade, tanto aglutinam às liberdades individuais, que podem ser opostas ao próprio Estado, como o direito a prestações, que situa o indivíduo no pólo ativo de uma relação obrigacional instituída ex vi legis. Além disso, não se pode restringir a proteção constitucional ao rol de direitos previsto no art. 5º, preceito situado no Capítulo intitulado "Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos" e que não exclui outros previstos no texto constitucional (v.g.: direitos políticos, limitações ao poder de tributar etc.). Essa conclusão, aliás, deflui da própria letra do parágrafo segundo do art. 5º: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".[14]
Ainda que o reconhecimento dos direitos individuais e dos direitos sociais seja um elemento característico das diferentes mutações verificadas na evolução do Estado de Direito, transitando de uma perspectiva abstencionista (direitos de defesa) até alcançar o comprometimento com a implementação de determinado feixe de prestações, é indiscutível o seu papel comum na busca do bem-estar social, objetivo que ocupa o epicentro de qualquer estrutura estatal. Como observou Antônio Augusto Cançado Trindade[15], "as propostas 'categorias' de direitos (individuais e sociais ou coletivos), complementares e não concorrentes, com variações em sua formulação, podem ser propriamente examinadas à luz da unidade fundamental da concepção dos direitos humanos. Logo tornou-se patente que tal unidade conceitual - e indivisibilidade - dos direitos humanos, todos inerentes à pessoa humana, na qual encontram seu ponto último de convergência, transcendia as formulações distintas dos direitos reconhecidos em diferentes instrumentos, assim como nos respectivos e múltiplos mecanismos ou procedimentos de implementação".
A interpenetração entre os direitos individuais e os direitos sociais também pode ser visualizada na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Resolução 41/128, da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986, cujo art. 6, 2 dispõe que "todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes; atenção igual e consideração urgente devem ser dadas à implementação, promoção e proteção dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais". Frise-se, ainda, que os direitos sociais, consagrados no próprio preâmbulo da Constituição Brasileira, possuem, em inúmeras ocasiões, características indissociáveis do princípio da dignidade da pessoa humana,[16] sendo ínsitos e inseparáveis do sistema de direitos consagrado no texto constitucional.
Assim, quer se analise a questão sob uma perspectiva explícita, entendendo estarem os direitos sociais incluídos sob a epígrafe dos "direitos e garantias individuais", quer seja valorada a matéria sob o prisma dos limites imanentes do poder reformador, os direitos sociais erigem-se como efetivos limites de ordem material.[17] Nesse particular, entendemos que todos os direitos sociais consagrados no texto constitucional, ainda que não integrantes do denominado mínimo existencial, são alçados à condição de limites ao poder reformador.[18] Consubstanciando decisões fundamentais do Constituinte, não se nos afigura legítimo prestigiar o designativo de direitos formalmente fundamentais, o que, em um País de insignificante tradição democrática, abriria um perigoso espaço de valoração para aqueles que ainda não se desprenderam das amarras do passado. Essa conclusão, aliás, resulta clara de uma interpretação teleológico-sistemática do texto constitucional, que busca estender e tornar efetivos os direitos ali consagrados, não restringi-los e reduzir a sua capacidade de penetração na realidade fenomênica.
IV. O Direito à Educação no Plano Internacional
Em decorrência da referida tendência à universalidade dos direitos fundamentais, têm sido intensificadas, a partir da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas para se conferir um colorido normativo ao seu reconhecimento. A consagração do direito à educação, como não poderia deixar de ser, tem sido constantemente lembrada nos inúmeros tratados, cartas de princípios e acordos internacionais que buscam estabelecer a pauta de direitos consagradores da dignidade da pessoa humana. Para melhor ilustrar a exposição, realizaremos uma breve referência a alguns desses documentos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos[19], adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948,[20] dispõe, em seu art. XXVI, que: "1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos." Não obstante o flagrante desalinho entre a plasticidade de suas linhas e a ausência de qualquer obrigatoriedade jurídica aos Estados subscritores, pois a Declaração Universal não chega a ser um tratado, mostra-se inegável o papel por ela desempenhado na sedimentação do imperativo respeito aos valores que aglutina e, porque não, perpetua. Como veremos, somente em 1966, com a edição dos Pactos Internacionais, os princípios e as aspirações ali veiculados receberiam o colorido da vinculatividade em relação aos Estados que os ratificassem.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada pela Resolução XXX, da IX Conferência Internacional Americana, realizada em abril de 1948, na Cidade de Bogotá, dispôs, em seu art. XII, que: "Toda pessoa tem direito à educação, que deve inspirar-se nos princípios de liberdade, moralidade e solidariedade humana. Tem, outrossim, direito a que, por meio dessa educação, lhe seja proporcionado o preparo para subsistir de uma maneira digna, para melhorar o seu nível de vida e para poder ser útil à sociedade. O direito à educação compreende o de igualdade de oportunidade em todos os casos, de acordo com os dons naturais, os méritos e o desejo de aproveitar os recursos que possam proporcionar a coletividade e o Estado. Toda pessoa tem o direito de que lhe seja ministrada gratuitamente, pelo menos, a instrução primária". Também a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, aprovada na mesma ocasião, assentou, em seu art. 4º, que "todo trabalhador tem direito a receber educação profissionalizante e técnica para aperfeiçoar suas aptidões e conhecimentos, obter maiores remunerações de seu trabalho e contribuir de modo eficiente para o desenvolvimento da produção. Para tanto, o Estado organizará o ensino dos adultos e a aprendizagem dos jovens, de tal modo que permita assegurar o aprendizado efetivo de um ofício ou trabalho determinado, ao mesmo tempo em que provê a sua formação cultural, moral e cívica".
A Declaração dos Direitos da Criança,[21] adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959, dispôs, em seu princípio 7º, que "a criança terá direito a receber educação, que será gratuita e compulsória pelo menos no grau primário. Ser-lhe-á propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se membro útil da sociedade."
A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação celebrou, em 14 de dezembro de 1960, a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino. A Convenção, dentre outras hipóteses, considerou o termo discriminação como abrangente de qualquer iniciativa que terminasse por: a) privar qualquer pessoa ou grupo de pessoas do acesso aos diversos tipos ou graus de ensino; b) limitar a nível inferior a educação de qualquer pessoa ou grupo; e c) impor a qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições incompatíveis com a dignidade do homem.[22] Segundo o art. IV da Convenção, além de eliminar as formas de discriminação, os Estados Partes devem formular, desenvolver e aplicar uma política nacional que vise a promover a igualdade de oportunidade em matéria de ensino e, principalmente: "a) tornar obrigatório e gratuito o ensino primário; generalizar e tornar acessível a todos o ensino secundário sob suas diversas formas; tornar igualmente acessível a todos o ensino superior em função das capacidades individuais; assegurar a execução por todos da obrigação escolar prescrita em lei; b) assegurar em todos os estabelecimentos públicos do mesmo grau um ensino do mesmo nível e condições equivalentes no que diz respeito à qualidade do ensino dado; c) encorajar e intensificar, por métodos apropriados, a educação de pessoas que não receberam instrução primária ou que não a terminaram e permitir que continuem seus estudos em função de suas aptidões; d) assegurar sem discriminação a preparação ao magistério."
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,[23] adotado pela Resolução nº 2.200-A, da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, em seu art. 13, dispôs que: "1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 2. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem que, com o objetivo de assegurar o pleno exercício desse direito: a) a educação primária deverá ser obrigatória e acessível gratuitamente a todos; b) a educação secundária em suas diferentes formas, inclusive a educação secundária técnica e profissional, deverá ser generalizada e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; c) a educação de nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito; d) dever-se-á fomentar e intensificar, na medida do possível, a educação de base para aquelas pessoas que não receberam educação primária ou não concluíram o ciclo completo de educação primária; e) será preciso prosseguir ativamente o desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de ensino, implementar-se um sistema adequado de bolsas de estudo e melhorar continuamente as condições materiais do corpo docente (...)."
O Protocolo Adicional ao Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[24]), também denominado de Protocolo de San Salvador[25], adotado no XVIII Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizado na Cidade de San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1988, dispôs, em seu art. 13, 3 que: "Os Estados Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: a) O ensino de primeiro grau deve ser obrigatório e acessível a todos gratuitamente; b) O ensino de segundo grau, em suas diferentes formas, inclusive o ensino técnico e profissional de segundo grau, deve ser generalizado e tornar-se acessível a todos, pelos meios que forem apropriados e, especialmente, pela implantação progressiva do ensino gratuito; c) O ensino superior deve tornar-se igualmente acessível a todos, de acordo com a capacidade de cada um, pelos meios que forem apropriados e, especialmente, pela implantação progressiva do ensino gratuito; d) Deve-se promover ou intensificar, na medida do possível, o ensino básico para as pessoas que não tiverem recebido ou terminado o ciclo completo de instrução do primeiro grau; e) Deverão ser estabelecidos programas de ensino diferenciado para os deficientes, a fim de proporcionar instrução especial e formação a pessoas com impedimentos físicos ou deficiência mental."
A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução XLIV da Assembléia Geral das Nações Unidas,[26] de 20 de novembro de 1989, em seu art. 28, dispõe que: "1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e, a fim de que ela possa exercer progressivamente e em igualdade de condições esse direito, deverão especialmente: a) tornar o ensino primário obrigatório e disponível gratuitamente a todos; b) estimular o desenvolvimento do ensino secundário em suas diferentes formas, inclusive o ensino geral e profissionalizante, tornando-o disponível e acessível a todas as crianças, e adotar medidas apropriadas tais como a implantação do ensino gratuito e a concessão de assistência financeira em caso de necessidade; c) tornar o ensino superior acessível a todos com base na capacidade e por todos os meios adequados; d) tornar a informação e a orientação educacionais e profissionais disponíveis e acessíveis a todas as crianças; e) adotar medidas para estimular a freqüência regular às escolas e a redução do índice de evasão escolar (...)".
Ainda no âmbito da Organização das Nações Unidas e de suas organizações especializadas, devem ser lembradas a Declaração Mundial de Educação para Todos, adotada na Conferência de Jomtien, na Tailândia, e a Declaração de Salamanca, adotada em 1994 pela UNESCO e que propõem, ressalvadas circunstâncias excepcionalíssimas, a matrícula de todas as crianças em escolas regulares.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, proclamada em 7 de dezembro de 2000[27] pelos órgãos comunitários (Parlamento, Conselho e Comissão), com o fim de conferir “maior visibilidade” aos “valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano”, dispõe, em seu art. 14, que “todas as pessoas têm direito à educação, bem como ao acesso à formação profissional e contínua”, acrescendo que “esse direito inclui a possibilidade de freqüentar gratuitamente o ensino obrigatório”.
O grande número de declarações, tratados, pactos e convenções internacionais, em sua maioria multilaterais e celebrados com a intervenção de organizações internacionais, bem demonstra o esforço na sedimentação de determinados direitos inerentes ao homem, dentre os quais a educação básica. Ainda que o sistema apresente debilidades, pois referidos atos, em rigor técnico - além de admitirem reservas - só vinculariam os Estados subscritores, é inegável sua aspiração à universalidade, permitindo o paulatino reconhecimento da fundamentalidade de determinados direitos.
Na senda dos tratados internacionais, foi contínuo o processo de adequação dos ordenamentos nacionais aos novos influxos trazidos pelo processo de universalização dos direitos fundamentais. À guisa de ilustração, vale mencionar o exemplo espanhol, cuja Constituição, em seu art. 27, dispõe que: "1. Todos tienen el derecho a la educación. Se reconoce la libertad de enseñanza.[28] 2. La educación tendrá por objeto el pleno desarrollo de la personalidad humana en el respeto a los derechos y libertades fundamentales. 3. Los poderes públicos garantizán el derecho que asiste a los padres para que sus hijos reciban la formación religiosa y moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones. 4. La enseñanza básica es obligatoria y gratuita. 4. Los poderes públicos garantizán el derecho de todos a la educación, mediante uma programación general de la enseñanza, con participatión efectiva de todos los sectores afectados y la creación de centros docentes. (...)."
