Co-autor: Rafael Kliemke dos Santos: Advogado do Escritório Amaral e Nicolau advogados desde 2008; formado pela UNIP em 2005; advogou para AES Eletropaulo; pós graduando da Escola Paulistra de Direito.
Introdução
Contratos são negócios jurídicos, dependentes de pelo menos duas atitudes, de pessoas diferentes, praticados por força de necessidades ou desejos.
Evidente que não basta a necessidade e/ou desejo para satisfazê-lo, é mister que declaremos nossa vontade, sendo este o meio condutor que nos leva à realização de nossas necessidades ou desejos, originando a formação do contrato.
Assim, em razão das constantes modificações trazidas pelo mundo moderno, o Código Civil de 2002 trouxe a baila fortes fundações, das quais uma será objeto do presente estudo, a saber, a Função Social do Contrato.
Um dos pontos altos de tais modificações está no artigo 421 do Código Civil Brasileiro, o qual determina que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, sendo que tal mandamento resulta do artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal de 1988.
Porém, antes de comentar sobre a Função social dos contratos, se faz necessário comentarmos sobre outras duas funções, a econômica e a pedagógica, as quais estão diretamente ligadas ao tema.
A função econômica auxilia no processo de circulação de riqueza, sendo que, por meio destes contratos é que os produtos circulam pelas várias etapas da produção.
Pode-se dizer que a função pedagógica dos contratos é o meio de civilização, de educação do povo para a vida em sociedade. Neste caso, as cláusulas contratuais dão aos contratantes noção de respeito ao outro e a si mesmos, visto que, afinal, empenharam sua própria palavra, onde as partes estipulam deveres e direitos, através de cláusulas que passam a vigorar entre elas.
A função social é como uma síntese das duas funções mencionadas acima. Os contratos são fenômenos econômico-sociais e, sua importância, seja econômica, seja social, salta aos olhos. Trata-se de um meio de distribuição de riquezas, distribuição de renda, geram empregos, promovem a dignidade humana, ensinam as pessoas a viver em sociedade, a respeitar os direitos dos outros. Em síntese, esta seria a função social dos contratos, promover o bem-estar e a dignidade dos homens, por todas as razões econômicas e pedagógicas mencionadas acima. A função não serve apenas para limitar o exercício do direito, mas antes de tudo, para promover a dignidade humana.
Portanto, tal princípio deve reger todas as relações contratuais celebradas sob a égide da nova Lei, servindo ainda de parâmetro para interpretação dos antigos pactos celebrados sob a vigência do Código Bevilaqüa.
Muito ainda se discute sobre a origem deste princípio, sendo certo que este ponto não será abordado no presente, devido à extensão do assunto, que impossibilitaria tratá-lo em poucas laudas.
Feito os comentários iniciais, passamos a análise propriamente dita do instituto.
Da Função Social do Contrato
Tal conceito está previsto no art. 421 do Código Civil Brasileiro, o qual advém da função social da propriedade, assim como do principio da dignidade da pessoa humana, os quais mitigaram o princípio da pacta sunt servanda.
Tal artigo atrelou o princípio da autonomia da vontade ao da socialidade, uma vez que a liberdade de contratar é limitada pela função social, limitando o arbítrio dos contratantes e criando condições para o equilíbrio econômico-contratual.
Ressalta-se que não podemos interpretar equivocadamente o princípio da obrigatoriedade decorrente da autonomia da vontade, uma vez que tal princípio não foi eliminado, foi apenas atenuado, tendo seu alcance reduzido quando presentes interesses meta-individuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana[1].
Podemos concluir então que o princípio da função social apenas mitiga o rigor do preceito expresso pela pacta sunt servanda, mesmo porque, havendo a eliminação de tal princípio, as relações negociais estariam cercadas da mais absoluta insegurança jurídica.
Importante lembrar que o princípio da função social do contrato não será aplicável somente nos contratos de abrangência coletiva, mas em toda avença na qual exista vulneração da dignidade humana, sendo congênere dos princípios da função social da propriedade, da boa-fé, da vedação ao abuso do direito e do enriquecimento sem causa, positivados no Código Civil.
A função social instrumentaliza-se pelos princípios do equilíbrio contratual e da boa-fé objetiva, sendo que o contrato não pode mais ser visto pela ótica meramente individualista, já que possui um sentido social para toda comunidade.
Atualmente o contrato é interpretado como uma relação complexa, gerando efeitos não somente entre os contratantes, mas em toda a sociedade, possuindo eficácia “erga omnes”.
A função social estatui que tais contratos, não podem ser transformados em um instrumento para atividades abusivas, causando danos a terceiros.
O contrato deve respeitar a sociedade, assim como a sociedade deve respeitar o contrato, como nos ensina o Professor Miguel Reale:
O que o imperativo da “função social do contrato” estatui é que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do Art. 187, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Não há razão alguma para se sustentar que o contrato deva atender tão somente aos interesses das partes que o estipulam, porque ele, por sua própria finalidade, exerce uma função social inerente ao poder negocial que é uma das fontes do direito, ao lado da legal, da jurisprudencial e da consuetudinária.
O ato de contratar corresponde ao valor da livre iniciativa, erigida pela Constituição de 1988 a um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito, logo no Inciso IV do Art. 1º, de caráter manifestamente preambular.
