Sumário: 1. Aspectos Introdutórios; 2. A Inter-relação das Ordens Jurídicas Interna e Internacional; 3. Contornos Essenciais da Soberania Estatal; 4. Projeção Externa da Soberania; 5. Influência do Direito Internacional na Proteção Interna dos Direitos Humanos: Conceitos Qualitativo e Quantitativo de Soberania; 6. A Universalidade dos Direitos Humanos como Fator de Redimensionamento da Soberania Estatal; Epílogo.
1. Aspectos Introdutórios[1]
O evolver da humanidade, necessariamente circundado por avanços e retrocessos, tem contribuído para sedimentar a concepção de que as estruturas estatais de poder não podem e não devem ser vistas como partículas isoladas, indiferentes ao seu entorno. Posturas de isolamento ou de inter-relação meramente consentida, predominantes até meados do Século XIX, já não se compatibilizam com os novos rumos das relações internacionais.
A indiscutível evolução experimentada pelo direito internacional nas últimas décadas do Século XX, processo evolutivo que costuma ser igualmente englobado sob a epígrafe da globalização, longe de apaziguar as divergências, só fez estimular as reflexões em torno de princípios até então enraizados e respeitados como dogmas absolutos e intangíveis. A circulação de idéias e de riquezas, ao que se soma o grande potencial lesivo de inúmeras realizações humanas, que podem chegar ao extremo de inviabilizar a própria subsistência de qualquer forma de vida no planeta, foram decisivos para que questões afetas à autodeterminação externa ou de cunho aparentemente interno assumissem uma característica transcendente, de indiscutível importância para os demais Estados.
Tais reflexões trouxeram à tona a existência de tensões dialéticas entre princípios clássicos, como o da soberania estatal, e princípios mais recentes, do que são exemplos a proscrição da guerra de conquista e a proteção internacional dos direitos humanos. O aparecimento de novos atores no cenário internacional, como é o caso das organizações internacionais, também tem atuado como inevitável complicador, pois sua atuação pode igualmente influenciar a maior ou a menor concretização desses princípios.
Essa tendência foi especialmente sentida com a abolição do jus belli, legitimado pelo direito internacional clássico e que constantemente integrava a pauta das relações externas dos Estados mais fortes. A concepção de que o direito à guerra refletia mera projeção da soberania estatal, integrando-se às competências discricionárias do Estado, que poderia fazer uso das armas sem qualquer preocupação em justificá-lo, mostrou-se especialmente preocupante com o aumento da força lesiva dos artefatos de guerra.[2]v.g.: a legítima defesa),[3][4] Daí as construções voltadas à distinção entre guerras justas e injustas, ofensivas e defensivas. Após a Primeira Guerra Mundial, prevaleceu a concepção de que o uso da força deveria ser precedido de uma causa de justificação ( bem como que uma organização internacional, a Sociedade das Nações, sucedida pela Organização das Nações Unidas, desempenharia um papel primordial na resolução dos conflitos. Não bastasse isto, mesmo quando legítimo o conflito, as necessidades militares deveriam harmonizar-se com exigências básicas de humanidade.
Esse processo de realinhamento principiológico, em passado mais recente, terminou por se estender à temática dos direitos humanos. Reconheceu-se, em especial após o Segundo Conflito Mundial, onde a barbárie nazista fora legitimada pelo próprio direito positivo alemão, que a senhoria normativa do Estado, outrora absoluta, deveria observar balizamentos mínimos, ainda que o seu poder de império fosse direcionado aos seus cidadãos e em seu território. Trata-se do reconhecimento de que acima da nacionalidade, vínculo que une o indivíduo ao Estado,[5] tem-se a imperativa garantia de sua humanidade, consectário de sua própria inclusão na espécie humana. Não bastasse isto, tornou-se cada vez mais freqüente a reunião de Estados em busca da consecução de objetivos comuns, resultando na proliferação de organizações internacionais, cujas deliberações, não raro, tornam-se vinculantes mesmo para os Estados que se viram vencidos na votação.
As novas tendências, à evidência, não podem ser explicadas à luz da noção clássica de soberania, prosélita de um poder que, na atualidade, o Estado não mais possui. O objetivo dessas breves linhas é tecer algumas considerações em torno do alcance dessas restrições e do seu efeito na proteção dos direitos humanos. É importante lembrar que o influxo de novas idéias e o indeclinável prestígio de valores essenciais à sociedade internacional não importam no correlato desprestígio das normas internas, em especial do texto constitucional, ou mesmo no desvanecimento da soberania estatal. Interpretar o novo com os olhos voltados ao velho ou tentar compreender a parte dissociada do todo é vício que maltrata princípios básicos de hermenêutica e compromete o evolver dos povos na direção de uma harmônica convivência, merecendo profundas e urgentes reflexões por parte dos operadores do direito.[6]
2. A Inter-relação das Ordens Jurídicas Interna e Internacional
A questão da influência da ordem internacional sobre a ordem interna traz, de imediato, a lembrança sobre o ferrenho debate entre a teoria dualista - que prestigia a soberania estatal e preconiza a coexistência entre as duas ordens, sem a supremacia de nenhuma delas e com a necessidade de autorização do Estado para que a norma internacional possa viger na ordem interna - e a teoria monista - que defende a existência de uma única ordem, para alguns com a superioridade do direito interno, o que importa na própria negação do direito internacional, para outros com o primado desse último.[7]
O debate chega a assumir proporções, no mínimo, curiosas, pois, enquanto os defensores do dualismo afirmam a ampla e irrestrita predominância dessa teoria na atualidade,[8] os seguidores do monismo fazem justamente o mesmo em relação à teoria por eles prestigiada.[9]
Uma ampla análise dessas teorias, embora sempre seja útil, terminaria por afastar-nos do objetivo principal, o que não parece ser conveniente. De qualquer modo, é necessário estabelecer o paradigma que seguiremos, facilitando o desenvolvimento do estudo e a compreensão das conclusões que serão declinadas. De forma breve, podemos dizer que a teoria monista, observados certos temperamentos, é a que melhor se afeiçoa ao atual estágio de evolução do direito internacional.[10]
Admitindo-se a unidade da ordem jurídica interna e da ordem jurídica internacional, põe-se o problema, de todo relevante sob o aspecto da soberania dos Estados, da identificação de uma possível hierarquia entre elas. Em um primeiro plano, cumpre dizer que seria inconcebível a existência de uma ordem internacional, ainda que essencialmente fragmentária, caso fosse reconhecido aos Estados a possibilidade de dispor livremente sobre os contornos da ordem interna.