A Lei Geral de Educação de 1970 já havia estabelecido a obrigatoriedade e a gratuidade da educação básica. Posteriormente, a Lei Orgânica Espanhola nº 8, de 3 de julho de 1985 (com alterações posteriores, v.g.: Lei Orgânica nº 1, de 3 de outubro de 1990, que dispôs sobre a Ordenação Geral do Sistema Educativo), passou a regular o direito à educação. De acordo com o preâmbulo da Lei Orgânica nº 8, "la extension de la educacion basica, hasta alcanzar a todos y cada uno de los ciudadanos, constituye, sin duda, un hito historico en el progreso de las sociedades modernas. En efecto, el desarollo de la educación, fundamento del progreso de la ciencia y de la tecnica, es condicion de bienestar social y prosperidad material, y suporte de las libertades individuales en las sociedades democraticas. No es de extrañar, por ello, que el derecho básico, y que los estados hayan asumido su provision com un servicio público prioritario." Segundo o inciso 1 de seu art. 1º, "todos los españoles tienen derecho a una educación basica que les permita el desarrollo de su propia personalidad y la realización de una actividad util a la sociedad,. Esta educación será obligatoria y gratuita en el nivel de educación general básica y, en su caso, en la formación profesional de primer grado, asi como en los demas níveles que la ley establezca". Em seguida, no inciso 2, acrescenta: "todos, asimismo, tienen derecho a acceder a niveles superiores de educación, en función de sus aptitudes y vocación, sin que en ningun caso el exercicio de este derecho esté sujeto a discriminaciones debidas a la capacidad econômica, nivel social o lugar de residencia del alumno". O art. 6º, após enumerar um extenso rol de direitos dos educandos, reconhece, inclusive, o "derecho a protección social en los casos de infortunio familiar o accidente".
Na França, a alínea 13 do Preâmbulo da Constituição de 1946 já dispunha que “a nação garante o igual acesso das crianças e dos adultos à instrução, à formação profissional e à cultura. A organização do ensino público gratuito e laico em todos os graus é um dever do Estado”. Dentre os inúmeros diplomas que trataram do ensino, merecem ser lembrados: a) a “Lei Guizot”, de 28 de junho de 1833, que organizou o ensino primário e disciplinou a criação de estabelecimentos de ensino; b) a “Lei Falloux”, de 15 de março de 1850, que consagrou a liberdade de ensino secundário; e c) as “Leis Ferry”, que conferiram o formato hoje adotado no ensino público francês, assegurando a gratuidade (Lei de 15 de junho de 1881), a obrigação de matrícula escolar e a laicidade no ensino (Lei de 28 de março de 1882) e a atividade de coordenação a cargo do Poder Público (Lei de 30 de outubro de 1896). Atualmente, o Decreto 86-217, de 18 de setembro de 1986, reconhece a igualdade de acesso à instrução como um dos princípios fundamentais do serviço público; a Lei de 26 de janeiro de 1984 regula o ensino superior, que não é gratuito; a “Lei Haby”, de 11 de julho de 1975, disciplina a educação em geral; e a Lei de orientação à educação, de 10 de julho de 1989, dispõe, em seu art. 1º, que “a educação é a primeira prioridade nacional”. Diversamente do que se verifica em relação ao ensino superior, desde 1881 é assegurada a gratuidade do ensino primário e, desde 1927 (com produção de efeitos a partir de 1936), a do secundário.[29]
Em Portugal, a Constituição de 1822 dispunha sobre a necessidade de existirem escolas suficientemente dotadas, “em todos os locais onde convier”, sendo previstos nos demais textos constitucionais a gratuidade da instrução primária: art. 145, § 30, da Carta Constitucional de 1826; art. 28, I, da Constituição de 1838; art. 3o da Constituição de 1911, que dispunha, além da gratuidade, sobre a obrigatoriedade do ensino primário, sistema que foi repetido nas Constituições de 1933 (43, § 1o) e na atual (art. 74, 2, a, após as revisões de 1982, 1989 e 1997). A Constituição de 1976 ainda dedica todo um capítulo aos “direitos e deveres culturais”, integrado pelos arts. 73 usque 79.
V. O Direito à Educação no Brasil
À fundamentalidade recebida do texto constitucional e de inúmeras convenções internacionais se associa o fato de o direito à educação estar diretamente relacionado aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial com o da dignidade da pessoa humana. Nos parece claro que a efetividade do direito à educação é um dos instrumentos necessários à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garantia do desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais; e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.[30]
Ainda que concebido como um direito social, ocupando a segunda geração acima enunciada, a efetividade do direito à educação é imprescindível à própria salvaguarda do direito à livre determinação. Com efeito, como se poderia falar na liberdade de um ser acéfalo e incapaz de direcionar seus próprios movimentos em uma sociedade de massas, cujas relações intersubjetivas, a cada dia mais complexas, exigem um constante e ininterrupto aperfeiçoamento? A educação, assim, não obstante considerada um direito social, é imprescindível à salvaguarda de um direito que, sob um prisma lógico-evolutivo, o antecede na formação do Estado de Direito: a liberdade. Direitos de primeira e de segunda gerações, como se constata, convivem de forma harmônica e indissociável.
O direito à educação, ainda que de forma tímida em alguns casos, foi previsto nos textos constitucionais pretéritos.
A Constituição do Império, em seu art. 179, dispunha que "a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: (...) 32. A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos". Aqui já é possível divisar a estreita vinculação entre a instrução primária e a concreção de outros direitos de natureza constitucional, como os direitos políticos e a liberdade.
A primeira Constituição republicana fez referência ao direito à educação em seus arts. 35 e 72, § 6º. Em linhas gerais, dispôs sobre a obrigação do Congresso em "animar no país o desenvolvimento das letras, artes e ciências", em "criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados" e em "prover a instrução secundária no Distrito Federal". Além disso, em sua Declaração de Direitos, dispôs que "será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos".
A Constituição de 1934, moderna e de vida efêmera, dedicou todo um capítulo à educação e à cultura, tendo reservado os arts. 148 usque 158 à matéria. Ali era estabelecida uma divisão de competências entre os entes federativos, assegurada a isenção de tributos aos estabelecimentos particulares de ensino que oferecessem gratuidade em seus serviços e fossem oficialmente considerados idôneos, garantida a liberdade de cátedra, previsto um percentual mínimo dos impostos a ser aplicado no sistema educativo e criada a obrigação de se manter fundos de educação, inclusive com o oferecimento gratuito, aos alunos necessitados, de "material escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica".[31]
A Carta outorgada de 1937, consagrando um capítulo dedicado à educação e à cultura, reservou à matéria os arts. 128 usque 134. Foram mantidos alguns preceitos da Carta anterior e acrescidos outros. Garantiu-se à infância e à juventude o acesso ao ensino em todos os seus graus, priorizou-se o ensino pré-vocacional e profissional e, manteve-se a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino primário - mas foi prevista uma “contribuição módica e mensal” para aqueles que não alegassem escassez de recursos.[32]
A Constituição de 1946, em linhas gerais, retomou e aperfeiçoou o sistema adotado em 1934, tendo surgido sob a sua égide a Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Dentre outras disposições, consagrou a educação como direito de todos, assegurou a obrigatoriedade do ensino primário e acresceu que “o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos comprovarem falta ou insuficiência de recursos”.[33]
A Constituição de 1967 disciplinou a matéria em capítulo intitulado “Da Família, da Educação e da Cultura”, que abrangia os arts. 167 usque 172, não tendo introduzido modificações substanciais.
A Emenda Constitucional nº 1/69 manteve as características do sistema anterior e acrescentou a possibilidade de intervenção dos Estados nos Municípios no caso de não aplicação anual, no ensino primário, de 20% da receita tributária municipal.[34] Esse percentual, aliás, terminou por ser alterado pela Emenda Constitucional nº 24/83, que o fixou em 13% para a União e 25% para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
A Constituição de 1988 dedicou toda uma seção ao direito à educação, sendo integrada pelos arts. 205 usque 214. Cada um dos entes federativos deve comprometer, anualmente, um percentual mínimo da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino: a União dezoito por cento e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento.[35] O sistema atual atribuiu aos Municípios a atuação prioritária no ensino fundamental e infantil e aos Estados e ao Distrito Federal, também de forma prioritária, a manutenção do ensino fundamental e médio.[36] Com isto, é possível afirmar que inexiste qualquer óbice a que tais entes federativos atuem em outros níveis de educação, o que, por óbvio, pressupõe o atendimento satisfatório nos níveis em que sua atuação seja prioritária.
Sendo a federação a forma de Estado adotada no Brasil, era necessário que, além das atribuições de ordem material, também a competência legislativa fosse disciplinada pela Constituição da República. Consoante o art. 22, XXIV, à União compete legislar, de forma privativa, sobre diretrizes e bases da educação nacional.[37] De forma concorrente com os Estados e o Distrito Federal também lhe cabe, a teor do art. 24, IX, legislar sobre educação, cultura, ensino e desporto. Neste caso, o parágrafo primeiro do referido preceito restringe sua competência à edição de normas gerais, que serão de observância obrigatória pelos demais entes federativos. Os Estados e o Distrito Federal também poderão exercer a competência legislativa plena, situação que perdurará até a superveniência da lei nacional, ocasião em que a eficácia da lei estadual será suspensa: é esse o conteúdo dos parágrafos do art. 24 da Constituição da República. Em que pese à obviedade, não é demais lembrar que inexiste hierarquia entre as normas emanadas dos diferentes entes federativos, mas, sim, uma divisão de competências.
Ainda sob a ótica da produção normativa, podem os Estados dispor sobre a matéria em suas respectivas Constituições. Devem, no entanto, observar os princípios constantes da Constituição da República (v.g.: aqueles previstos nos arts. 1º e 34).[38] Daí se dizer que as Cartas Estaduais devem apresentar uma relação de simetria para com ela.[39]
As obrigações do Estado em busca da concretização do direito à educação estão concentradas no art. 208 da Carta de 1988, in verbis:
"Art. 208 - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;
VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.
§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola" (destaque nosso).
Como se constata, o Constituinte dispensou um tratamento nitidamente diferenciado ao ensino obrigatório, realçando que, além de dever do Estado, o que poderia soar como mera enunciação de uma norma programática, configura, independentemente de qualquer requisito etário, direito subjetivo da pessoa humana.[40] Com isto, torna-se exigível a sua ampla e irrestrita efetividade.[41] Essa norma indica, de modo insofismável, que, dentre as opções políticas estruturantes contempladas na Carta de 1988, o direito à educação fundamental[42] foi considerado uma parcela indissociável de uma existência digna de tantos quantos vivam em território brasileiro, integrando o que se convencionou chamar de mínimo existencial.
As opções políticas do Constituinte, no entanto, não têm o condão de engessar o contínuo evolver de uma sociedade democrática e nitidamente pluralista[43]. Respeitadas as decisões fundamentais consagradas na Constituição da República, nada impede a constante renovação da vontade popular, com a conseqüente expansão das concepções ideológicas outrora prevalecentes.
Nessa linha, foi editada a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Trata-se de diploma avançado e que substituiu os antigos dogmas da doutrina da situação irregular pelo princípio da proteção integral da infância e da adolescência. Afastando quaisquer dúvidas sobre o alcance do Estatuto, dispõe o seu art. 3º que "a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade". Como se vê, o objetivo foi ampliar, em relação às crianças e aos adolescentes, o rol de direitos previsto no texto constitucional. Especificamente em relação ao direito à educação, o art. 54 do Estatuto repetiu, com pequenas alterações redacionais, os termos do art. 208 da Constituição da República.
Ante a constatação de que os direitos sociais contemplados no texto constitucional são constantemente vistos como meras exortações, destituídos de toda e qualquer força vinculativa em relação ao Poder Executivo, o art. 208 da Lei nº 8.069/90 assegura, de forma expressa, a sindicação desses direitos junto ao Poder Judiciário, in verbis:
"Art. 208 - Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular:
I - do ensino obrigatório;
II - de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência;
III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
IV - de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
V - de programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental;
VI - de serviço de assistência social visando à proteção, à família, à maternidade, à infância e à adolescência, bem como ao amparo às crianças e adolescentes que dele necessitem;
VII - de acesso às ações e serviços de saúde;
VIII - de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade.
Parágrafo único - As hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses individuais difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei".
