Introdução
É princípio basilar de que o Estado, em especial na esfera do direito penal, somente deverá atuar na proteção dos bens jurídicos considerados mais relevantes para o indivíduo. Neste contexto, emerge o princípio da fragmentariedade (ou intervenção mínima), diretamente relacionado ao postulado da insignificância.
Inexiste qualquer definição legal do princípio da insignificância, o que resulta apenas de intensas discussões doutrinárias e jurisprudenciais. Até hoje, contudo, os estudiosos do direito ainda não chegaram a uma conceituação clara e pacífica do instituto, bem como divergem acerca dos casos de sua respectiva aplicabilidade.
O presente estudo não tem a pretensão de apresentar soluções definidas, mas tão somente questionar casos díspares, julgados sob a mesma ótica do crime de bagatela.
O princípio da insignificância
Em linhas gerais, para que um fato seja considerado crime, é preciso que seja típico e antijurídico e seu agente, culpável.
O princípio da insignificância se relaciona à hipótese em que uma conduta penalmente tipificada e, em tese grave e ofensora aos princípios legais, num caso concreto, dada à irrelevância de sua conseqüência, não mereceria ser apenada. Suas origens remontam os estudos de Klaus Roxin na Alemanha, tendo, no Brasil, disseminado sua aplicação na década de 1990, sob a denominação do “crime de bagatela”.
Um fato praticado por um agente culpável se amoldaria perfeitamente à descrição típica, mas não receberia reprimenda do direito penal, posto que relacionado à quantidade sem valor, coisa inútil ou qualidade que nada significa.
Nos dizeres de Daiane Pimenta (2008):
O princípio da insignificância repousa no princípio maior de que é inconcebível um delito sem ofensa: nullum crimen sine iniuria. Ele pressupõe o princípio da "utilidade penal", onde só é idôneo punir quando a conduta for efetivamente lesiva a terceiros. Assim, consideram-se atípicas as ações ou omissões que, dada a sua irrelevância, ofendem infimamente um bem juridicamente protegido, só podendo justificar a punição as condutas efetivamente lesivas.
Complementados por Maria Helena Diniz (2005, p. 837):
Princípio em que, por ser o resultado do delito irrelevante quanto ao dano ou perigo ao bem juridicamente tutelado, não há crime, por haver excludente de tipicidade, ou seja, o fato não pode ser subsumido ao comando legal.
O aspecto social do tema também é deveras importante, haja vista que, não se poderia abarrotar a justiça com crimes insignificantes enquanto o Estado (e todo o seu aparelho repressor) sofre com as mazelas tão conhecidas (superlotação, lentidão, etc). Consoante Elaine Cruz dos Santos (2006):
Soma-se ainda (...) o aspecto eminentemente social do tema, pois em um país onde se incrimina desvairadamente e abarrota-se a justiça com crimes insignificantes esta, ao invés de buscar punir os crimes de grande lesividade se vê tendo que movimentar todo o caro aparelho repressor do Estado para punir por exemplo o furto de um pedaço de queijo ou um levíssimo arranhão, quando se deveria estar atuando para coibir as condutas que realmente põe em perigo a paz social.
Até hoje é controversa a admissibilidade do princípio da insignificância, subsistindo estudiosos que entendem não existir qualquer autorização no Código Penal para a sua respectiva aplicação. Por Aristides Medeiros (2005):
Não há no Código Penal nenhum dispositivo que autorize o juiz a absolver alguém fazendo-o pela simples e tão só circunstância de que o crime por si praticado terá ocasionado insignificante lesão a bem jurídico, sem qualquer relevância social. (...) Induvidoso é que, se na tipificação legal não há menção a extremo mínimo a ser considerado (como verbi gratia, no caso de furto), não pode o intérprete sponte própria estabelecer algum.
A seu turno, para os defensores de sua existência, o direito penal, na esteira da fragmentariedade, deveria equacionar a relevância da lesão ao bem jurídico, perfazendo, além do juízo de tipicidade formal, um juízo de tipicidade material. Uma vez sendo a conduta típica, mas formalmente desprezível, não haveria tipicidade material. Nas palavras de Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar (2004):
Tal é o princípio da insignificância ou bagatela, segundo o qual para que uma conduta seja considerada criminosa, pelo menos em um primeiro momento, é preciso que se faça, além do juízo de tipicidade formal (a adequação do fato ao tipo descrito em lei), também o juízo de tipicidade material, isto é, a verificação da ocorrência do pressuposto básico da incidência da lei penal, ou seja, a lesão significativa a bens jurídicos relevantes da sociedade. Caso a conduta, apesar de formalmente típica, venha a lesar de modo desprezível o bem jurídico protegido, não há que se falar em tipicidade material, o que transforma o comportamento em atípico, ou seja, indiferente ao Direito Penal e incapaz de gerar condenação ou mesmo de dar início à persecução penal.
O princípio da insignificância como causa de absolvição
Não obstante à resistência de parcela dos estudiosos pátrios e à falta de previsão expressa no rol do artigo 386 do Código de Processo Penal, em muitos casos, o princípio da insignificância é reconhecido como causa de absolvição. Fundamenta-se que seria inadmissível um antagonismo entre a letra da lei e o direito.