Apesar de as violações ao direito internacional serem constantes, a própria coexistência entre os Estados exige, se não uma relação de absoluta conformidade, ao menos uma relação de compatibilidade entre os atos internos e determinados padrões existentes na ordem internacional. Nesse sentido, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, adotada em 23 de maio de 1969, dispõe, em seu art. 26, que, salvo a existência de vícios em relação à competência dos órgãos internos para a conclusão dos tratados, os Estados não podem deixar de executá-los invocando disposições do seu direito interno.
Não obstante o reconhecimento do primado do direito internacional, um possível conflito entre as ordens interna e internacional não será resolvido com a utilização de mecanismos idênticos àqueles empregados nos conflitos entre normas internas. Nesse último caso, o conflito pode ser resolvido em termos de validade, enquanto que no direito internacional, salvo exceções,[11] dá-se a resolução em termos de responsabilidade do Estado, mantendo-se, por via reflexa, a validade da norma interna.[12] O alcance dessa responsabilidade, no entanto, em especial nas hipóteses em que o Estado não tenha a ela voluntariamente anuído e os atos intitulados de ilícitos tenham sido praticados no seu território e contra os seus cidadãos,[13] ainda é objeto de discussão.
A adstrição do direito internacional às relações entre Estados,[14] concepção que implicitamente prestigiava os distintos aspectos derivantes da soberania, era constantemente invocada para afastar a possibilidade desse ramo do direito ser utilizado como parâmetro de proteção dos direitos humanos.[15] Tanto a dimensão material, como a processual desses direitos deveriam ser desenvolvidas no âmbito intra-estatal, sendo inconcebível a sua transposição para o plano do direito internacional.[16]
Esse quadro de preeminência da soberania estatal, praticamente intangível até o início do Século XX, passou a sofrer profundas modificações com o paulatino reconhecimento dos direitos humanos, o que, como dissemos, se acentuou a partir do segundo pós-guerra, com o aparecimento de inúmeros atos internacionais que exortavam a sua observância. A sedimentação desse quadro evolutivo permitiu que a proteção dos direitos humanos ultrapassasse uma dimensão de superposição aos contornos da soberania, domínio reservado à jurisdição interna, e se integrasse ao direito internacional, possibilitando a responsabilização dos Estados pelos ilícitos praticados.
Evolução à parte, deve-se reconhecer que a disseminação dos diplomas internacionais protetores dos direitos humanos, alçando-os a uma posição supranacional, não tem encontrado ressonância em uma correlata ampliação dos instrumentos de controle disponibilizados aos indivíduos no plano internacional, o que em muito reduz a sua perspectiva de efetividade no âmbito dos Estados. Em sua maior parte, os instrumentos existentes estão assentados em premissas voluntaristas, apresentando-se em reduzido número os que podem ser utilizados pelos cidadãos de um Estado, contra os abusos por ele perpetrados, sem que haja a sua prévia anuência nesse sentido.[17]
Com o aparecimento e a posterior proliferação das organizações internacionais, restou ultrapassada a vetusta concepção de que somente os Estados soberanos, na condição de criadores e destinatários das normas jurídicas internacionais, eram sujeitos de direito internacional. Do mesmo modo, também o estabelecimento de relações jurídicas, outrora restrito aos Estados, passou a alcançar as organizações internacionais, que assumiram a condição de elementos polarizadores dos interesses comuns presentes na sociedade internacional.
Essas mutações, se não chegaram a conferir um aspecto de unidade ao direito internacional, ao menos contribuíram para a redução de seu caráter fragmentário, já que inúmeros comandos emitidos por essas organizações, de caráter normativo ou não, permitiram a sedimentação de ideais comuns aos seus membros. E ainda, na medida em que sua estrutura e seus objetivos se agigantavam, dando mostras de uma nítida propensão à universalidade, referidos ideais passaram a ser vistos como comuns a toda a humanidade.
Na linha evolutiva das organizações internacionais, é possível verificar um paulatino afastamento da regra da unanimidade em suas deliberações. Essa regra, como se sabe, longe de refletir um mero critério de disciplina orgânica, era associada ao voluntarismo que regia a assunção de obrigações no plano internacional e à necessária preservação da igualdade entre os Estados.[18]
Atualmente, em especial nas organizações de cunho universal, a maior parte das deliberações, não obstante as múltiplas variações que podem apresentar, têm seguido a regra majoritária.[19] Se essa peculiaridade, por si só, é insuficiente para demonstrar o declínio do voluntarismo nas relações internacionais, pois certamente se objetará que os Estados teriam previamente anuído às regras da organização, é indiscutível a sua relevância como elemento indicador de uma nova fase no direito internacional, em que a soberania deixa de ser o epicentro de análise, passando a coexistir com outros princípios igualmente relevantes. De forma inversamente proporcional ao enfraquecimento dos dogmas da soberania estatal, tem-se a paulatina sedimentação dos direitos humanos e da atividade das organizações internacionais, que assumiram uma posição de relevância ímpar na coexistência entre os povos.