Enquanto o Constituinte optou por indicar o mínimo existencial com a utilização do designativo direito subjetivo, o legislador infraconstitucional chegou a resultado similar por meio diverso. Como veremos, somente é possível falar em direito em havendo o correspondente dever jurídico, e somente poderemos falar em dever caso seja detectada a existência de um poder de coerção apto a alcançar o resultado almejado em não sendo ele espontaneamente observado. Assim, ao prever a exigibilidade desses direitos prestacionais e assegurar a imediata sindicabilidade judicial dos direitos mencionados no art. 208, o legislador infraconstitucional reconheceu, implicitamente, a sua essencialidade para um desenvolvimento digno das crianças e dos adolescentes. Afora o ensino fundamental, devem ser adotadas as medidas possíveis à imediata implementação do atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, do atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade (prestação de cunho igualmente assistencial), do ensino noturno regular, adequado às condições do educando, dos programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental e da escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade.
A Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) também reforçou a garantia de acesso ao Poder Judiciário em seu art. 5º, in verbis:
"Art. 5º. O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
§ 1º. Compete aos Estados e aos Municípios, em regime de colaboração, e com a assistência da União;
I - recensear a população em idade escolar para o ensino fundamental, e os jovens e adultos que a ele não tiveram acesso;
II - fazer-lhes a chamada pública;
III - zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.
§ 2º. Em todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o ensino obrigatório, nos termos deste artigo, contemplando em seguida os demais níveis e modalidades de ensino, conforme as prioridades constitucionais e legais.
§ 3º. Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.
§ 4º. Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.
§ 5º. Para garantir o cumprimento da obrigatoriedade de ensino, o Poder Público criará formas alternativas de acesso aos diferentes níveis de ensino, independentemente da escolarização anterior."
Além da proteção integral, o art. 227, caput, da Constituição da República assegurou às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o gozo de inúmeros direitos, dentre os quais o direito à educação. No plano léxico, prioridade indica a "qualidade do que está em primeiro lugar ou do que aparece primeiro; primazia, preferência conferida a alguém relativa ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros; qualidade de uma coisa que é posta em primeiro lugar dentro de uma série ou ordem".[44] Consagrada a prioridade, é praticamente suprimido o âmbito de discricionariedade política do administrador público, já que eliminada a possibilidade de sopesar quaisquer outros direitos com aqueles das crianças e dos adolescentes. A ponderação entre os possíveis valores envolvidos foi realizada, a priori, pelo Constituinte, pouco sendo deixado ao administrador. Tratando-se de direitos que congreguem valores idênticos ou inferiores àqueles consagrados às crianças e aos adolescentes, não haverá qualquer espaço para uma opção distinta daquela que prestigie a absoluta prioridade (v.g.: entre a educação de um adulto e a educação de uma criança, esta haverá de prevalecer; entre a realização de construções de natureza voluptuária e a educação de uma criança, a última, por veicular valores mais importantes à coletividade, deverá igualmente prevalecer). No entanto, em situações extremas, um direito que possua maior peso no caso concreto poderá afastar outro de peso inferior (v.g.: para assegurar o direito à vida, pode ser afastado o direito à educação de uma criança).
Em outra ocasião[45], tivemos oportunidade de afirmar que os direitos cuja extensão não esteja perfeitamente delimitada, assumindo contornos "abertos" ou "móveis" e, em especial, os princípios jurídicos, facilmente entram em colisão entre si, o que é reflexo da falta de fixação de sua amplitude. Em caso de conflito, um direito deve ceder em prol do outro, ou ambos devem realizar concessões mútuas até que seja encontrada a situação mais justa e consentânea com o ordenamento jurídico no caso concreto. Por não representarem os direitos grandezas quantitativamente mensuráveis, a ponderação, em verdade, é apenas uma imagem que reflete a sua valoração, pois a ausência de um escalonamento hierárquico entre todos os bens e valores impede que as hipóteses de conflito sejam adredemente solucionadas como numa tabela.[46]
A ponderação, no entanto, não deve ser desenvolvida em uma atmosfera de intenso subjetivismo, pois o contrário certamente conduziria ao arbítrio. Segundo Robert Alexy,[47] deve ser ela direcionada por critérios racionais que culminarão em estabelecer uma relação de precedência condicionada, identificando o princípio que possui maior peso em determinada situação a partir da verificação das condições específicas que envolvem essa ponderação. Com isto, se chegará à estruturação da lei de colisão, segundo a qual as condições que conduzem à prevalência de um princípio sobre o outro constituem o pressuposto fático de uma regra que explica a conseqüência jurídica do princípio precedente, sendo que, “quanto maior é o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a importância de satisfação do outro”.[48]
Ainda sobre a ponderação, afirma Alexy que ela deve suceder em três fases. “Na primeira fase deve ser determinada a intensidade da intervenção. Na segunda fase se trata, então, da importância das razões que justificam a intervenção. Somente na terceira fase sucede, então, a ponderação no sentido estrito e próprio”.[49]
A técnica da ponderação tem sido utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão para solucionar situações de colisão entre direitos fundamentais, do que é exemplo o importante “caso Lebach”, que foi objeto de comentário por Robert Alexy.[50] O litígio versava sobre a pretensão de uma emissora de televisão de exibir um filme-documentário sobre o assassinato de soldados em Lebach, crime que assumira trágicas proporções no país e que consistira na morte de quatro soldados do Exército Federal, lotados em um depósito de munições próximo a Lebach. O crime fora praticado enquanto as vítimas dormiam e visava à subtração de armas do local, as quais seriam utilizadas para a prática de outros crimes. Um dos cúmplices do crime, que havia sido condenado e estava prestes a deixar a prisão, considerou que a exibição do documentário, no qual era nominalmente identificado e tinha sua fotografia exibida, violaria seus direitos à honra e à privacidade, além de em muito dificultar a sua ressocialização. Após a negativa das instâncias inferiores, que haviam prestigiado os direitos à informação e à liberdade de imprensa, denegando a pretensão de que fosse proibida a divulgação do filme, foi apresentado recurso à Corte Constitucional.
Após a realização de ampla instrução, na qual foram inquiridos diversos especialistas em criminologia, comunicação social e psicologia, o Tribunal Constitucional, ao apreciar a questão, equacionou o litígio em três vertentes.
Na primeira, visualizou a tensão existente entre a proteção da personalidade e o direito à informação, ambos amparados pela Lei Fundamental. Enquanto o primeiro princípio, por si só, conduziria à proibição da transmissão, o segundo a autorizaria. Como nenhum dos dois princípios tinha precedência sobre o outro e não seria possível declarar a invalidez de qualquer deles, a identificação do interesse que deveria prevalecer seria realizada a partir da ponderação das circunstâncias do caso em particular.
Identificada a colisão de princípios, o Tribunal, em uma segunda etapa, concluiu pela precedência geral da liberdade de imprensa quanto à informação sobre fatos criminosos contemporâneos à sua veiculação. Essa precedência geral, no entanto, não é intangível, pois nem todas as informações atuais poderão ser livremente expostas, sendo admitidas exceções consoante a situação concreta.
Ao final, a Corte Constitucional decidiu que a repetição de informações sobre um crime há muito perpetrado, e que já não correspondia aos interesses atuais de informação, comprometia a ressocialização do autor, o que fez com que a proteção da personalidade, no caso, tivesse precedência sobre a liberdade de imprensa.[51]
VI. A Eficácia das Normas Constitucionais
Sedimentada a organização estatal, mostra-se necessária a edição de padrões de conduta a serem observados pelos indivíduos, com o fim de assegurar a interpenetração e a coexistência dos distintos interesses existentes - não raras vezes contrapostos -, bem como padrões de estruturação e funcionamento dos próprios órgãos estatais. Esses padrões, que recebem o designativo de normas jurídicas, são dotados de imperatividade, devendo ser por todos observados, o que não exclui a possibilidade de os interessados agirem em norte contrário ao seu conteúdo sempre que, de forma expressa ou não, sejam autorizados a tanto pelo próprio ordenamento. A norma será existente caso emane de um órgão estatal, seja formulada e revelada ao mundo exterior de determinada forma e tenha um objeto (rectius: um padrão normativo). Além de existente, será válida caso seus elementos constitutivos possuam os atributos exigidos no texto constitucional: o órgão seja competente (rectius: competência legislativa do ente federativo e de seus órgãos internos), a forma, inclusive em relação aos atos que antecederam a sua formação (rectius: o processo legislativo), seja a exigida e o seu objeto guarde uma adequação material com a Constituição. A norma existente e válida será eficaz tão logo esteja apta a produzir os efeitos que lhe são próprios, o que se dará no momento em que se implementarem as condições previstas em seu texto ou em outra norma (v.g.: com a sua vigência). Não obstante existente, válida e eficaz, a norma somente terá efetividade (ou eficácia social como preferem alguns) quando seus efeitos, concebidos em estado latente, se materializarem no plano fático.
Sempre que encartadas em uma constituição rígida - logo, somente passíveis de modificação por um processo legislativo específico - são denominadas de normas jurídicas constitucionais. A natureza constitucional, por óbvio, não desvirtua ou enfraquece a sua normatividade, estendendo-se a elas as características inerentes às demais normas jurídicas. Para os fins dessa exposição, cuja brevidade não precisa ser realçada, releva analisar a questão da sua efetividade, pois eficácia jurídica todas a possuem.
A análise da efetividade das normas constitucionais, embora restrita a algumas poucas palavras, pressupõe uma breve referência à classificação das referidas normas, obrar que, por evidente, não poderá avançar no estudo das múltiplas construções realizadas pela doutrina pátria e alienígena. Assim, restringiremos nossa perspectiva de análise à conhecida construção de José Afonso da Silva, cuja obra[52] há muito incorporou o designativo de clássica e que desenvolveu, quanto à sua eficácia e aplicabilidade, uma divisão tripartite das normas constitucionais. Segundo essa classificação, tem-se: a) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata; b) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas restringíveis; e c) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que se subdividem em normas definidoras de princípio institucional e normas definidoras de princípio programático.
Normas constitucionais de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata, produzindo ou tendo a possibilidade de produzir todos os efeitos essenciais nelas previstos. Não necessitam de integração normativa ulterior para a sua aplicação e criam situações subjetivas de vantagem ou vínculo, exigíveis de imediato.
As normas constitucionais de eficácia contida, embora tenham igualmente recebido normatividade suficiente para reger os interesses de que cogitam, também criando situações subjetivas de vantagem caracterizadoras de direitos subjetivos, podem ter sua eficácia e aplicabilidade limitadas por outras normas. Enquanto não editada a legislação restritiva, terão eficácia plena.
Quanto às normas de eficácia limitada, em geral, não receberam normatividade suficiente para sua aplicação, deixando-se ao legislador ordinário o ônus de completar a regulamentação da matéria nelas prevista em princípio ou esquema. Ressalta o autor que "as de princípio institucional encontram-se principalmente na parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos socio-ideológicos que caracterizam as cartas magnas contemporâneas. Todas elas possuem eficácia ab-rogativa da legislação precedente incompatível e criam situações subjetivas simples e de interesse legítimo, bem como direito subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo".[53] As normas constitucionais de princípio institucional podem deixar uma margem maior de liberdade ao legislador ou indicar desde logo o conteúdo da lei. As de princípio programático limitam-se a traçar os princípios a serem cumpridos pelas diferentes funções estatais, sempre com o objetivo de realizar os fins inerentes à organização estatal.
As normas programáticas, apesar de não possuírem eficácia suficiente à regulação de uma situação fática ou jurídica previamente definida, a exemplo das demais normas jurídicas, possuem o atributo da imperatividade. Assim, além de prestarem um relevante auxílio na interpretação das normas infraconstitucionais, exigem que todos os atos emanados do Poder Público, de natureza normativa ou não, sejam com elas compatíveis.
As normas constitucionais que dispõem sobre a educação fundamental, na medida em que asseguram a imediata fruição desse direito, já que, consoante o art. 208, § 1º, foi ele tratado como direito subjetivo público, têm eficácia plena e aplicabilidade imediata, prescindindo de integração pela legislação infraconstitucional. Não bastasse isso, essa conclusão é reforçada por integrarem o rol mínimo de direitos imprescindíveis a uma existência digna, o que afasta qualquer tentativa de postergar a sua efetivação. Igual conclusão, aliás, deverá prevalecer quanto aos já mencionados preceitos da Lei nº 8.069/90.