Para Luiz Régis Prado (2002), o postulado atuaria como causa de exclusão da imputação objetiva do resultado, enquanto que, para Cézar Roberto Bitencourt (2006), hipótese de exclusão do injusto típico.
Uma corrente doutrinária chega a afirmar que o agente praticante da ofensa insignificante não poderia ser preso em flagrante nem denunciado e que, caso o fosse, seria cabível a impetração de habeas corpus para o trancamento da ação penal.
Em recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (HC 98.152-6, Minas Gerais), o Ministro Celso de Mello, em seu voto, absolveu um réu em caso de tentativa de furto de pequeno valor e, diante da inexpressividade da conduta, reconheceu a sua atipicidade. Superou-se o anterior posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual, o princípio da insignificância não implicava em absolvição, mas tão somente em extinção da punibilidade do ato. Com o reconhecimento da atipicidade do ato, são excluídos todos os efeitos processuais decorrentes da ação penal.
Pedimos vênia para transcrever uma passagem da referida decisão:
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial.
Requisitos para a caracterização e a incidência do princípio da insignificância
O Ministro Celso de Mello, ao preconizar que “o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes, não represente, por isso mesmo, perigo importante”, elencou quatro requisitos para a caracterização e a incidência do princípio da insignificância, quais sejam:
1) Mínima ofensividade da conduta do agente;
2) Nenhuma periculosidade social da ação;
3) Reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
4) Inexpressividade da lesão provocada.
Em suma, tais requisitos evidenciam que todas as vezes em que o bem jurídico tutelado sofreu uma ínfima afetação, bem como o agente não oferece qualquer perigo social, haveria a incidência do postulado da bagatela.
Algumas situações se tornaram muito conhecidas em nossa jurisprudência, como os de furtos de chocolates, latas de salsicha, etc.
A jurisprudência e o princípio da insignificância
É de conhecimento amplo que os casos de pequenos furtos têm abarrotado o Supremo Tribunal Federal. Os tribunais inferiores não têm reconhecido a incidência do princípio da insignificância. Fatos tidos como “banais” (tais como furtos de chicletes e sabonetes) têm chegado constantemente às mãos dos ministros da Suprema Corte.
No Pretório Excelso, os antecedentes criminais e o furto de supérfluos têm atuado como motivos para o afastamento da aplicação do postulado, enquanto que os requisitos supramencionados, como causas autorizadoras da respectiva aplicação.
A seu turno, no Superior Tribunal de Justiça, a situação econômica do réu tem sido considerada como condição determinante para a incidência, muito embora não se questione muito acerca da reincidência do agente. Recentemente, um homem foi inocentado pelo furto de um boné e uma mulher, pelo furto de dois hidratantes.
Preocupa-se em preservar o princípio da intervenção mínima, mas, ao mesmo tempo, impedir que a insignificância crie a pecha de impunidade e incentive a prática de grandes furtos.
O princípio da insignificância e a violência contra a mulher
Questão que tem despertado muita polêmica se relaciona à aplicação do princípio da insignificância em sede de crimes de violência contra a mulher.
A Lei 11.340, também conhecida como “Maria da Penha” demonstrou a preocupação de ampliar a pena dos agressores e incentivar os mecanismos de denúncia da violência doméstica. Procurou-se estabelecer a defesa das mulheres contra qualquer ato de violência. Na prática, embora os casos de violência contra a mulher estejam sendo, em maior número, submetidos à apreciação do Poder Judiciário, tem sido reconhecido, com freqüência, o princípio da insignificância.
Muitas vezes, a vítima e o agressor se reconciliam, o que faz com que o Estado reconheça o princípio da insignificância e sua incapacidade de atuar.
Mas realmente é insignificante a conduta do agressor? Não há periculosidade social em sua ação? Não é reprovável o comportamento do agente? Não é expressiva a lesão provocada?
Reconhecendo o postulado da bagatela neste caso específico não estará o Estado compactuando para que as mulheres continuem a se calar diante das agressões físicas e psicológicas que sofreram?
Justifica-se a aplicação do princípio da fragmentariedade nesta hipótese?
Parece-nos que a cultura da violência tem se valido do princípio da insignificância e perpetuado a impunidade com relação aos agressores domésticos. Afinal, não é a mesma coisa um indivíduo furtar uma lata de salsicha e um indivíduo agredir sua esposa.
Não existem ainda decisões das Cortes Superiores neste sentido, dada a novidade do tema, mas se espera que seja urgentemente afastada a aplicação do princípio da insignificância nesta seara específica.
Conclusões
Realmente existem casos em que não se faz necessária uma reprimenda penal, diante da inexistência de tipicidade material. O direito penal deve se ocupar de condutas que efetivamente representem danos a bens jurídicos relevantes.
Todavia, o princípio da insignificância não pode ter a sua atuação disseminada de maneira irresponsável. Ademais, também não pode atuar de modo a incentivar a ocorrência de novos delitos. As hipóteses de inexpressividade da lesão provocada devem ser detidamente analisadas. Critérios objetivos devem ser definidos. Situações de violência doméstica imperam por uma solução justa do Estado, que não pode simplesmente se olvidar do cumprimento da lei.
Bibliografia
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Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Algumas considerações acerca da aplicação do princípio da insignificância Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2009, 06:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18929/algumas-consideracoes-acerca-da-aplicacao-do-principio-da-insignificancia. Acesso em: 23 dez 2024.
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