3. Contornos Essenciais da Soberania Estatal
A linha evolutiva da noção de soberania está intimamente articulada com a progressão histórica do Estado de Direito, concebido como estrutura orgânico-jurídica dotada de poder normativo e força coerciva exclusiva sobre determinada comunidade. Essa exclusividade, em si, está associada à sua posição de instância suprema e dela deriva a homogeneidade da ordem normativa, afastando o risco de contradições e garantindo a preeminência da segurança jurídica.[20] Coexistissem diversas instâncias de regulação concorrentes, de mesmo alcance e nível hierárquico, em uma única instância jurídica, não haveria que se falar em homogeneidade e na correlata segurança nas relações sociais.[21] Como derivação lógica e indissociável do poder de disciplinar a vida em comunidade, descumprido o padrão normativo emanado dos órgãos estatais competentes, tal ensejará a utilização dos meios de coerção disponíveis com o fim de recompor a ordem jurídica lesada.[22]
Essa “força de dominação originária”[23] informa o poder do Estado, assenta a idéia de supremacia e indica as linhas estruturais da soberania estatal.
Não obstante arraigadas no constitucionalismo contemporâneo, as noções de poder do Estado e soberania estatal nem sempre receberam o mesmo colorido. Principiando pela Idade Média, em que, sob os influxos do regime feudal, era possível divisar uma partilha de poderes entre nobreza, clero, cavalheiros e cidades, foi lento o evolver até que o Estado alcançasse a emancipação externa, afastando a tutela papal, e obtivesse a consolidação interna de poderes na nobreza, eliminando as poliarquias que legitimavam a existência de múltiplas estruturas independentes de poder, cada qual como uma organização funcional própria.[24]
Existindo um único poder supremo, as demais estruturas de poder tornaram-se dele derivadas e nele consolidadas,[25] fenômeno que veio a ser identificado por Jean Bodin[26] com a cunhagem do conceito de soberania. Esse modo de ser próprio do poder estatal, como adiantamos, assume relevo em uma dupla direção: externa, na medida em que o Estado é independente perante outros ordenamentos externos ao seu território e, interna, em razão da posição de supremacia frente aos indivíduos e a toda comunidade existente no interior do seu território.[27]
Em razão dos atributos da soberania, caberia ao poder do Estado decidir sobre a extensão de suas próprias competências, daí se falar em “soberania de competência” ou “competência das competências”.[28] Afastar-se-ia, assim, a influência de fatores exógenos e de limites internos na produção normativa, no reconhecimento de direitos e na imposição de deveres ao Estado.
Embora a consolidação do poder tenha ensejado o surgimento de uma única “força de dominação originária”, o seu exercício ilimitado terminou por sedimentar o absolutismo monárquico, o que deflagrou o processo construtivo das doutrinas liberais. Nesse particular, merece realce a obra de John Locke,[29] que, apesar de elaborada a posteriori, pode ser considerada o alicerce teórico justificador da Glorious Revolution[30] o poder do monarca encontra o seu fundamento num contrato social, que limita o alcance do poder aos direitos que lhe foram transferidos pelos súditos. No estado de natureza (stare of nature), o indivíduo possui determinados direitos considerados naturais (property), cujos elementos integrativos, por serem originários e inalienáveis, não poderiam ser transferidos ao soberano, o que acarretava a impossibilidade de serem subtraídos ao indivíduo. Em verdade, o indivíduo transferiria alguns direitos com o fim de melhor preservar os demais. Transgredidos os “termos” do contrato social, seria reconhecido o direito de resistência, pois ilegítimo o exercício do poder transferido ao soberano. de 1688. Segundo Locke,
A doutrina de Locke, conquanto fundada em premissas jusnaturalistas,[31] já demonstrava a necessidade de serem reconhecidos determinados direitos fundamentais do homem e de serem impostos limites ao poder do Estado. A observância desses limites, inerentes à própria estruturação do Estado, já havia sido reconhecida, inclusive, por Bodin[32] e em nada se confundiria com a existência de uma instância superior de controle.
Essa manifestação de poder, estando sujeita a limites impostos pela ordem jurídica, não seria propriamente uma manifestação da soberania, por essência ilimitada. Daí a necessária distinção, desenvolvida por Sieyès, entre poderes constituídos e poder constituinte, este sim ilimitado e legitimamente atribuído ao povo.[33] Essa construção em muito contribuiu para sacramentar a tese de que a soberania deveria ser transferida do monarca para o povo.[34] Com isto, a soberania do Estado encontraria ressonância no exercício do poder constituinte, que delimitaria o exercício do poder e somente deveria adequar-se às circunstâncias fáticas e políticas contemporâneas ao seu exercício.[35]
4. Projeção Externa da Soberania
O poder do Estado, além de ostentar a supremacia interna, tem uma indiscutível vocação relacional, pois coexiste com outros poderes de natureza similar. Correlata a essa coexistência encontra-se a submissão direta e imediata do Estado ao direito internacional, sendo este “imediatismo normativo” um elemento indissociável da noção de soberania, constatação que não é comprometida mesmo nos casos em que os Estados, livremente, decidam exercer determinadas atribuições em conjunto ou utilizando-se de uma organização internacional.[36]
Inicialmente, a concepção da existência de um direito absoluto de autodeterminação no âmbito interno projetou-se no plano das relações internacionais, sendo reconhecido ao Estado soberano - e somente a ele, consoante antiga doutrina internacionalista - a condição de sujeito de direito internacional em potencial.[37] Não divisada a soberania, não haveria que se falar em autodeterminação ou na possibilidade de gozar de direitos e de assumir deveres na órbita internacional.