Jorge Miranda,[54] após afirmar que a maior parte dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos na Constituição portuguesa depende de legislação integradora, ressalta ser imperativa a observância do conteúdo essencial desses direitos e que, verificadas as condições de sua efetivação, “tais normas podem ser entendidas como tendo aplicação imediata (mesmo se o reconhecimento desses pressupostos e, por vezes, a determinação ou determinabilidade das normas exigem uma intervenção do legislador. Um exemplo é o art. 74, no 2, alínea a, que assegura o ensino obrigatório e gratuito, ficando, porém, a definição do que seja ‘ensino básico’ a cargo da lei)”.
Para melhor esclarecimento do alcance do preceito constitucional, realizaremos uma breve análise do instituto do direito subjetivo, de índole eminentemente privatista, e dos lineamentos básicos do mínimo existencial.
VII. O Direito Subjetivo à Educação
Em um primeiro momento, nos parece relevante lembrar a dicotomia direito objetivo e direito subjetivo: o primeiro indica a norma, dissociada de circunstâncias afetas à realidade fenomênica e que, com maior ou menor grau de abstração, disciplina determinada situação jurídica (norma agendi); quanto ao direito subjetivo, veicula ele a faculdade, conferida ao seu titular, de agir em conformidade com a situação jurídica abstratamente prevista na norma e de exigir de outrem o cumprimento de um dever jurídico (facultas agendi).[55]
Tanto o direito objetivo como o subjetivo possuem um epicentro comum: a pessoa, natural ou jurídica, que é a titular em potencial das relações jurídicas que se desenvolvem no organismo social. Enquanto o direito objetivo ocupa uma vertente externa à pessoa, mas a ela direcionada, o direito subjetivo se realiza na própria pessoa,[56] sendo ambos absorvidos pela noção mais ampla de direito, que busca assegurar o primado da ordem jurídica e a existência digna de todos.
O direito subjetivo é intitulado de privado quando consagrado em norma de igual natureza. Direito subjetivo público, por sua vez, é o decorrente de norma de caráter público, designativo que aufere suas características básicas no objeto da relação jurídica e na sua indisponibilidade, sendo prescindível que o Estado figure em um dos pólos do vínculo (v.g.: o direito à intimidade, oponível tanto ao Estado como aos demais indivíduos).
Consagrada a disciplina normativa e assegurado, em abstrato, o exercício de um direito, está o seu titular autorizado a exigir daquele que detém o dever jurídico a transposição desse estado potencial para a realidade fenomênica, com o conseqüente cumprimento da prestação devida, quer seja positiva ou negativa. Dessa assertiva defluem os elementos essenciais do direito subjetivo: sujeito, objeto e relação jurídica.
O sujeito é o titular do direito[57]. Tratando-se de obrigações oriundas do direito privado, em regra, o sujeito será certo e determinado. Tal, no entanto, não chega a ser erigido à condição de elemento essencial, sendo plenamente factível, em especial nos direitos que auferem o seu fundamento de existência diretamente na norma (ex vi legis), que somente sejam indicadas as características essenciais dos respectivos titulares, não se descendo a minúcias quanto à sua individualidade.
O objeto, que pode ter características materiais ou imateriais, é o bem jurídico sobre o qual o sujeito exerce a faculdade que lhe fora assegurada pela norma. Ultrapassados os períodos mais primitivos da história da civilização, não mais se concebe, sob um prisma universal e absoluto dos direitos fundamentais, seja o homem objeto de direito (v.g.: na condição de escravo). Questão mais complexa reside na possibilidade de o homem, como sujeito de direito, dispor sobre a própria pessoa ou sobre os atributos inerentes à sua personalidade. Como decorrência da individualidade existencial do homem e do elemento anímico que direciona seu comportamento, há muito se consagrou o entendimento de que lhe é dado fazer tudo o que lhe aprouver, desde que sua conduta não rompa as fronteiras da indisponibilidade consagradas no ordenamento jurídico, em especial nos princípios que congregam os valores ético-morais inerentes a determinado grupamento (v.g.: em contraposição à licitude de um contrato de trabalho firmado entre um acrobata e um circo, seria ilícita, por atentatória à dignidade da pessoa humana, a cláusula que previsse a possibilidade de o acrobata, a juízo do empregador, permanecer pendurado em uma corda, completamente nu, enquanto os espectadores se divertissem arremessando frutas e legumes deteriorados contra ele).[58] Ultrapassados tais limites, com a conseqüente mácula à integridade de direitos que, em sua essência, são indisponíveis, ter-se-á a ilicitude da conduta. Traçando-se um paralelo imaginário com o direito de propriedade, que é caracterizado pelo ius utendi, fruendi et abutendi (direito de usar, gozar e dispor), seria possível afirmar que o homem pode usar e gozar dos atributos inerentes à sua pessoa e à sua personalidade, mas deles não pode dispor.
A relação jurídica é o vínculo mantido entre o titular do direito subjetivo e aquele que tem o dever jurídico de observá-lo. Não raras vezes, o pólo passivo da relação jurídica é ocupado por sujeitos indeterminados (v.g.: no direito de propriedade, onde o proprietário ocupa o pólo ativo e todos têm o dever de observá-lo, sendo integrantes do pólo passivo)[59], o que em nada descaracteriza o direito. É importante ressaltar, uma vez mais, não ser possível falar em direito sem o correspondente dever de outrem, sendo este o elemento fundamental de uma relação jurídica.
Como decorrência lógica da própria consagração de um direito, que é violável por excelência, tem-se como indispensável a possibilidade de utilização do poder de coerção estatal para assegurar a sua efetiva implementação no plano fático. Entendendo desatendido um direito seu em razão da inobservância de um dever jurídico que recaía sobre outrem, poderá o interessado deduzir sua pretensão[60] em juízo.
O direito subjetivo, não obstante concebido sob uma perspectiva eminentemente privatista, em que os interesses individuais justificavam a previsão normativa e direcionavam a sua concreção, bem demonstra a presença de um dever e a existência de um direito à sua usufruição. Essa constatação não sofre alterações substanciais ao ser transportada para o plano dos direitos sociais, já que, mantida a essência, tem-se tão-somente a ampliação dos titulares da facultas agendi. Ao invés do seu exercício de modo individual, torna-se possível e aconselhável que tal se dê em uma dimensão coletiva.[61]
Assim, quer seja considerado na individualidade de um dos componentes do grupamento, quer seja visto como direito de todos, o direito à educação, a depender da ótica em que seja analisado, será passível de enquadramento na categoria dos direitos subjetivos, pois integrante do denominado mínimo existencial. É justamente com olhos voltados a essa constatação que deve ser interpretado o art. 208, § 1º, da Constituição da República: "O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo".[62]
Não se sustenta que todo e qualquer direito previsto na Constituição possa resultar na coerção estatal para o seu fornecimento, isto porque os recursos estatais são reconhecidamente limitados, enquanto as necessidades são indiscutivelmente amplas. Tal teoria, aliás, já se mostrou inexeqüível em relação aos dogmas do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), que teve grande expansão a partir da Segunda Guerra Mundial. Fosse de outro modo, bastaria transpor a legislação de um país dotado de elevados índices de desenvolvimento humano para outros nos quais esse fator não apresentasse a mesma desenvoltura para que, tal qual um passe de mágica, todos os problemas sociais do mundo contemporâneo fossem resolvidos. Essa tese, infelizmente, destoa de um padrão de razoabilidade, motivo pelo qual seu prestígio está em franco declínio. Como contraponto, tem-se o mínimo existencial, que, face o seu conteúdo mínimo, apresenta níveis aceitáveis de exeqüibilidade, atende à razão e satisfaz à dignidade da pessoa humana.
Na Itália, após acentuarem a constitucionalização da obrigação do Estado de “instituir escolas estatais para todas as ordens e graus”,[63] Di Celso e Salermo,[64] analisando o art. 34 da Constituição, que assegura o “direito ao estudo”, não hesitam em visualizar a existência do direito a obter dos poderes públicos, segundo as condições estabelecidas na Constituição e na lei, as prestações necessárias ao profícuo desenvolvimento dessa atividade. Acrescentam que, “não diversamente do direito ao trabalho, o direito ao estudo nasce como liberdade e se desenvolve como direito cívico ou social ou, como outros preferem dizer (Martines), evolui da liberdade negativa à liberdade positiva”. Apesar disso, apresenta uma diferença substancial em relação ao direito ao trabalho, pois a Constituição e a lei impõem os meios (v.g.: bolsa de estudo) para tornar efetivo esse direito, indicando uma concreta linha de ação, do que resulta um verdadeiro poder jurídico de exigir a sua prestação. Ao final, lembrando a Sentença 215/87, do Tribunal Constitucional, concluem que “a escola está aberta a todos” (la scuola è aperta a tutti).
Igual entendimento tem prevalecido na Espanha, onde o art. 27 da Constituição dispõe que “todos tienen derecho a la educación”. Segundo o Tribunal Constitucional (STC 86/1985, FJ 3), esse direito tem um teor primário de direito de liberdade e, mais especificamente, uma dimensão prestacional que, na atualidade, ressalta das exigências do Estado social. Em razão desse preceito, o Poder Público está obrigado a assegurar a efetividade do direito à educação, em especial nos níveis básicos de ensino integrantes do sistema educativo, pois, a teor do item 4 do mesmo artigo, tais níveis, além de obrigatórios, são gratuitos. Esse direito pode ser imediatamente exigido, por qualquer cidadão, perante os tribunais, inclusive com a utilização do recurso de amparo,[65] que apresenta certa similitude com o mandado de segurança pátrio.
Tratando-se de outros níveis de educação que não aqueles previstos no art. 208, § 1º, da Constituição da República e no art. 208 da Lei nº 8.069/90, a exigibilidade de sua implementação dependerá do concurso de uma complexa rede de circunstâncias fáticas e jurídicas. Em linhas gerais, exigirá, como antecedente lógico, o atendimento de outros direitos igualmente integrantes do mínimo existencial (v.g.: habitação), que correspondem a valores de indiscutível fundamentalidade e preeminência em qualquer sociedade. Em um segundo momento, exigirá, à luz do caso concreto, a realização de um juízo de ponderação em relação a outros princípios que igualmente incidem na espécie. Além desses juízos valorativos, torna-se necessária a análise das possibilidades materiais do ente estatal, o que permitirá a transposição dos direitos normativamente previstos de um campo dominado pela retórica para uma seara ao alcance da realidade e da fruição social.
VIII. O Direito à Educação e o Mínimo Existencial
Também denominado de núcleo duro ou núcleo comum dos direitos fundamentais, o mínimo existencial indica o conteúdo mínimo e inderrogável desses direitos, resultando "de um levantamento comparativo de sua incidência em instrumentos de direitos humanos (os próprios textos), fortalecido ademais pela construção jurisprudencial daí decorrente e pelo processo de interpretação destes dispositivos equivalentes com formulações distintas."[66] Esse conteúdo mínimo dos direitos fundamentais, com tendência à universalidade, resulta de sua paulatina incorporação aos tratados internacionais, de sua penetração nas cartas políticas e de sua disseminação pela legislação infraconstitucional, o que torna imperativa a interpretação desta à luz dos valores superiores que direcionam sua aplicação.[67]
Tratando-se de um conteúdo mínimo,[68] que atua como elemento aglutinador da essência dos direitos fundamentais, é vedado ao Estado a adoção de quaisquer medidas, de ordem legislativa ou material, comissivas ou omissivas, que busquem frustrar a sua concreção. Tanto atentará contra o mínimo existencial a ação concreta, finalisticamente dirigida ao vilipêndio do bem jurídico por ele tutelado, como a omissão deliberada em tornar concreta uma previsão normativa ou mesmo em editar um ato normativo que viabilize o alcance de um status jurídico favorável ao indivíduo. A sua observância, assim, independe de qualquer medida de intervenção legislativa, derivando diretamente da própria Constituição.
