Co-autora: Mariana Ribeiro Santiago. Advogada. Mestre em Direito Civil. Doutoranda em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.
Sumário: 1. Da declaração de vontade enquanto elemento do negócio jurídico; 2. Da reserva mental; 3. Conhecimento x cognoscibilidade da reserva mental e seus efeitos.
1. Da declaração de vontade enquanto elemento do negócio jurídico.
O tema da reserva mental está intimamente ligado à questão do conflito entre a vontade interna e a vontade declarada do agente e sua repercussão no campo da existência dos negócios jurídicos, tema bastante controvertido na doutrina, gerando debates entre subjetivistas e objetivistas.
Em termos gerais, para os subjetivistas, encabeçados por Savigny, deve prevalecer, em todos os casos a vontade interior do declarante; já os objetivistas consideram que a vontade declarada prepondera, mesmo fictícia, como forma de proteção à segurança nas relações privadas[1].
Para Antonio Junqueira de Azevedo[2], as duas teorias apresentam um erro na sua formulação inicial, por admitirem a existência de dois elementos no negócio jurídico: a vontade e a declaração, divergindo somente quanto à prevalência de um e de outro, quando na verdade não há dois elementos, mas apenas um: a declaração de vontade.
Ainda consoante o referido autor[3], “a vontade não é elemento do negócio jurídico, o negócio é somente a declaração de vontade. Cronologicamente, ele surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa nesse momento; todo o processo volitivo anterior não faz parte dele; o negócio todo consiste na declaração. Certamente, a declaração é o resultado do processo volitivo interno, mas, ao ser proferida, ela o incorpora, absorve-o, de forma que se pode afirmar que esse processo volitivo não é elemento do negócio. A vontade poderá, depois, influenciar a validade do negócio e às vezes também a eficácia, mas, tomada como inter do querer, ela não faz parte, existencialmente, do negócio jurídico; ela fica inteiramente absorvida pela declaração, que é o seu resultado”.
Sobre o tema da vontade, Roberto de Ruggiero[4] leciona que “antes de mais nada é preciso que exista uma vontade interna, devendo tratar-se de uma vontade séria, que provenha de pessoa capaz, não podendo basear um negócio jurídico em uma determinação feita de brincadeira ou por uma criança. Mas enquanto se conserva interna, a vontade não opera no mundo jurídico; deve passar para o exterior, exteriorizando-se por modo visível. O direito não põe obstáculos ao modo de manifestação; admite em regra geral, todos os modos que, segundo o uso e o costume, constituem meio idôneo para tornar conhecido aos outros um desejo íntimo: a palavra, a escrita, os sinais, dado comportamento e até o simples silêncio, quando ele exprima o pensamento interno; só para casos determinados se exige que a declaração seja feita por uma fonte preestabelecida”.
A vontade, entretanto, pode ser exteriorizada de forma expressa ou tácita. A vontade expressa se observa por meios sensíveis, como a palavra escrita ou oral, bem como por sinais; na manifestação tácita se praticam atos ou fatos que não se destinam propriamente a exteriorizar uma vontade, mas esta se deduz do comportamento da pessoa, indiretamente, devendo tais atos ser necessariamente concludentes e unívocos[5].
As declarações de vontade podem, ainda, ser classificadas como receptícias ou não-receptícias, caso, respectivamente, devam ou não ser notificadas ao declaratário para que o negócio surta efeitos. As primeiras ocorrem com freqüência no âmbito das obrigações; as segundas se observam, por exemplo, na promessa de recompensa, na aceitação de letra de câmbio e na revogação de testamento[6].
A manifestação de vontade poderá se observar ainda pelo simples silêncio, conforme se depreende da análise do art. 111, do Código Civil brasileiro, que dispõe: “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”.
2. Da reserva mental.
José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior[7] pontuam que se deve considerar que “a declaração de vontade é composta por dois elementos: a) um interno (é a intenção assentada no íntimo da pessoa, a vontade real); b) o outro externo (é a manifestação dessa vontade)”, sendo que tais elementos devem estar em harmonia, exprimindo segurança e a realidade desejada por aquele que se vincula ao negócio jurídico.