Assim sendo, é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público.
Como uma das formas de constitucionalização do Direito Privado, temos o § 4º do Art. 173 da Constituição, que não admite negócio jurídico que implique abuso do poder econômico que vise a dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Esse é um caso extremo de limitação do poder negocial, não sendo possível excluir outras hipóteses de seu exercício abusivo, tão fértil é a imaginação em conceber situações de inadmissível privilégio para os que contratam, ou então, para um só deles.
É em todos os casos em que ilicitamente se extrapola do normal objetivo das avenças que é dado ao juiz ir além da mera apreciação dos alegados direitos dos contratantes, para verificar se não está em jogo algum valor social que deva ser preservado.
Como se vê, a atribuição de função social ao contrato não vem impedir que as pessoas naturais ou jurídicas livremente o concluam, tendo em vista a realização dos mais diversos valores. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas represente um de seus meios primordiais de afirmação e desenvolvimento...”[2]
A visão do contrato como um negócio de eficácia jurídica inter parts é algo ultrapassado, sendo que o contrato não pode ser objeto de um abuso de direito, devendo ser respeitado por toda a sociedade que se encontra em torno dele.
O Código Civil, não ficou a margem da indispensável necessidade de integrar o contrato na sociedade como meio de realizar os fins sociais, pois determinou que a liberdade contratual deve ser exercida em razão e nos limites da função social dos contrato. A ausência desta função é causa de anulação do contrato na atual ordem civil.
A interpretação do contrato é realizada sob a égide deste princípio, sendo inclusive motivo para se manter cláusulas que seriam tidas como abusivas, ou mesmo revogar outras que poderiam ser consideradas normais, sem qualquer abusividade aparente.
Neste sentido, colacionamos julgado do Colendo Superior Tribunal de Justiça.
DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. CONCEITO DE CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA. EXCEPCIONALIDADE. NÃO CONSTATAÇÃO NA HIPÓTESE DOS AUTOS. FORO DE ELEIÇÃO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. REJEIÇÃO.
- A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de somente admitir a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária excepcionalmente, quando evidenciada a sua vulnerabilidade no caso concreto; ou por equiparação, nas situações previstas pelos arts. 17 e 29 do CDC.
- Mesmo nas hipóteses de aplicação imediata do CDC, a jurisprudência do STJ entende que deve prevalecer o foro de eleição quando verificado o expressivo porte financeiro ou econômico da pessoa tida por consumidora ou do contrato celebrado entre as partes.
- É lícita a cláusula de eleição de foro, seja pela ausência de vulnerabilidade, seja porque o contrato cumpre sua função social e não ofende a boa-fé objetiva das partes, nem tampouco dele resulte inviabilidade ou especial dificuldade de acesso à Justiça.
Recurso especial não conhecido. Processo REsp 684613 / SP; RECURSO ESPECIAL 2004/0120460-3 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) Órgão JulgadorT3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 21/06/2005 Data da Publicação/Fonte DJ 01.07.2005 p.530 RDDP vol. 30 p. 135
Este princípio ainda fundamenta a chamada Teoria do Adimplemento Substancial, a qual dispõe que um contrato adimplindo de forma parcial, pode ser considerado totalmente adimplido, caso alcance sua função social.
Neste sentido leciona Ruy Rosado de Aguiar a prestação imperfeita, mas significativa de adimplemento substancial da obrigação, por parte do devedor, autoriza pedido de indenização, porém não de resolução [3]
Conclusão
Vemos a modernização do direito civil, o qual deixou de priorizar o patrimônio, passando a tutelar a dignidade da pessoa humana, seguindo assim os estritos mandamentos constitucionais.
A função social do contrato se configura um grande avanço no direito civil, sendo certo que esta regra busca tornar o direito um instrumento de justiça, retirando o gesso que envolvia o contrato, representado pelo superado principio da “pacta sunt servanda”.
Esta obra se destinou a realizar uma sucinta explanação deste instituto tão complexo e essencial para a nova ordem civil, instituído a partir do advento da nova Carta Maior.
Aguiar Júnior, R. R. (2000). Projeto do Código Civil: extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). São Paulo: RT.
Godoy, C. L. (2007). Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva.
Fiuza, César (2009). Direito Civil Curso Completo, 13ª Ed. Del Rey, Belo Horizonte.
Santos; Antonio Jeová (2002). Função Social, Lesão e Onerosidade Excessiva nos contratos: São Paulo, Ed. Método.
Reale, M. (s.d.). Acesso em 01 de julho de 2008, disponível em Miguel Reale: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm
[1] Enunciado número 23 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
[2] Miguel Reale, site: http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm, obtida às 16h30 do dia 01/07/2009.
[3] Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Projeto do Código Civil: extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução) , RT, São Paulo, 2000
Estudante do 5º ano de Direito da Faculdade Mackenzie - Estagiário de direito, área de direito imobiliário, do escritório Amaral e Nicolau advogados, desde out/2007; Estagiou de out/06 a jun/07 no Fórum Trabalhista Ruy Barbosa
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCONDES, Carlos Eugênio Novaes. A função social do contrato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2009, 09:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18923/a-funcao-social-do-contrato. Acesso em: 23 dez 2024.
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