Não obstante incontroversa a sua preeminência axiológica, o mínimo existencial, que está atrelado às condições materiais mínimas exigidas para uma sobrevivência digna, não possui balizamentos precisos. Como visto, os seus lineamentos básicos resultam da paulatina sedimentação de uma pauta de direitos mínimos geralmente aceitos e considerados essenciais à preservação da dignidade da pessoa humana. Essa observação é relevante na medida em que permite situar a legitimação dos direitos humanos em uma posição externa ao próprio ordenamento jurídico.[69]
Em países subdesenvolvidos como o Brasil, nos quais o mínimo existencial é historicamente ignorado pelos poderes constituídos, a questão assume perspectivas dramáticas e que certamente não seriam vistas em países do denominado primeiro mundo. Nestes, o contingente populacional que depende do intervencionismo estatal para sobreviver é sensivelmente reduzido, o que, face à reconhecida possibilidade de o Estado assegurar a observância do mínimo existencial, em muito suaviza qualquer polêmica sobre a matéria.
Ainda que o mínimo existencial seja tradicionalmente integrado por zonas interditas à atuação estatal, vale dizer, pelo imperativo reconhecimento de um rol mínimo de liberdades, intangíveis por excelência, merecem igual proteção os direitos conexos, por imprescindíveis à usufruição dessas liberdades, estando a elas umbilicalmente ligados.
Em relação ao direito à educação fundamental, nos parece incontroverso tratar-se de uma parcela integrante do mínimo existencial, não só por suas características intrínsecas como em razão de sua importância para a concreção de outros direitos necessários a uma existência digna.[70] Como vimos, há muito a educação fundamental foi incorporada aos tratados e convenções internacionais, isto sem olvidar a sua paulatina inserção nos ordenamentos de inúmeros Estados, inclusive o Brasil. Neste País, aliás, os textos constitucionais, a contar do primeiro, sempre lhe fizeram certa deferência. Além dos prismas da universalidade e do historicismo, a Carta de 1988 a erigiu à condição de direito subjetivo público, o que em muito reduz a abstração que sempre circunda os limites do mínimo existencial e afasta a possibilidade de que sua oferta seja postergada ou negada.
Do mesmo modo, ante a reconhecida miserabilidade da população brasileira, também os programas suplementares de oferta de material escolar, transporte, saúde e alimentação são indissociáveis do direito à educação: uma pessoa que não possua livros não poderá acompanhar as lições que lhe são ministradas; não possuindo recursos para custear o transporte, simplesmente não poderá comparecer à escola; estando doente, não poderá estudar e entrar em contato com outros estudantes; e, ainda, sem alimentação não haverá como assimilar as mais comezinhas lições.
Identificados os lineamentos básicos do mínimo existencial, com a conseqüente integração do princípio da dignidade da pessoa humana, nos parece que destoa dos valores por ele condensados qualquer iniciativa dos poderes constituídos, de cunho material ou normativo[71], que procure suprimir direitos, liberdades e garantias já alçados a essa condição. Os direitos fundamentais, na mesma medida em que podem impor prestações positivas ao Poder Público, impõem limites à sua atuação. Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, será flagrantemente inconstitucional qualquer medida que se afaste dos valores responsáveis por sua concretização, ainda que emanados de normas infraconstitucionais. À guisa de ilustração, será ilegítimo o ato que determine o fechamento de uma escola sem que existam outras em condições de atender à demanda, a extinção de cargos de professor, com a conseqüente colocação em disponibilidade de seus ocupantes, enquanto flagrante a carência de pessoal nessa seara etc. É indiscutível que um estudo responsável da denominada proibição de retrocesso social exige maiores reflexões de seu artífice. No entanto, nos parece relevante o registro, ainda que meramente enunciativo.[72]
Como vimos, o direito à educação, na vertente aqui analisada, enseja a correlata obrigação do Estado em prestá-la, o que importa na necessária observância dos princípios regentes da atividade estatal, quer sejam expressos, como a impessoalidade e a eficiência, quer sejam implícitos, como o princípio da continuidade dos serviços públicos. Especificamente em relação à continuidade ou permanência do serviço, é ela mera derivação de sua utilidade e essencialidade, ambas de matiz constitucional. Tratando-se de serviço público essencial, é imperativa a sua manutenção em caráter contínuo e regular, vedando-se a interrupção ou mesmo a disponibilização em nível inferior ao exigido. Não bastasse isto, é vedado ao Poder Público, inclusive, desafetá-lo e transferi-lo à responsabilidade da iniciativa privada. Ainda que seja admissível e aconselhável a participação da sociedade na concreção desse direito fundamental, o que representa mera projeção da horizontalidade dessa categoria de direitos, optou o Constituinte por tornar inarredável a participação estatal, recaindo sobre o Poder Público o dever jurídico de prestá-lo.[73]
IX. A Questão da Efetividade do Direito à Educação e os Recursos Públicos Disponíveis
Delineados os contornos básicos do direito à educação e a parcela mínima a ser fornecida aos residentes no território nacional, resta aos interessados a utilização dos mecanismos de acesso à justiça sempre que seja divisado o descumprimento do dever jurídico que recai sobre o Estado, quer seja com o seu não oferecimento ou mesmo com a sua oferta irregular. Dentre os instrumentos processuais contemplados no texto constitucional, merecem ser lembrados, em caráter meramente enunciativo, o mandado de segurança, individual e coletivo, o mandado de injunção e a ação civil pública, os quais serão manejados pelos respectivos legitimados em conformidade com as leis de regência.
Em casos tais, não nos parece aceitável a tese de que o julgamento favorável de uma pretensão dessa natureza importaria em mácula ao princípio da divisão das funções estatais. A divisão em funções garante a sua especialização e a independência em seu exercício, o que evita os conhecidos e inevitáveis males da concentração do poder.[74] Não se trata unicamente de princípio de especificação de órgãos e funções, mas de princípio de coordenação e manutenção da unidade e organicidade do Estado. O princípio da divisão dos poderes é, em essência, um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais.[75] Assim, como utilizar um princípio que se destina à salvaguarda dos direitos individuais como a pedra angular de um entendimento que busca justamente legitimar a sua inobservância? A atuação do Judiciário não importará em qualquer ingerência externa na atividade desenvolvida, mas, tão-somente, velará para que esta mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência. Dessa forma, não se tratará unicamente de juízo censório ou punitivo à atividade desempenhada por outro poder, mas de aplicação de eficaz mecanismo previsto no regime democrático, sempre com o desiderato final de garantir o bem-estar da coletividade. Pontes de Miranda há muito afirmara que "o exercício do poder, ainda por parte daqueles que só indiretamente o recebem, como os juízes e os funcionários públicos, é sempre exercido em nome do povo".[76]
Do mesmo modo, não merece acolhida a tese de que o Judiciário não estaria devidamente aparelhado para levar a efeito a valoração das circunstâncias periféricas ao caso, em especial aquelas que possibilitem uma visão de conjunto do aparato administrativo, o que inclui a ponderação de toda a gama de interesses individuais e sociais a serem atendidos e a análise das possibilidades operacionais do referido aparato. Integrando a educação fundamental o mínimo existencial e sendo dever do Poder Público o atendimento prioritário às crianças e aos adolescentes, somente em situações excepcionalíssimas será possível, em um juízo de ponderação, prestigiar interesses outros, com o conseqüente comprometimento dos recursos existentes. Assim, a importância dos valores envolvidos confere uma relativa simplicidade a essa operação, conferindo ao extraneus - in casu o Juiz - uma ampla possibilidade de realizá-la.[77]
Outro argumento normalmente utilizado por aqueles que vêem os direitos sociais como normas meramente programáticas reside na conhecida insuficiência de recursos para o atendimento das múltiplas necessidades da população. É a denominada reserva do possível, que pode ser de ordem jurídica - ausência de previsão de gastos na lei orçamentária - ou fática - inexistência dos próprios recursos necessários à satisfação dos direitos. No caso de total insuficiência de recursos, o que deverá ser devidamente demonstrado e não simplesmente alegado,[78] pouco espaço restará para que o Poder Público seja compelido a cumprir o seu dever jurídico. Nesse caso, o descumprimento resultará de uma total impossibilidade material, não de uma injustificável desídia.
Tratando-se de impossibilidade jurídica, o que decorreria não da ausência de receita, mas da ausência de previsão orçamentária para a realização da despesa, deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial. Restando incontroverso o descompasso entre a lei orçamentária e os valores que integram a dignidade da pessoa humana, entendemos deva esta prevalecer, com o conseqüente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública.[79] Não fosse assim, seria tarefa assaz difícil compelir o Poder Público a observar os mais comezinhos direitos assegurados na Constituição da República e na legislação infraconstitucional, o que terminaria por tornar legítimo aquilo que, na essência, não o é. Não é demais lembrar que, ao consagrar direitos, o texto constitucional implicitamente impôs o dever de que sejam alocados recursos necessários à sua efetivação.[80] Em se tratando de direitos coletivos - que normalmente exigem um elevado montante de recursos -, apelar para a expedição de precatórios, consoante a sistemática do art. 100 da Constituição, seria o mesmo que relegar os verdadeiros detentores da facultas agendi às intempéries da própria sorte, arcando com os efeitos deletérios e irreversíveis que o fluir do tempo causaria sobre seus direitos. Como desdobramento do que vem de ser dito, poderá o Poder Judiciário, a partir de critérios de razoabilidade e com a realização de uma ponderação responsável dos interesses envolvidos, determinar a realização dos gastos na forma preconizada, ainda que ausente a previsão orçamentária específica. Caberá ao Poder Executivo, nos limites de sua discrição política, o contingenciamento ou o remanejamento de verbas visando a tornar efetivos os direitos que ainda não o são.[81]
Lembre-se que, em se tratando de matéria afeta à infância e à juventude, o argumento da impossibilidade jurídica jamais poderá beneficiar àqueles que a alegam, pois, como foi dito, nessa seara vige o princípio da absoluta prioridade. Se nem todos os direitos sociais, apesar da previsão normativa, se mostram plenamente operativos, é necessário “determinar com que prioridade e em que medida deverão ser”,[82] e esta escolha há muito foi feita pelo Constituinte. E ainda, a Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996, que alterou o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, dispôs sobre a vinculação de verbas específicas do orçamento para a implementação do direito à educação. Além disso, criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), que tinha por fim universalizar o ensino fundamental e remunerar condignamente o magistério. Em momento posterior, dando continuidade ao esforço de formação intelectual e construção da capacidade crítica da população brasileira, pressuposto necessário e indissociável de uma verdadeira ideologia participativa, a Emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006, instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, também denominado de FUNDEB, regulamentado pela Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007.
Como se percebe, o FUNDEB possui contornos muito mais amplos que o extinto FUNDEF: enquanto o último estava finalisticamente voltado ao custeio do ensino fundamental, o primeiro absorve a educação básica em todas as suas modalidades, incluindo não só o ensino fundamental, como também a educação infantil e o ensino médio. Ambos os Fundos integram o plano de estruturação e desenvolvimento do ensino brasileiro. Iniciado em 1996, a primeira fase desse plano perdurou por 10 (dez) anos, período de vigência das disposições relativas ao FUNDEF. A segunda fase, por sua vez, teve início em 2006, com a criação do FUNDEB, que, com objetivos mais amplos, embora entrelaçados e em linha de continuidade com o FUNDEF, produzirão efeitos por 14 (quatorze) anos.
Com exceção da União, cada ente federado contará com seu próprio FUNDEB, que será formado por 20% da receita auferida com os impostos de transmissão causa mortis e doação, sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e sobre a propriedade de veículos automotores, bem como de parte da participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios nos tributos arrecadados pela União.
A distribuição de recursos, por sua vez, está vinculada ao número de alunos matriculados na rede de ensino da área de atuação prioritária do respectivo ente. No caso dos Municípios, o ensino fundamental e a educação infantil; no dos Estados e Distrito Federal, o ensino fundamental e médio. Assim, ainda que o Estado realize elevados investimentos na educação infantil e no ensino superior, tal será desinfluente ao direcionamento das receitas do FUNDEB, pois não são áreas de atuação prioritária desse ente federado. Observados os requisitos que estabelece, a Lei nº 11.494/2007 (art. 8º, § 1º) autoriza sejam computadas as matrículas realizadas em instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o poder público. Sempre que os recursos do Fundo, no Distrito Federal e em cada Estado, não alcançarem o valor mínimo por aluno definido nacionalmente pela União, esse ente os complementará (art. 60, VIII, do ADCT), isto sob pena de crime de responsabilidade do agente omisso (art. 60, XI, do ADCT).