Na ausência da citada harmonia, os referidos autores[8] concluem que podem ser observadas três hipóteses nos negócios jurídicos: a) simulação; b) reserva mental; c) declarações sem conteúdo, não sérias, sem expressão de credibilidade.
Cabe ressaltar que a reserva mental nos contratos bilaterais não se confunde com a simulação. Como bem assevera Fabio Ulhoa Coelho[9], se tanto uma parte como a outra, ao expedirem suas declarações, fazem reserva mental de suas reais intenções, não convergem necessariamente as intenções reservadas. Cada uma pode ter uma intenção oculta diferente. Mesmo quando conhecidas as reservas mentais das respectivas declaratárias, isso não faz surgir uma intenção simulada comum às partes”.
Na presente oportunidade, interessa-nos particularmente o tema da reserva mental, que está tratada no art. 110, do Código Civil brasileiro, onde se lê: “a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.
No magistério de Roberto de Ruggiero[10], observa-se a reserva mental quando o declarante quer intima e conscientemente, coisa diversa da declarada, na maioria das vezes intencionando induzir em erro o destinatário da declaração, ainda que não para fins desonestos.
No mesmo sentido, Vicente Ráo[11] define a reserva mental como “uma particular espécie de vontade não declarada, por não querer, o agente, declará-la. É uma vontade que o agente intencionalmente oculta, assim procedendo para sua declaração ser entendida pela outra parte, ou pelo destinatário (como seria pelo comum dos homens) tal qual exteriormente se apresenta, embora ele, declarante, vise alcançar não os efeitos de sua declaração efetivamente produzida, mas os que possam resultar de sua reserva”.
Em obra específica sobre o tema, Nelson Nery Junior[12] defende que “para a conceituação da reserva sob o ponto de vista estritamente jurídico, não se pode levar em consideração divergências que não possam trazer alguma conseqüência para o direito. Assim, à mentira pura e simples, que não traduza nenhum reflexo no âmbito do direito, não se pode dar importância para o fim de conceituar a reserva mental”.
E continua o citado autor[13]: “O declarante que se reserva mentalmente não quer aquilo que se encontra declarado. Este não querer, produto da mente do reservante, deve ter o escopo de enganar o declaratário, porque, do contrário, seria mentira pura e simples, e não entraria no conceito de reserva mental, segundo a nossa proposição”.
Dessa forma, entre os elementos constitutivos da reserva mental, pode-se citar: a) uma declaração não querida em seu conteúdo; b) o propósito de enganar o declaratário ou terceiro. Note-se que a reserva mental pode ter o intuito de ludibriar pessoa estranha ao negócio, diferentemente dos entendimentos acima expostos[14].
Faz-se mister ressaltar que a reserva mental pode ser observada tanto nos negócios unilaterais, a exemplo do testamento, a promessa de recompensa, a emissão de título de crédito, negócio jurídico de procuração etc, como nos bilaterais, sendo passível de ocorrência também tanto nos negócios receptícios quanto nos não receptícios[15].
Levando em consideração que apenas a vontade exteriorizada se configura em pressuposto básico do negócio jurídico, Carlos Roberto Gonçalves[16] ensina que a reserva mental, enquanto vontade que permanece interna ao indivíduo, não pode ser configurada como requisito de existência do negócio, ressaltando, inclusive, a impossibilidade de sua apuração.
Sobre os fundamentos da desvalia da reserva mental para o direito, contrapõem-se os pensamentos de Savigny, para quem se trata de uma questão de dificuldade de prova, e Windscheid, que considera a vedação para o declarante de invocar a própria impostura[17].
Em relação ao antagonismo acima exposto, Vicente Ráo[18] assevera que “verdade existe nas duas doutrinas: de um lado, não interessa ao direito a vontade guardada em reserva com ou sem intenção dolosa e, de outro lado, se alguém declara dolosamente (caso no qual os requisitos do dolo devem ser provados) uma vontade contrastante com o conteúdo do ato, o procedimento doloso do agente não deverá prevalecer, nem por seu autor poderá ser alegado em prejuízo das partes, ou dos destinatários que a reserva ignoravam. Nesse sentido, ou melhor, em sentido geral, o art. 116 do código civil alemão prescreve que a declaração não é nula só pelo fato do declarante se reservar, secretamente, o propósito de não querer o que declara, mas é nula quando se dirige a quem conhece a reserva”.