Essa doutrina, que maximiza a importância da soberania, transpondo aspectos de ordem interna para o âmbito do direito internacional, mostrou-se incompatível com o paulatino reconhecimento da condição de sujeitos de direito internacional a entes outros que não os Estados soberanos, como é o caso da Santa Sé e das organizações internacionais. Apenas os Estados podem ter soberania, mas não são os únicos entes com personalidade internacional.[38]
Além disso, profundas foram as modificações introduzidas no conceito desde a sua cunhagem por Bodin.[39] A começar pelas teorias voluntaristas, estritamente relacionadas à noção de soberania e que procuravam justificar a existência e a obrigatoriedade do direito internacional na aquiescência de um Estado singular ou na “vontade comum” dos Estados, muito se evoluiu até alcançar o reconhecimento da existência de regras que transcendem a vontade do Estado, tornando imperativa a sua observância.[40]
Para tanto, tem contribuído o papel desempenhado pela Organização das Nações Unidas, cujas deliberações, legitimadas pelo fato de congregar a quase totalidade dos Estados existentes,[41] ensejam a paulatina penetração do direito internacional no âmbito interno, abrindo caminho para que sejam definitivamente ultrapassados os resquícios de dualismo entre a ordem jurídica interna e a ordem internacional.
Vale mencionar, do mesmo modo, que a adoção da teoria monista nas relações entre a ordem interna e a ordem internacional tem influência direta no redimensionamento da noção de soberania. Como dissemos no limiar desse estudo, em regra, a colidência entre essas ordens não importará na invalidade da norma interna, mas tão-somente na responsabilidade internacional do Estado ou mesmo do indivíduo. Isto, no entanto, não tem o condão de afastar a inegável influência do direito internacional em seara outrora coberta pelo impenetrável manto da soberania.
O estreitamento das relações internacionais e o reconhecimento da necessidade de proteção dos direitos humanos são responsáveis pelo desaparecimento da plenitude do poder estatal e pelo esvaziamento de alguns limites impostos pela soberania.[42] Nesse sentido, devem ser mencionadas as normas internacionais relativas aos crimes internacionais (genocídio, tráfico de escravos etc.), que não admitem como causa de justificação a obediência à norma interna, bem como os princípios gerais de direito e o costume internacional sobre os direitos do homem, cuja observância é igualmente imperativa.[43] Como se vê, são normas que terão vigência no direito interno, a ele se sobrepondo, ainda que ausente a aquiescência do Estado.
Não obstante o evolver do direito internacional, alguns aspectos específicos da soberania continuam a gozar de elevado prestígio e reconhecimento. Merecem menção a igualdade, a plena capacidade jurídica e a independência dos Estados entre si e perante os demais sujeitos de direito internacional.[44]
A igualdade soberana entre os Estados,[45] como deflui de sua própria literalidade, indica que, ao menos sob o prisma jurídico ou idealístico-formal, todos possuem os mesmos direitos e deveres perante a ordem jurídica internacional. Além da igualdade, a soberania exige a possibilidade e a liberdade de agir, sem “qualquer subordinação orgânica” a outros sujeitos de direito internacional.[46]
São verdadeiros axiomas que se encontram interligados ao princípio da não-intervenção ou não-ingerência nos assuntos de ordem interna. Esse último princípio, que se opõe às intervenções não-consensuais (rectius: sem o consentimento do Estado afetado), tem igualmente passado por uma reengenharia, não mais ostentando um valor absoluto e intangível.
O processo evolutivo, no entanto, longe de estar finalizado, tem sofrido profundas mutações após o segundo pós-guerra.
5. Influência do Direito Internacional na Proteção Interna dos Direitos Humanos: Conceitos Qualitativo e Quantitativo de Soberania
A compreensão das profundas modificações implementadas no conceito de soberania, com a conseqüente identificação dos efeitos daí decorrentes na proteção dos direitos humanos, exige, para além da referência aos seus aspectos interno e externo, seja ele dissociado do atributo da indivisibilidade, verdadeiro dogma da doutrina clássica.[47]
Com isso, será possível demonstrar que a noção de soberania ainda tem importância e utilidade, ainda que suas linhas estruturais tenham sofrido um sensível realinhamento. Ultrapassando o outrora impenetrável dogma da indivisibilidade, será possível compreender a coexistência da soberania com outros princípios igualmente relevantes para o direito internacional, como é o caso da proteção dos direitos humanos.
Para tanto, é necessário realçar dois aspectos do conceito de soberania: o qualitativo e o quantitativo. O primeiro aspecto indica a “aptidão” do Estado “para se firmar como poder supremo e independente, como raiz, como fundamento, como essência ou conteúdo essencial,”[48] não estando atrelada a qualquer quantificação. Em relação ao segundo aspecto, o quantitativo, aponta a “soma de poderes soberanos, isto é, como medida, como quantum de todas as faculdades em que se traduz o poder supremo e independente”.[49] A exemplo da árvore em relação aos frutos, também o aspecto qualitativo antecede e dá sustentação ao quantitativo, sendo possível que este, a exemplo dos frutos, sofra inúmeras vicissitudes sem que o aspecto qualitativo, tal como a árvore, apresente qualquer alteração em sua substância.