A distribuição proporcional de recursos do FUNDEB levará em consideração as diversas etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da educação básica previstas no art. 10 da Lei nº 11.494/2007, que principiam pela creche em tempo integral e se estendem até a educação de jovens e adultos integrada à educação profissional de nível médio, com avaliação no processo.
A fundamentalidade do direito à educação é imanente à sua condição de elemento indispensável ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à concreção da própria cidadania.
Identificadas as três gerações de direitos fundamentais, as quais, não obstante sucessivas entre si, não excluem as anteriores, coexistindo harmonicamente, o direito à educação tem sido tradicionalmente incluído no rol dos direitos sociais, que se enquadram no plano da segunda geração. Apesar disso, é indiscutível a sua importância à concreção dos direitos de primeira geração, pois não se pode falar em liberdade plena sem o exato conhecimento de seu próprio alcance.
Os direitos sociais, quer sejam enquadrados como mera variante dos direitos e garantias individuais, quer sejam considerados como projeções do princípio da dignidade humana, são “cláusulas pétreas”, erigindo-se como limites materiais ao exercício do poder reformador.
Em decorrência da tendência à universalidade dos direitos fundamentais, têm sido intensificadas, a partir da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas para se conferir um colorido normativo ao seu reconhecimento. Nessa perspectiva, o direito à educação tem sido constantemente previsto nos inúmeros tratados, cartas de princípios e acordos internacionais, os quais buscam estabelecer a pauta mínima de direitos consagradores da dignidade da pessoa humana. No Brasil, o direito à educação é presença constante em todos os textos constitucionais, recebendo especial realce na Carta de 1988, ocasião em que o direito à educação fundamental foi erguido à condição de direito subjetivo público. Na mesma linha se desenvolveu a legislação infraconstitucional, que consagrou o princípio da proteção integral das crianças e dos adolescentes (Lei nº 8.069/90) - o que inclui o direito à educação -, aperfeiçoando o sistema da absoluta prioridade previsto no art. 227 da Constituição da República.
A paulatina contemplação do direito à educação no cenário mundial e pátrio, com a conseqüente busca da sedimentação de sua universalidade, permitiu a integração da educação fundamental ao denominado mínimo existencial, que indica o conteúdo mínimo e inderrogável dos direitos fundamentais. Além dessa perspectiva historicista, a Constituição de 1988, em seu art. 208, § 1º, tornou incontroversa a imediata exigibilidade desse direito junto ao Poder Público, erguendo-o à condição de direito subjetivo público. Tratando-se de norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, a não oferta do ensino fundamental ou a sua oferta irregular autoriza a imediata sindicação junto ao Poder Judiciário.
O provimento jurisdicional que vele pelo cumprimento da Constituição e da legislação infraconstitucional, possibilitando a concreção de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana, em nada viola o princípio da divisão das funções estatais. Esse princípio, em essência, é um instrumento indispensável à salvaguarda das liberdades e dos direitos individuais, não sendo legítima a sua utilização como a pedra angular de um entendimento que busca justificar a sua inobservância.
Ressalvada a total inexistência de recursos, o que depende de prova por parte do Poder Público, sendo insuficiente a mera alegação, será plenamente possível a emissão de provimento jurisdicional com o fim de determinar o contingenciamento ou a realocação de dotações orçamentárias para o atendimento dos direitos prestacionais que congregam os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, como é o caso do direito à educação fundamental.
[1] Cf. Francisco Torrinha, Dicionário Latino Português, 2ª ed., Porto: Gráficos Reunidos Lda, 1942, p. 278.
[2] The Second Treatise of Government: Essay concerning the true original, extent and end of civil government, 3a ed., Norwich: Basil Blackwell Oxford, 1976, pp. 14 e ss., publicado inicialmente em 1690, como parte da obra Two Treatises of Government, estabeleceu o alicerce fundamental da teoria clássica da divisão dos poderes posteriormente desenvolvida por Montesquieu.
[3] Como se sabe, não é divisada uma uniformidade terminológica em relação aos direitos fundamentais, que recebem múltiplas outras designações (direitos do homem, direitos humanos, direitos individuais, direitos naturais etc.). Buscando evitar o desvirtuamento do objetivo principal, não realizaremos maiores incursões nessa seara, motivo pela qual deixamos de acentuar as distinções doutrinárias comumente suscitadas. Para maior desenvolvimento do atributo da fundamentalidade, que aponta para o especial relevo que deve merecer a proteção de tais direitos, vide Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
[4] Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 510. Um interessante resumo da evolução dos direitos fundamentais, em uma perspectiva nitidamente historicista, pode ser encontrado em Andrew D. Weinberger, Liberdades e Garantias, A Declaração de Direitos, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1960, pp. 18/23.
[5] Cf. Pablo Lucas Verdu, nas considerações preliminares à obra de Gualter Jellineck: Reforma y Mutacion de la Constitucion, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. XVII.
[6] Sobre os direitos de primeira geração, que refletiriam os direitos de liberdade, é oportuno lembrar serem constantes as críticas à doutrina clássica que sustentava a ausência de qualquer custo para o Estado em sua manutenção, pois consubstanciariam meras abstenções. Um entendimento inicial preconizava que, contrariamente aos direitos de primeira geração, somente os direitos prestacionais acarretariam custos para o Estado. Contra essa teoria, tem-se argumentado que sobre o Estado também recaem elevados custos para assegurar a liberdade e a sua própria defesa, merecendo ser mencionados, à guisa de ilustração, os gastos com a segurança pública e com o aparato judicial, que atua na recomposição da ordem jurídica sempre que violado um direito. Nesse sentido, é constantemente mencionada a obra de Stephen Holmes e Cass R. Sustein, The Cost of Rights, New York: W.W. Norton & Company Inc., 1999. No Brasil, merece ser conferido o artigo de Flávio Galdino, intitulado O Custos dos Direitos, in Legitimação dos Direitos Humanos, org. por Ricardo Lobo Torres, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
[7] Segundo o art. XXII da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, "toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade". No mesmo sentido, tem-se o art. 2º, 1, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.
[8] Os princípios, a exemplo das regras, carregam consigo acentuado grau de imperatividade, exigindo a necessária conformação de qualquer conduta aos seus ditames, o que denota o seu caráter normativo (dever ser). Sendo cogente a observância dos princípios, qualquer ato que deles destoe será inválido, conseqüência esta que representa a sanção para a inobservância de um padrão normativo cuja reverência é obrigatória. Em razão de seu maior grau de generalidade, os princípios veiculam diretivas comportamentais que devem ser aplicadas em conjunto com as regras sempre que for identificada uma hipótese que o exija, o que, a um só tempo, acarreta um dever positivo para o agente - o qual deve ter seu atuar direcionado à consecução dos valores que integram o princípio - e um dever negativo, consistente na interdição da prática de qualquer ato que se afaste de tais valores. Constatada a inexistência de regra específica, maior importância assumirão os princípios, servindo de norte à resolução do caso apreciado. Os princípios se distanciam das regras na medida em que permitem uma maior aproximação entre o direito e os valores sociais, não expressando conseqüências jurídicas que se implementam automaticamente, com a simples ocorrência de determinadas condições, o que impede sejam disciplinadas, a priori, todas as suas formas de aplicação (Cf. Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously, Massachussets: Harvard University Press, 1980, p. 24). Enquanto as regras impõem determinado padrão de conduta, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, ordenando que algo seja realizado na melhor medida possível, podendo ser cumpridos em diferentes graus (Cf. Robert Alexy, Teoria de los Derechos Fundamentales, trad. de Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 86 e seguintes), sendo que a medida de seu cumprimento dependerá tanto das possibilidades reais como também das jurídicas. A afirmação de que os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus resulta do fato de não veicularem mandados definitivos. Assim, o comando que deles inicialmente deflui pode ser afastado por razões opostas, não sendo a solução desse conflito identificada a priori, variando gradativamente conforme os valores em jogo no caso concreto.
[9] Como ressaltou Norbeto Bobbio (in A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 21), "todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem em liberdades, também os direitos sociais, que consistem em poderes". Por outro lado, não é demais lembrar que a Lei Fundamental alemã, diploma que sucedeu o nacional-socialismo de Hitler, não contemplou um rol de direitos sociais em seu texto. Esse fato, por certo, não obstou a observância desses direitos na Alemanha ou desautorizou a sólida dogmática dos direitos fundamentais cunhada pelo Tribunal Constitucional Alemão. A omissão, em verdade, tem colorido histórico: a grande distância verificada entre o extenso rol de direitos sociais contemplado na Constituição de Weimar e a sua concretização junto à classe proletária alemã foi o fertilizante adequado ao surgimento do III Reich, daí a preocupação em não se assegurar direitos que se reduziriam a um mero exercício de retórica.
[10] Cf. Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, trad. de João Batista Machado, 5ª ed., Coimbra: Armênio Amado Editor.
[11] No que concerne ao núcleo estrutural da Constituição, não merece ser acolhida a vigorosa crítica de Thomas Paine (in Los Derechos del Hombre, trad. de José Antonio Fernández de Castro e Tomás Muños Molina, México: Fondo de Cultura Económica, 1996, pp. 35/36), escrita no final do século XVIII: "nunca existió, nunca existirá y nunca podrá existir um Parlamento, ni cuerpo alguno de hombres, ni generación de éstos en ningún país, que posea el derecho o el poder de obligar y controlar a la posteridad 'hasta el fin de los tiempos', ni el de ordenar por siempre cómo haya de gobernarse el mundo, ni quién haya de gobernalo; y, en consecuencia, aquellas cláusulas, leyes o declaraciones por las cuales sua autores traten de hacer ejecutar lo que tienen el derecho ni el poder de hacer, son en sí nulas y sin ningún valor. Todas las épocas y generaciones deben ser libres y actuar por sí mismas en todos los casos em que han actuado por sí mismas las épocas y generaciones que las precedieron. La vanidad y la presunción de gobernar más allá de la tumba es la más ridícula e insolente de todas las tiranías. El hombre no tiene derecho de propiedad sobre el hombre, ni ninguna generación tiene derecho de propriedad sobre las generaciones venideras". A preservação da Constituição, como alicerce do Estado de Direito, é indispensável à própria manutenção deste, o que torna inadmissível qualquer tentativa de comprometer sua força normativa ou afastar as decisões político-fundamentais do Constituinte. Além disso, quem reforma preserva as características do objeto reformado. Não fosse assim, não se poderia falar em reforma, mas em criação. Quanto aos possíveis efeitos deletérios que poderiam advir da imutabilidade do núcleo essencial, não é demais lembrar que o mesmo poder responsável por sua edição certamente possui legitimidade para alterá-lo, sendo possível a convocação de uma Assembléia Constituinte voltada especificamente a este fim. Essa tese, sustentada por Sieyès (in A Constituinte Burguesa, trad. de Norma Azevedo, 4ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001) para afastar os óbices opostos ao processo revolucionário francês de 1789, merece ser integralmente acolhida.
[12] A emenda constitucional que não esteja em harmonia com os balizamentos do poder reformador é passível de ser impugnada via controle de constitucionalidade: STF, Pleno, ADIn nº 939-7/DF, rel. Min. Sydney Sanches, RDA nº 199/21, 1995. Esse controle pode ser deflagrado, inclusive, no curso do processo legislativo, sendo admissível a utilização do mandado de segurança para obstar o seguimento de proposta de emenda que infrinja os limites fixados pelo Constituinte: STF, Pleno, MS nº 21.642, rel. Min. Celso de Mello, RDA nº 191/200, 1993.
[13] Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 996. Na Constituição brasileira, é exemplo de limite imanente a forma republicana de governo, que, não obstante ausente do rol do art. 60, § 4º, é, indiscutivelmente, um dos alicerces fundamentais da Carta.
[14] Técnica similar já fora adotada na 9ª Emenda à Constituição Norte-Americana: "A enumeração de certos direitos na Constituição não será alegada para negar ou subestimar outros direitos que pertençam ao povo".
[15] A Proteção Internacional dos Direitos Fundamentais, Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São Paulo: Editora Saraiva, 1991, pp. 41/42.