3. Conhecimento x cognoscibilidade da reserva mental e seus efeitos.
No tocante aos efeitos da reserva mental, da leitura do citado art. 110 do Código Civil brasileiro de depreende que, em regra, ocorrendo a reserva mental, a declaração é válida e produz todos os seus efeitos normalmente, desconsiderando-se a vontade interna.
Como bem sintetiza Carlos Roberto Gonçalves[19], “a reserva, isto é, o que se passa na mente do declarante, é indiferente ao mundo jurídico e irrelevante no que se refere à validade e eficácia do negócio jurídico”.
Com base na análise dos efeitos da reserva mental no direito brasileiro, que não tem o poder de alterar o conteúdo do negócio jurídico, Fabio Ulhoa Coelho[20] argumenta que se pode sustentar, inclusive, a prevalência da declaração sobre a vontade, no ordenamento pátrio.
Entretanto, não se pode olvidar que o próprio art. 110, do Código Civil brasileiro, em sua parte final, estabelece uma ressalva para os casos em que a reserva mental é conhecida pelo declaratário, caso em que a manifestação de vontade não subsiste.
O que ocorre em tais hipóteses, conforme o entendimento de Carlos Roberto Gonçalves[21], é que a reserva mental conhecida do declaratário torna inexistente o negócio, em face da ausência da vontade.
Em inteligência análoga, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery[22] afirmam que “a norma comentada diz que não subsiste manifestação de vontade se feita com reserva mental conhecida do declaratório. Portanto, é causa de inexistência do negócio jurídico – por falta de manifestação da vontade – essa reserva mental conhecida do declaratório, conhecimento esse que deve existir até o momento da consumação do ato (o conhecimento tem de ser prévio). Como é causa de inexistência, recebe tratamento jurídico assemelhado ao da nulidade, constituindo-se, portanto, em matéria de ordem pública que prescinde de ação judicial para ser reconhecida, podendo ser alegada como objeção de direito material (defesa). O juiz deve pronunciá-la de ofício (CC 168 par. ún.)”.
Pelo fato de se tratar de hipótese de inexistência, entretanto, os referidos autores[23] ressaltam que a sentença sobre tal matéria terá eficácia ex tunc, retroativa, atingindo o ato desde a origem, vedado ao juiz a convalidação do negócio.
Sobre a forma como o declaratário toma conhecimento da reserva mental, Fabio Ulhoa Coelho[24] pondera que não se faz necessária a exteriorização da vontade reservada. Geralmente o reservante confia que suas intenções reais não serão conhecidas. É a partir da experiência profissional ou de vida da parte declaratária ou mesmo as circunstâncias do negócio, que se pode, segundo o citado autor, perceber a real intenção do declarante. Dessa forma, havendo fortes razões para o destinatário da declaração não ignorar a reserva mental, deve-se tê-la por conhecida.
O entendimento acima exposto permite deduzir que a mera cognoscibilidade pelo declaratário acerca da reserva mental do declarante é suficiente para efeitos de inexistência do negócio jurídico.
Em sentido contrário, Nelson Nery Junior[25] afirma que “não basta a mera cognoscibilidade da reserva pelo declaratário: é necessário o efetivo conhecimento”. Tal posicionamento denota um rigor maior em matéria probatória para fim de declaração de inexistência do negócio.
Diferentemente do que se observa no direito brasileiro, as legislações civis portuguesa e alemã tratam a reserva mental conhecida do declaratário como causa determinante de nulidade do negócio jurídico, não de inexistência, senão vejamos.
O Código Civil português, no seu art. 244º, após disciplinar que “há reserva mental sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário”, em sua segunda parte determina que “a reserva não prejudica a validade da declaração, exceto se for conhecida do declaratório; neste caso, a reserva tem os efeitos da simulação”.