O aspecto qualitativo traz em si a essência da soberania, não importando em negação do conceito as suas variações de ordem quantitativa. Assim, mesmo nos casos em que determinados poderes inerentes à noção de soberania sofram limitações, de maior ou de menor amplitude, não será correto falarmos em supressão da própria soberania. A soberania somente será afetada em seu aspecto qualitativo, logo, em sua essência, “quando a limitação da soberania quantitativa for ao ponto de esvaziar completamente o quantum dos poderes soberanos”.[50]
Compreendida a dicotomia estrutural da soberania, não haverá maior dificuldade em negar-lhe o caráter absoluto, concepção que tem se mostrado inaceitável ante as profundas modificações experimentadas pelo direito internacional a partir da Segunda Guerra Mundial. Auxiliará, ainda, à aceitação da divisibilidade dos poderes, o que permitirá uma limitação quantitativa da soberania.
As intervenções internacionais de ordem consensual têm igualmente contribuído para a revisão da concepção de soberania, sectárias da sua inarredável indivisibilidade. Celebrados em grande número, os tratados de proteção dos direitos humanos, por imporem aos Estados a obrigação de respeito às pessoas submetidas à sua jurisdição, possuem uma natureza especial em relação aos tratados clássicos, que somente geravam obrigações entre os Estados partes.[51] Geram reflexos na ordem interna e, em caso de descumprimento, expõem o Estado à crítica e à repulsa internacionais, isto sem olvidar a possível existência de mecanismos sancionadores específicos previstos no respectivo tratado.
Outro exemplo dessa última vertente pode ser constatado nas crescentes formas de integração entre os Estados, resultando na criação de órgãos ou organizações internacionais de integração, também denominadas de supranacionais, com a delegação[52] de poderes soberanos. Nesses casos, contrariamente ao que se verifica em relação às organizações de cooperação, é comum outorgar-lhes atribuição para aferir a própria correção das medidas adotadas pelos órgãos de soberania do Estado, acrescendo que suas deliberações, não raro, possuem aplicabilidade e eficácia direta na ordem jurídica dos respectivos Estados.[53] Persistindo a idéia de indivisibilidade, como explicar a delegação de poderes soberanos?
Também as intervenções não-consensuais, nos casos de graves violações aos direitos humanos (v.g.: a intervenção da ONU nas hipóteses de violação da paz), têm sido admitidas. Podem variar desde a emissão de pronunciamentos censurando determinada conduta ao próprio uso (lícito) da força. Nesses casos, é manifesta a impossibilidade de a intervenção ser explicada pelo conceito clássico de soberania, já que sensivelmente limitados os poderes passíveis de serem exercidos pelo Estado, no seu território e sobre os seus próprios cidadãos. Tais modalidades de intervenção também exigem novas reflexões em torno do entendimento que restringe as limitações quantitativas da soberania à “voluntária renúncia ao exercício de algumas atividades soberanas”, exercício que poderia ser “sempre reassumido” pelo Estado.[54] Se o raciocínio é exato no que diz respeito às intervenções consensuais, merece temperamentos quanto às não-consensuais.
Admitir limites à atuação do Estado, consensuais ou não-consensuais, não significa necessariamente negar a sua soberania. Como dissemos, o aspecto quantitativo da soberania, mera projeção de sua feição qualitativa, pode sofrer limitações ou balizamentos sem que o conteúdo essencial do poder estatal seja comprometido.[55][56] Em se tratando de proteção dos direitos humanos, o direito internacional não mais desempenha o papel de coordenador de individualidades iguais, absolutas e intangíveis, como eram concebidos os Estados, o que necessariamente impõe o redimensionamento do clássico conceito de soberania.
6. A Universalidade dos Direitos Humanos como Fator de Redimensionamento da Soberania Estatal
Reconhecendo-se que os direitos humanos aglutinam valores verdadeiramente essenciais a qualquer grupamento, daí derivando a sua fundamentalidade e a correlata necessidade de imperativo respeito pelos Estados, tornou-se inevitável e impostergável uma releitura do conceito de soberania. A universalidade aqui referida, no entanto, possui um colorido mais idealístico-formal que propriamente material, já que freqüentes as situações de inobservância. A partir dessa constatação, também a referida releitura da soberania, diuturnamente proclamada, deve encontrar ressonância no plano da realidade, legitimando a adoção de medidas para salvaguardar aqueles que tenham seus direitos básicos e essenciais violados pelo próprio Estado de que são nacionais.
O respeito aos direitos humanos, preconizado em inúmeros atos internacionais, principalmente a partir do segundo pós-guerra, tem contribuído à disseminação de ações protetivas e à sedimentação na percepção de cada indivíduo da existência de uma obrigação moral à sua conservação. Essa progressiva integração de determinadas normas internacionais de proteção dos direitos humanos, ainda que de origem convencional, ao direito consuetudinário, tem contribuído de forma decisiva para lhes conferir um alcance geral.[57]
Além disso, o dever de respeito aos direitos humanos há muito vem sendo realçado pela doutrina internacionalista e pode ser considerado ínsito nos princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas. Nessa linha, torna-se claro que a ordem internacional, em harmonia com as referidas fontes de direito internacional, contempladas no parágrafo primeiro do art. 38 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, deve preocupar-se com a sua impostergável concretização, atenuando os outrora intangíveis dogmas da soberania e disponibilizando mecanismos verdadeiramente eficazes para a sua proteção.