[16] Cf. art. 1º, III, da CR/88. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, vide, de nossa autoria, “Dignidade da Pessoa Humana: Referenciais Metodológicos e Regime Jurídico”, in Revista Brasileira de Direito Constitucional nº 4/380, 2004.
[17] Neste sentido: Ingo Wolfgang Sarlet, "Os Direitos Fundamentais Sociais como 'Cláusulas Pétreas'", in Revista Interesse Público nº 17/56, 2003.
[18] O STF, prestigiando o disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição, já se pronunciou pela inconstitucionalidade material do art. 2º, § 2º, da Emenda Constitucional nº 3/93, diploma que, ao instituir o IPMF (imposto provisório sobre movimentação financeira), excepcionou a incidência do princípio (rectius: regra) da anterioridade tributária, consagrado no art. 150, III, b, da Constituição da República (Pleno, ADIn nº 939-7/DF, rel. Min. Sydney Sanches, DJU de 18/03/1994, RDA nº 198/123). Como é fácil concluir, à mingua de outras informações circunstanciais, somente verificáveis à luz de um caso concreto, não se pode afirmar que a ratio da decisão tenha sido a de prestigiar o mínimo existencial, o que demonstra o não acolhimento da tese de que existem direitos que sejam apenas formalmente fundamentais.
[19] A designação atual resultou da Resolução 548 (VI) da Assembléia Geral, que deliberou pela substituição da anterior – Declaração Universal dos Direitos do Homem - em todas as publicações das Nações Unidas.
[20] O Brasil assinou a declaração na mesma data.
[21] Ratificada pelo Brasil.
[22] Art. I.
[23] Ratificado em 24 de janeiro de 1992.
[24] Ratificada em 25 de setembro de 1992.
[25] O Protocolo foi promulgado pelo Decreto Legislativo nº 56, de 19 de abril de 1995. O Brasil depositou a ratificação na ONU em 28 de agosto de 1996.
[26] Ratificada em 24 de setembro de 1990.
[27] Publicada no Jornal Oficial em 18/12/2000, pp. 1/22.
[28] Sobre a distinção entre libertad de enseñanza e enseñanza libre no sistema espanhol, vide Lorenzo Martín-Retortillo Baquer, La Llamada Enseñanza Libre en el Ambito de la Enseñanza Universitária, in La Protección Jurídica del Ciudadano, Estúdios em Homenaje al Profesor Jesus Gonzalez Perez, Madrid: Editora Civitas, p. 1767, 1993. Em linhas gerais, a liberdade de ensino é um fator impeditivo à censura ideológica e a qualquer ato direcionador ou limitador da cátedra ou do aprendizado, assegurando a livre manifestação do pensamento. O ensino livre, por sua vez, consiste na dispensa de freqüência aos bancos universitários, bastando a matrícula e a direta submissão a exames em determinada Universidade ou, a depender da carreira (v.g.: medicina, farmácia e veterinária – art. 18 da Ley de Ordenación Universitaria, com a redação dada pela lei de 16/07/1949), com a prévia comprovação de realização dos trabalhos práticos. Esse sistema em muito se assemelha ao da livre docência, praticado no Brasil, que permite a obtenção de um título acadêmico, sem a necessária freqüência a curso destinado a esse fim, por indivíduos que possuem o grau universitário e demonstrem ter aptidão para a realização de pesquisa desassistida.
[29] Cf. Louis Favoreu et alii, Droit Constitutionnel, 6ª ed., Paris: Éditions Dalloz, 2003, pp. 828/831.
[30] Vide art. 3º da CR/88.
[31] Art. 157, § 2º, da CR/34.
[32] Art. 130 da CR/37.
[33] Art. 168, II, da CR/46.
[34] Art. 15, § 3º, da EC nº 1/69.
[35] Art. 212 da CR/88. Não observado o preceito constitucional, será possível, a teor dos arts. 34, VII, e, e 35, III, a intervenção da União nos Estados e destes nos Municípios.
[36] Art. 211, §§ 2º e 3º. A ação prioritária dos Municípios é reforçada pelo art. 30, VI, que dispõe ser competência desses entes "manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental".
[37] A União, no uso de sua competência, editou a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que teve, como últimas modificações, aquelas introduzidas pela Lei nº 10.709, de 31 de julho de 2003 (DOU de 1º/08/03).
[38] Ainda que se trate de norma de repetição obrigatória, o STF já decidiu pela possibilidade de controle concentrado de constitucionalidade das leis estaduais e municipais, face à Constituição Estadual, junto ao Tribunal de Justiça: "Reclamação com fundamento na preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos constitucionais federais de observância obrigatória pelos Estados. Eficácia jurídica desses dispositivos constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos Estados-membros. Admissão da propositura de ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, com a possibilidade de recurso extraordinário se a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente" (RTJ nº 147/404).
[39] Vide art. 25 da CR/88.
[40] Como observa Marcos Maselli Gouvêa (O Controle Judicial das Omissões Administrativas, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 80), o direito ao ensino fundamental compreende a implementação dos programas suplementares referidos no art. 208, V, da Constituição (material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde), fazendo com que, verificada sua ausência, a oferta do ensino seja considerada irregular.
[41] Celso Antônio Bandeira de Mello (Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social, in Revista de Direito Social nº 7/137, 2002 - Memória Histórica), analisando o art. 176, § 1º, III, da Carta de 1969, já se manifestara no mesmo sentido.
[42] Segundo o art. 21 da Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), "a educação escolar compõem-se de: I- educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e médio; II- educação superior." A educação infantil tem por finalidade o desenvolvimento da criança até seis anos de idade (art. 29), o ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, terá por objetivo a formação básica do cidadão (art. 32) e o ensino médio, com duração mínima de três anos, é a última etapa da educação básica.
[43] Sobre os contornos do pluralismo e a necessária tolerância que deve reger as porções sociais que prestigiem dogmas divergentes e quiçá contrapostos, vide Gisele Cittadino, Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2000, principalmente pp. 75/96.
[44] Aurélio Buarque de Holanda, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 11ª ed., 12ª tiragem, Rio de Janeiro: Arquivo Gamma Editorial.
[45] Improbidade Administrativa, 1ª parte, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 2004.
[46] Cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 575/576.
[47] Teoría de los Derechos Fundamentales..., p. 92.
[48] Cf. Robert Alexy, ob. cit., p. 94.
[49] “Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais do Estado de Direito Democrático” (RDA 217/78, 1999). Em outra oportunidade, observou Alexy que "essa estrutura elementar mostra o que céticos, acerca da ponderação, radicais como, por exemplo, Schlink, devem contestar, quando dizem que nos 'exames da proporcionalidade em sentido estrito ... somente a subjetividade do examinador' tem 'efeito' e que 'as operações de valoração e ponderação do exame da proporcionalidade em sentido estrito... devem' ser 'efetuadas somente por decisão não-fundamentada'. Eles devem contestar que sentenças racionais sobre intensidades de intervenção e graus de importância são possíveis. Pois bem. Mas facilmente se deixam encontrar exemplos, nos quais tais sentenças sem mais podem ser tomadas. Assim, é dever dos produtores de artigos de tabacaria colocar em seus produtos alusão a perigos à saúde - uma intervenção relativamente leve na liberdade de profissão. Uma intervenção grave seria, pelo contrário, uma proibição total de todos os produtos de tabacaria. No meio disso deixam-se classificar casos de intensidade de intervenção mediana. Dessa forma, nasce uma escala com os graus 'leve', 'médio' e 'grave'. O exemplo mostra que associações válidas a esses graus são possíveis. O mesmo vale para as razões em sentido contrário. Os perigos à saúde unidos ao fumo são altos. As razões de intervenção pesam, por conseguinte, gravemente. Se, desse modo, está determinada a intensidade da intervenção como leve e o grau de importância da razão de intervenção como alto, então o resultado da ponderação, como o tribunal constitucional federal observa em sua decisão sobre alusão à advertência, é 'manifesto' (BverfGE 95, 173, 187). A razão de intervenção grave justifica a intervenção leve" (in "Direito constitucional e direito ordinário. Jurisdição constitucional e jurisdição especializada", RT nº 799/43, 2002).
[50] Teoria..., pp. 95 e ss. Outros exemplos de ponderação de bens colhidos na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal e do Supremo Tribunal Federal da Alemanha, devidamente comentados, podem ser colhidos em Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 574/587.
[51] No Brasil, ainda que não expressamente invocada, a técnica da ponderação de interesses é constantemente utilizada. Neste sentido, merece ser lembrada a decisão proferida pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 21/02/2002, a Reclamação nº 2.040/DF. Tratava-se de cantora mexicana que se encontrava detida na carceragem da Polícia Federal aguardando o desfecho do processo em que o Governo Mexicano pleiteava a sua extradição. Neste período, a extraditanda engravidou, tendo afirmado que fora vítima de estupro realizado pelos policias responsáveis pela sua custódia. Ante a negativa de todos os policias envolvidos e o iminente descrédito da Instituição, a Corte autorizou, contra a vontade expressa da extraditanda, a utilização de material biológico da placenta para a realização de exame de DNA. Na ocasião, sendo vencido o Min. Marco Aurélio, afirmou-se que a ponderação entre os valores constitucionais contrapostos, quais sejam, o direito à intimidade e à vida privada da extraditanda, e o direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal como instituição - atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgada pelos meios de comunicação - indicava que deveria prevalecer o esclarecimento da verdade. Frisou-se, ainda, que o exame de DNA seria realizado sem invasão da integridade física da extraditanda e de seu filho. Ao final, demonstrou-se a inverdade das declarações, sendo outro detento, antigo namorado da extraditanda, o pai de seu filho.
[52] Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
[53] Ob. cit., p. 262.
[54] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 384.
[55] Considerando os estreitos limites deste arrazoado, não adentraremos à polêmica estabelecida entre as teorias negativas, que negam a existência dos direitos subjetivos, pois toda prerrogativa decorreria da norma, independendo da vontade do indivíduo, cabendo a este, unicamente, usufruir das suas conseqüências caso presente uma situação jurídica que o autorize (Leon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, Tome I, 3ª ed., Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie. Éditeurs E. de Boccard, 1927, Capítulo II, especialmente pp. 274 e ss.) ou aplicar a norma individual, criada pela declaração de vontade legitimada por delegação do Estado (Kelsen, Teoria Pura do Direito, trad. de João Batista Machado, 5ª ed., Coimbra: Armênio Amado Editor, 1979). As teorias afirmativas, por sua vez, capitaneadas, dentre outros, por Savigny (Traité de Droit Romain, Tome 1, trad. por M. CH. Guenoux, Paris: Firmein Didot Frères Librairie, 1840), apesar de não destoarem quanto à existência do direito subjetivo, divergem quanto à importância da vontade na sua integração. No direito pátrio, uma síntese das diferentes teorias pode ser encontrada em Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, vol. 2, 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, pp. 479 usque 566.
[56] Não se deve confundir direito subjetivo com faculdade e qualidade jurídica. Enquanto os direitos subjetivos são caracterizados pela possibilidade de exigir o cumprimento de um dever jurídico por parte de outrem, as faculdades jurídicas, também designadas de direitos potestativos, independem da existência de um dever que recaia sobre outra pessoa, sendo a aptidão reconhecida na norma para que determinado ato produza efeitos jurídicos (v.g.: a faculdade de casar, de contratar, de testar etc.). Quanto à qualidade jurídica, indica ela os atributos de que o indivíduo se encontra revestido e que lhe permitem praticar certos atos jurídicos (v.g.: o status de cidadania, de família - casado, solteiro ... - etc.). São os pressupostos para o exercício de um direito ou de uma faculdade jurídica. Para maior desenvolvimento do tema, vide San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil, Parte Geral, 4ª tiragem, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, pp. 151 usque 154.
[57] Na conhecida fonte romana: "hominum causa omne ius constitutum est" (Digesto, Livro I, tit. V. fr. 1).
[58] Cf. André Decocq, Essai d'une Théorie Générale des Droits sur la Personne, Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence R. Pichon et R. Durand-Auzias, 1960, p. 99, que realça a desproporção entre os interesses medíocres que se busca satisfazer e os danos causados à conservação da pessoa.
[59] Fala-se em direitos absolutos quando são oponíveis à generalidade das pessoas e em direitos relativos quando o dever jurídico é imposto tão-somente a determinadas pessoas.