Já o Código Civil alemão (BGB), por sua vez, estabelece: § 116, § 1º “Não é nula uma declaração de vontade simplesmente porque a pessoa, de quem ela emana, tenha entendido, por meio de reserva mental, não querer aquilo que declarou. Em se tratando, porém, de declaração que deva ser dirigida a outrem, é nula, se este teve conhecimento da reserva mental do declarante”[26].
Consideramos, neste ponto, a solução adotada pela legislação nacional mais acertada, pois a manifestação de vontade se caracteriza como elemento de existência dos negócios jurídicos. Assim, se não subsiste a manifestação de vontade no caso de reserva mental conhecida, trata-se de caso de inexistência do negócio jurídico.
Antonio Junqueira de Azevedo[27] destaca que, faltando a manifestação de vontade, pode haver fato ou ato jurídico, mas não negócio jurídico. No mais, concluindo-se pela inexistência, não há que se analisar o negócio no plano da validade para fim de se perquirir sobre a nulidade, pois esta é prerrogativa apenas dos atos existentes.
Bibliografia.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual.São Paulo: Saraiva, 2002.
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, Vol. I, 2003.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. São Paulo: Saraiva, Vol. 1, 2003.
NERY JUNIOR, Nelson. Vícios do Ato Jurídico e Reserva mental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.
________ e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 3ª tiragem. São Paulo: Max Limonad, 1961.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. 6 ed. atual. Campinas/SP: Bookseller, Vol. I, 1999.
[1] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, 4. ed. atual.,São Paulo: Saraiva, 2002, p. 74-75.
[2] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio..., cit., p. 82.
[3] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio..., cit., p. 82.
[4] Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, 6 ed. atual., Campinas/SP: Bookseller, Vol. I, 1999, p. 322.
[5] Roberto de Ruggiero, Instituições..., cit., p. 323.
[6] Roberto de Ruggiero, Instituições..., cit., p. 325. Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro: parte geral, São Paulo: Saraiva, Vol. 1, 2003, p. 308.
[7] José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior, Comentário ao Código Civil brasileiro: dos fatos jurídicos, Arruda Alvim e Thereza Alvim (coord.), Rio de Janeiro: Forense, Vol. 2, 2008, p. 204.
[8] José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior, Comentário..., cit., p. 204.
[9] Fabio Ulhoa Coelho, Curso..., cit., p. 295.
[10] Roberto de Ruggiero, Instituições..., cit., p. 327.
[11] Vicente Ráo, Ato Jurídico, 3ª tiragem, São Paulo: Max Limonad, 1961, p. 210-211.
[12] Nelson Nery Junior, Vícios do Ato Jurídico e Reserva mental, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, p. 17.
[13] Nelson Nery Junior, Vícios..., cit., p. 18.
[14] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil comentado e legislação extravagante, 3. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 228.
[15] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código..., cit., p. 229.
[16] Carlos Roberto Gonçalves, Direito..., cit., p. 306.
[17] Vicente Ráo, Ato..., cit., p. 211.
[18] Vicente Ráo, Ato..., cit., p. 211-212.
[19] Carlos Roberto Gonçalves, Direito..., cit., p. 309.
[20] Fabio Ulhoa Coelho, Curso..., cit., p. 294.
[21] Carlos Roberto Gonçalves, Direito..., cit., p. 311.
[22] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código..., cit., p. 230.
[23] Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código..., cit, p. 230.
[24] Fabio Ulhoa Coelho, Curso..., cit., p. 295.
[25] Nelson Nery Junior, Vícios..., cit., p. 64.
[26] José Augusto Delgado e Luiz Manoel Gomes Júnior, Comentário..., cit., p. 207.
[27] Antonio Junqueira de Azevedo, Negócio..., cit., p. 34.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAMPELLO, Livia Gaigher Bosio. SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Reserva mental e inexistência do negócio jurídico. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 10 dez. 2009. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.25673 . Acesso em: xx xxx. xxxx.
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