Esse processo evolutivo indica a existência de regras imperativas de direito internacional (ius cogens), possibilita o surgimento de obrigações erga omnes, atenuando o relativismo inerente à descentralização do sistema jurídico internacional e sedimenta o dever de observância dos interesses afeitos à sociedade internacional em seu conjunto.[58]
A proteção internacional dos direitos humanos é um forte indicador da universalidade (tomando-se como paradigma as normas internacionais e a retórica argumentativa) ou da tendência à universalidade (tendo-se em conta o relativismo cultural, os mecanismos de proteção e a efetiva concretização) desses direitos. À luz dessa universalidade, os Estados teriam o dever de respeitá-los e de promovê-los, com abstração de qualquer particularidade nacional ou regional e das concepções próprias das distintas culturas existentes.[59] Os direitos humanos, assim, se dissociariam da idéia de reciprocidade, impondo o seu respeito mesmo em relação aos nacionais dos Estados que normalmente os desrespeitem, sendo exigíveis de todos os Estados, independentemente das suas obrigações convencionais na matéria.[60]
O processo de internacionalização dos direitos humanos tem sido lento e penoso, mas sua importância à evolução jurídico-positiva desses direitos é inegável: sob a ótica da fundamentação, facilitou o acolhimento de seu caráter universal e supra-estatal, justificando a positivação na ordem interna sem o auxílio de concepções jusnaturalistas; no aspecto da titularidade, contribuiu para a ampliação dos sujeitos ativos de direito internacional, sendo reconhecida essa condição, observados determinados pressupostos, ao indivíduo; e quanto aos instrumentos de proteção, permitiu que a jurisdição interna não mais ocupasse um papel de exclusividade na tutela desses direitos.[61]
Embora pareça incontestável que “a proteção internacional do indivíduo importa numa grave ameaça à soberania do Estado”,[62] não se pode negar que a importância desses princípios exige sejam envidados esforços no sentido de assegurar a sua coexistência, evitando que um deles seja diuturnamente invocado para aniquilar o outro.
Apesar da disseminação da concepção de que os direitos humanos devem ser imperativamente observados por todos os Estados, sua transposição à realidade fenomênica, longe de ser direcionada pela estabilidade e pela universalidade indissociáveis da perspectiva idealístico-formal, tem sido caracterizada por momentos de ruptura e por uma inegável limitação de ordem espacial. Nos Estados de reduzida tradição democrática ou naqueles assolados por constantes conflitos armados, a instabilidade política e a ausência de uma sólida ideologia participativa em muito contribuem para a não-sedimentação do respeito ao ser humano como um valor verdadeiramente fundamental.[63]
Esse quadro não sofre alterações substanciais mesmo nos casos em que, no plano internacional, o contorno essencial dos direitos humanos tenha assumido a condição de ius cogens. Ainda que a observância desses valores passe por períodos de confortante estabilidade, as rupturas têm sido freqüentes, o que é um claro indicador de que a perspectiva material de observância dos direitos humanos está longe de ter seus contornos sobrepostos à perspectiva idealístico-formal.
A exemplo de um governo despótico ou antidemocrático, que jamais será rotulado como tal no respectivo texto constitucional,[64] também nos Estados onde a inobservância dos direitos humanos é uma constante, a apologia de sua importância é contraditoriamente entusiástica.[65] Diminutos são os Estados que não consagram o respeito aos direitos humanos como um valor fundamental, mas múltiplos são aqueles que não observam os mais comezinhos princípios relacionados à sua proteção. Além disso, ainda são marcantes determinadas diversidades culturais, permitindo que comportamentos aparentemente nocivos à dignidade humana[66] em certos Estados sejam tolerados ou mesmo legalizados em outros.[67]
Se a referência ao universalismo dos direitos humanos é constantemente prestigiada pelos seus defensores, não se pode ignorar o relativismo verificado na transposição da abstração de suas linhas estruturais para a realidade.[68] O universalismo, em verdade, seria uma “teoria do bloco dominante”, que almeja ver-se “convertida em uma ideologia”.[69] Essa ideologia, por sua vez, se põe em contraste com uma grande variedade de dimensões axiológicas, vendo-se amparada pela normatização internacional dos direitos humanos e tendo como meta-valor e ponto de equilíbrio a paz universal.[70]
Epílogo
O desafio que se apresenta no terceiro milênio é a impostergável necessidade de romper-se com as sólidas barreiras culturais (v.g.: a posição inferior da mulher em certas culturas), ideológicas (v.g.: a reminiscência de concepções marxistas), econômicas (v.g.: a insuficiência de recursos para a implementação dos direitos sociais) e técnicas (v.g.: a insuficiência de ratificações e as reservas apresentadas em atos internacionais convencionais) que ainda conferem força às dissonâncias existentes no trato dos direitos humanos.[71]
Ultrapassado esse obstáculo, com a disseminação de valores ético-culturais de natureza comum à sociedade internacional, será possível alcançar-se o aumento das zonas de convergência quanto ao imperativo respeito aos direitos verdadeiramente essenciais à dignidade humana.
[1] Para um maior desenvolvimento do tema, vide, de nossa autoria, “Proteção Internacional dos Direitos Humanos”, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.
[2] Cf. Paul Reuter, Droit International Public, 4ª ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1973, pp. 358/360.