[60] Na conhecida lição de Carnelutti (Sistema de Direito Processual Civil, vol. II, trad. por Hiltomar Martins Oliveira, 1ª ed., São Paulo: Classic Book Editora e Distribuidora de Livros Ltda., 2000, p. 30), pretensão é a exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio.
[61] Em artigo intitulado "Da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos contribuintes", publicado na Revista de Direito do MPRJ nº 11/367, assim nos pronunciamos sobre a defesa de direitos afetos ao grupamento: "Inicialmente, cumpre dizer que a análise do tema pressupõe a abstração da clássica visão privatista da relação processual, adstrita à esfera de direitos eminentemente individuais. Assim, deve ser sedimentado o ideal de efetividade do processo, possibilitando a transcendência do individual ao coletivo, com o conseqüente desprendimento da doutrina liberal-individualista. Nas ações coletivas, o objeto mediato, diferentemente das ações de caráter privado, não concerne especificamente ao dominus litis, o qual ocupa a condição de ideological plainiff, a exemplo do que ocorre nas class actions do direito norte-americano. Os efeitos da decisão proferida, em última ratio, refletirão em cada um dos membros do organismo social cuja situação fática e jurídica se subsuma àquela deduzida na causa de pedir da ação civil pública. A legitimidade conferida ao Ministério Público e aos demais substitutos processuais possibilita a condensação do pólo ativo da relação processual, evitando-se que todos os titulares individuais da facultas agendi compareçam em juízo para auferir os mesmos efeitos que advirão da ação civil pública.
[62] Como frisou Ricardo Lobo Torres (in Os Direitos Humanos e a Tributação – Imunidades e Isonomia, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1995, p. 161), “a elevação do direito à educação como subjetivo público confere-lhe o status de direito fundamental, mínimo existencial, arcando o Estado, nos limites propostos, com prestações positivas e igualitárias, cabendo a este, também, através de sua função jurisdicional, garantir-lhes a execução”.
[63] Art. 33, 2, da Constituição Italiana de 1947.
[64] Manuale di Diritto Costituzionale, Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2002, pp. 208/212.
[65] Cf. Francisco Balaguer Callejón et alii, Derecho Constitucional, 2a ed., Madrid: Editorial Tecnos, 2003, p. 269.
[66] Antônio Augusto Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos Direitos Fundamentais, Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São Paulo: Editora Saraiva, 1991, p. 42.
[67] Da preeminência normativa da Constituição decorre a idéia de filtragem constitucional. Como lembrado por Paulo Ricardo Schier (Filtragem Constitucional, Construindo uma Nova Dogmática Jurídica, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 25), repetindo a lição de Canotilho e Vital Moreira, "diante da força normativa da Constituição, todo o ordenamento jurídico estatal deve ser lido sob a ótica da axiologia, materialidade e juridicidade constitucional". Em seguida, acrescenta o autor que, "a partir da perspectiva da filtragem constitucional, surge a necessidade de se buscar uma inter-relação axiológica visando a unidade sistemática e a efetiva realização dos valores estabelecidos no pacto fundador diante do direito infraconstitucional (fenômeno conhecido como constitucionalização do direito infraconstitucional)".
[68] O mínimo existencial já foi objeto, inclusive, de previsão normativa. Nesse sentido, vale mencionar o art. 1º da Lei nº 8.742/93, que trata da assistência social, in verbis: “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.”
[69] Vide Ricardo Lobo Torres, "A Legitimação dos Direitos Humanos e os Princípios da Ponderação e da Razoabilidade", in Legitimação dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 397. Segundo o autor, a legitimação do Estado e do ordenamento Jurídico é o processo de julgamento de suas qualidades e de sua validade ética, exigindo "uma razão existente fora do sistema jurídico, o qual não pode se legitimar a si próprio". Ao final, conclui que a legitimação "funda-se no neocontratualismo e na afirmação procedimental da liberdade, da justiça e da segurança jurídica, o que postula a intermediação dos princípios formais da ponderação e da razoabilidade, entre outros. O Estado Democrático de Direito legitima-se, enfim, pela ponderação e pela razoabilidade presentes no elenco dos princípios fundamentais (art. 1º da CF), e dos princípios vinculados à liberdade, à justiça e à segurança (arts. 5º, 6º, 7º, 150, 170, 195, 196, 208)".
[70] A importância do direito à educação foi bem enunciada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros no voto proferido no Recurso Especial nº 212.961/MG: "é a própria Constituição Federal que insere a educação no rol dos direitos sociais. Em verdade, educação é o primeiro dos direitos sociais, não apenas na enunciação constitucional, como na ordem natural das coisas. Com efeito, onde há educação, existe saúde, saúde gera trabalho, trabalho pede lazer e assim por diante. Em recente pronunciamento, notável economista não vacilou em dizer: 'houvesse apenas um real em caixa, eu não vacilaria em destiná-lo à educação'" (STJ, 1ª T., j. em 15/08/2000, DJ de 18/09/2000).
[71] Discorrendo sobre as reformas constitucionais e o papel da Suprema Corte como exemplo de razão pública, observa John Rawls (in O Liberalismo Político, trad. de Dinah de Abreu Azevedo, 2ª ed., 2ª impressão, São Paulo: Editora Ática, 2000, pp. 289/290) que uma emenda não é apenas uma alteração. Segundo ele, "uma forma de entender uma emenda é ajustar valores constitucionais básicos a circunstâncias políticas e sociais em processo de transformação, ou incorporar à constituição um entendimento mais amplo e mais abrangente desses valores". (...) "Outra finalidade das emendas é ajustar as instituições básicas, a fim de eliminar pontos fracos que vêm à luz na prática constitucional subseqüente. A Suprema Corte poderia dizer, então, que uma emenda que derrogue a Primeira Emenda e a substitua por seu oposto contradiz fundamentalmente a tradição constitucional do mais antigo regime democrático do mundo. Portanto, não tem validade. Isso significa que a Carta de Direitos e outras emendas são cláusulas pétreas? Elas o são no sentido de serem validadas por longa prática histórica. Podem ser emendadas segundo as formas mencionadas acima, mas não simplesmente rejeitadas e revogadas. Se isso acontecesse, e não seria inconstitucional que o exercício do poder político chegasse a esse ponto, tal representaria um colapso constitucional, ou uma revolução em seu sentido pleno, e não uma emenda válida da constituição. A prática bem-sucedida de suas idéias e princípios ao longo de dois séculos impõe restrições ao que agora pode ser considerado uma emenda, o que quer que tenha sido verdadeiro no início".
[72] Na doutrina, Jorge Miranda, discorrendo sobre o “não retorno da concretização” ou “proibição de retrocesso”, observa que as normas legais concretizadoras das normas constitucionais a elas se integram, não sendo possível a sua simples eliminação, isto sob pena de retirar a eficácia jurídica das normas constitucionais correlatas (Manual de Direito..., Tomo IV, pp. 397/399). Além disso, a proibição de retrocesso funda-se também no princípio da confiança inerente ao Estado de Direito. Ressalta, no entanto, que esse entendimento não visa à equiparação entre normas constitucionais e legais, pois estas continuam passíveis de alteração ou revogação; o que se pretende é evitar a ab-rogação, pura e simples, de normas legais que conferem efetividade às constitucionais e “com elas formam uma unidade de sistema”. Gomes Canotilho afirma que “a liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado, sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana (cf. Ac. 509/2002, DR, I 12/2/2003)” - Direito Constitucional..., pp. 338/340. Favoreu et alii reconhecem que o legislador pode modificar as normas voltadas à salvaguarda da dignidade humana, mas não pode por em causa os aspectos materiais já consolidados (Droit Constitutionnel..., p. 780). Uma análise da proibição de retrocesso no Direito Constitucional germânico pode ser encontrada em artigo de Ingo Wolfgang Sarlet, intitulado "O Estado Social de Direito, A Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade", Revista de Direito Social nº 3/28, 2001.
[73] Como consectário da natureza do serviço, Hely Lopes Meirelles (in Direito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, pp. 294/295) há muito afirmava que "os direitos do usuário são hoje reconhecidos em qualquer serviço público ou de utilidade pública, como fundamento para a exigibilidade de sua prestação nas condições regulamentares e em igualdade com os demais utentes. São direitos cívicos, de conteúdo positivo consistente no poder de exigir da Administração ou de seu delegado o serviço a que um ou outro se obrigou a prestar individualmente aos usuários. São direitos públicos subjetivos de exercício pessoal, quando se tratar de serviço uti singuli e o usuário estiver na área de sua prestação. Tais direitos rendem ensejo às ações correspondentes, inclusive mandado de segurança, conforme seja a prestação a exigir ou a lesão a reparar judicialmente".
[74] De acordo com o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, Toute societé dans laquelle la garantie des Droits n’ est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’ a point de constitution (Toda a sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação de poderes determinada, não possui Constituição). “Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor” (Montesquieu, L’Esprit des Lois). Na conhecida sentença de Lord Acton, "todo o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente".
[75] Cf. Francis Hamon et alii, Droit Constitutionnel, 27ª ed., Paris: Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 2001, p. 93.
[76] Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, vol. III, Rio de Janeiro: Henrique Cahen Editor, 1947, p. 307.
[77] Para maior desenvolvimento do tema, vide, de nossa autoria, “Princípio da Separação dos Poderes: Os Órgãos Jurisdicionais e a Concreção dos Direitos Sociais”, in Revista da EMERJ nº 30/129, 2005.
[78] Na dicção do art. 333, II, do Código de Processo Civil, incumbe ao réu o ônus da prova "quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".
[79] Neste sentido: Eros Roberto Grau, Parecer: "Despesa Pública - Conflito entre princípios e eficácia das regras jurídicas - o princípio da sujeição da administração às decisões do Poder Judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública", in Revista Trimestral de Direito Público nº 2/130. Após estabelecer a distinção entre regras e princípios jurídicos, afirma o autor que as decisões do Poder Judiciário em matéria de direitos sociais devem prevalecer em relação às regras constitucionais que traçam a disciplina orçamentária. Segundo ele, o conflito entre os princípio da sujeição das administração às decisões do Poder Judiciário e o princípio da legalidade da despesa pública se resolve com o afastamento deste e a momentânea perda de eficácia de todas as regras a ele vinculadas.
[80] Segundo o art. 4º da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução XLIV da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1989, "os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas, administrativas, legislativas e outras, para a implementação dos direitos reconhecidos nesta Convenção. Com relação aos direitos econômicos, sociais e culturais, os Estados Partes tomarão tais medidas no alcance máximo de seus recursos disponíveis, e quando necessário, no âmbito da cooperação internacional". Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica)[80], adotada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada em 22 de novembro de 1969, em San José de Costa Rica, ao tratar do desenvolvimento progressivo, dispôs, em seu art. 26, que "os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados". Preceito similar a este último foi repetido no art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), adotado no XVIII Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizado na Cidade de San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1988.
[81] Ana Paula de Barcellos (Educação, Constituição, Democracia e Recursos Públicos, in Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro nº XII/35, 2002) acena com a possibilidade de aplicação do disposto no art. 213, § 1º, da Constituição da República, que, ao tratar dos recursos públicos destinados às escolas de igual natureza, dispõe que "os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade". Segundo a autora, a ausência de lei específica não impede a utilização do preceito pelo Poder Judiciário, pois a sua ratio é evitar a utilização desarrazoada de recursos públicos, os quais deixariam de ser investidos nas redes de ensino. Com a intermediação do Poder Judiciário, esse óbice é afastado, com a conseqüente prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana. "A exigência de lei prévia, portanto, dirige-se ao Executivo, não ao Judiciário", logo, nada impediria a condenação do Estado a custear o estudo dos que necessitam dessa prestação em escola privada. Sugere, ainda, maiores reflexões sobre a possibilidade de se compensar o valor a ser gasto pela escola particular com débitos tributários devidos por ela ao ente público, pois também aqui é exigida lei específica autorizando a compensação (arts. 156 e 170 do Código Tributário Nacional).
[82] Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 393.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. O Direito à Educação e suas Perspectivas de Efetividade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2009, 09:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18463/o-direito-a-educacao-e-suas-perspectivas-de-efetividade. Acesso em: 22 nov 2024.
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