[3] O Pacto de Paris, conhecido como Briand-Kellog, de 27 de agosto de 1928, condenou o recurso à guerra para a solução dos conflitos internacionais e vedou a sua utilização como instrumento de política nacional.[4] Cf. Manuel Diez de Velasco, Instituciones de Derecho Internacional Público, 13ª ed., Madrid: Editorial Tecnos, 2002, p. 871.
[5] Cf. André Weiss, Traité Théorique et Pratique de Droit International Privé, 2ª ed., Paris: Recueil Sirey, 1907, p. 1.[6] Cf. Josef Isensee, Braucht Deutschland eine neue Verfassung? Überlegungen zur neuen Schluβbestimmung des Grundgesetzes, Art. 146, Köln: Verlag Dr. Otto Schmidt KG, 1991, pp. 7 e ss.
[7] Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3a ed., 5a reimp., Coimbra: Almedina, 2002, pp. 81 a 93.[8] Cf. Maria Rita Saulle, Lezioni di Diritto Internazionale, Napoli: Edizioni Scientifique Italiane, 2001, p. 90.
[9] Cf. Patrick Daillier et alli, Droit International Public, 7ª ed., Paris: LGDJ, 2002, p. 95.[10] Mesmo os defensores do dualismo, que sustentam a necessidade de expressa previsão constitucional para uma possível preeminência da norma internacional na ordem jurídica interna, reconhecem que a proteção internacional dos direitos humanos e a responsabilidade penal internacional do indivíduo são pontos favoráveis à teoria monista. Ressaltam, no entanto, que as dificuldades na sua implementação fazem que a teoria monista seja interpretada como “uma antecipação de alterações na estrutura da sociedade internacional que podem ocorrer no futuro”. Cf. Luigi Ferrari Bravo, Lezioni di Diritto Internazionale, 4a ed., Napoli: Editoriale Scientifica, 2002, pp. 147/149. As dificuldades efetivamente existem, mas não nos parecem fortes o suficiente para comprometer os alicerces dessa teoria.
[11] Como se sabe, a preeminência do direito comunitário europeu sobre as ordens jurídicas nacionais impõe a não aplicação das últimas sempre que com ele colidam. O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias há muito reconheceu o princípio do primado (vide Processo no 6/642, Caso Costa c/ ENEL, j. em 15/07/1964, Recueil, p. 1141), tendo deixado expresso, nos Casos Internationale Handelsgesellschaft (Processo no 11/70, j. em 17/12/1970, Recueil, p. 1135) e Simmenthal (Processo no 106/77, j. em 09/03/1978, Recueil, p. 629), que o juiz nacional está autorizado a não aplicar uma lei nacional que esteja em contraste com o Direito Comunitário, ainda que referida lei encontre um fundamento adequado na Constituição do Estado membro. Cf. Florence Chautiel, Droit constitutionnel et droit communautaire, in RTDE no 3/395 (400), 1999. [12] Cf. Patrick Daillier et alli, Droit International Public, 7ª ed., Paris: LGDJ, 2002, p. 97; Jean-François Dobelle, L’application du Droit International: L’Introduction du Droit International Public dans le Droit Interne, in Leçons de Droit International Public, org. por Marc Perrin de Brichambaut et alii, Paris: Éditions Dalloz, 2002, p. 179 (179); José A. Pastor Ridruejo, Curso de Derecho Internacional Público y Organizaciones Internacionales, Madrid: Editorial Tecnos, 2003, p. 171; Manuel Diez de Velasco, Instituciones de Derecho Internacional Público, Madrid: Editorial Tecnos, 1999, p. 196; e Vezio Crisafulli, Lezioni di Diritto Costituzionale, vol. I, 2a ed., Padova: CEDAM, 1970, pp. 65/66. Em razão da eficácia limitada do direito internacional, o qual, sem a anuência da ordem jurídica interna, seria inapto a tornar nula a regra interna dele dissonante, há quem sustente que o primado daquele, embora imaginável, não corresponde à atual realidade das relações entre a ordem interna e a ordem internacional, sendo preferível a adoção da teoria dualista, que justifica a validade paralela de ambas. Nesse sentido: Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), 3a ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 87/89. Esse entendimento, no entanto, não obstante associado ao dualismo, em muito se aproxima da teoria monista moderada, com primado do direito internacional, adotada no texto. Ambas reconhecem o dever de o Estado compatibilizar a ordem interna com as obrigações assumidas no plano internacional, a liberdade na escolha dos meios adequados a tal compatibilização e a responsabilidade internacional do Estado caso descumpra esse dever, bem como afastam a idéia de imediata invalidade da norma interna que contrarie o direito internacional (Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, op. cit., pp. 82 a 93). Ademais, não se pode justificar a posição dualista com o simples fato de a norma interna dissonante do direito internacional continuar a vigorar, pois, não raro, leis inconstitucionais e regulamentos ilegais produzem efeitos e nem por isso se põe em dúvida a unidade da ordem interna (Cf. André Gonçalves e Fausto de Quadros, op. cit., p. 85).
[13] A referência a cidadãos é proposital, pois, em se tratando de nacionais de outros Estados, a situação exigiria reflexões complementares àquelas que nos propusemos realizar, especialmente em relação à existência de uma causa de justificação na invasão do território de um Estado por outro com o fim de proteger os direitos dos seus cidadãos, como é o caso do resgate armado de cidadãos no estrangeiro. A esse respeito, vide Eduardo Correia Baptista, O Poder Público Bélico em Direito Internacional: O Uso da Força pelas Nações Unidas em Especial, Coimbra: Livraria Almedina, 2003, pp. 200 a 225.
[14] Esse entendimento foi expressamente recepcionado pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional no Caso Lotus (França c/ Turquia), Sentença no 10, j. em 07/09/1927, PCPJI, Serie A, Recueil des Arrêtso 10, pp. 1/108, 1927. n[15] Cf. Juan Antonio Carrillo Salcedo, Soberanía de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Internacional Contemporáneo, 2a ed., Madrid: Editorial Tecnos, 2001, pp. 11/12. Lembra o autor que o direito internacional tradicional, surgido na Paz de Westphalia (1648) e consolidado entre o Congresso de Viena (1815) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), regulava as relações de coexistência e cooperação entre Estados soberanos. Sobre as relações internacionais no período anterior à Paz de Westphalia, marcadas pela instabilidade e pelo reduzido número de normas internacionais, normalmente adstritas a tratados bilaterais, vide: Judge C. F. Amerasinghe, The Historical Development of International Law – Universal Aspects, in Archiv des Völksrechts vol. 39, no 4, p. 367 (368/379), 2001.
[16] Nas palavras de Nicolas Politis (Les nouvelles tendencies du droit international, Paris, 1927, pp. 91/92, apud Carrillo Salcedo, op. cit., p. 13), “o Estado Soberano era para seus súditos uma jaula de ferro, em razão da qual eles não poderiam se comunicar juridicamente com o exterior senão por meio de estreitíssimas barras”. [17] Cf. Massimo Fragola, Sovranità degli Stati Membri e Garanzie a Protezione dei Diritti Umani nell’Ordinamento Comunitário, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol. XLII, noDroit International Public, 6a ed., Paris: Éditions Dalloz, 2002, pp. 255/256; e Santiago Ripol Carulla, El Consejo de Seguridad y la Defensa de los Derechos Humanos. Reflexiones a partir del Conflicto de Kosovo, in Revista Española de Derecho Internacional no 1, vol. LI, p. 59 (86), 1999. 2, p. 1435 (1440), 2001; Pierre-Marie Dupuy,
[18] Cf. Margarida Salema d’Oliveira Martins e Afonso d’Oliveira Martins, Direito das Organizações Internacionais, vol. I, 2a ed., Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, pp. 253/254.[19] Cf. Ian Brownlie, Principles of Public International Law, 6a ed., New York: Oxford University Press, 2003, p. 658.
[20] A competência interna do Estado soberano se projeta nos planos da competência territorial e da competência pessoal. A primeira alberga a noção de exclusividade, tratando-se de regra consuetudinária há muito reconhecida pelo Tribunal Internacional de Justiça (Casos Lotus, Estreito de Corfu, Rainbow Warrior) que autoriza o Estado soberano a recusar que qualquer outro Estado pratique atos de autoridade em seu território. Quanto à competência pessoal, indica que, observados os limites estabelecidos em convenções internacionais, cabe ao Estado atribuir, com exclusividade, a sua nacionalidade a pessoas singulares e coletivas, a navios, a aviões, a satélites etc. É o que esclarecem André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, op. cit., pp. 330/331; Marcel Sinkondo, Droit Internacional Public, Paris: Ellipses Edition Marketting, 1999, pp. 369/370; e Pierre-Marie Dupuy, op. cit., pp. 61/88. [21] Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., p. 64.
[22] A possibilidade de utilização da força física como mecanismo de concreção do poder estatal é evidenciada pela inscrição ultima ratio regum, grafada em antigos canhões (Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., p. 68).
[23] Georg Jellinek, Teoría General del Estado (Allgemeine Staatslehre), 1a ed., 2a imp., México: Fondo de Cultura Econômica, 2002, pp. 399/400.[24] Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., pp. 72/73.
[25] Cf. Vezio Crisafulli, op. cit., pp. 63/64; Giuseppe de Vergottini, Diritto Costituzionale, 3a ed., Padova: CEDAM, 2001, p. 71; Paolo Biscaretti di Rufia, Diritto Costituzionale, 15a ed., Napoli: Jovene Editore, 1992, p. 58; Sergio M. Carbone, I Soggetti e gli Attori nella Comunità Internazionale, in Istituzioni di Diritto Internazionale, org. por Sergio M. Carbone et alii, Torino: G. Giappichelli Editore, 2002, p. 1 (3/4). A unidade do poder é plenamente compatível com a existência de um sistema de coordenação funcional que, buscando prevenir o arbítrio, distribua o seu exercício entre distintos órgãos, que o exercerão de forma derivada e adstrita aos contornos estabelecidos por uma estrutura central. Nesse particular, é célebre a obra de Montesquieu, cuja primeira publicação data de 1748. Cf. De L’Ésprit des Lois, com notas de Voltaire, de Crevier, de Mably, de la Harpe e outros, Paris: Librairie Garnier Frères, 1927, Livro XI, Capítulo VI.
[26] Los Seis Libros de la República (Les Six Livres de la Republique, de 1576), 3a ed., Madrid: Editorial Tecnos, 1997. Segundo Bodin (Livro I), a soberania é um poder perpétuo e absoluto (p. 47) que enseja a independência em relação aos poderes internos e aos externos. Quanto aos primeiros, indica a desnecessidade de consentimento dos súditos para a validez e a eficácia das normas, já a independência frente aos poderes externos demonstra a igualdade entre os Estados. Resultando da consolidação do poder e da supremacia daí decorrente, a soberania será necessariamente ilimitada (Livro I, p. 49) e indivisível (Livro II, p. 89).[27] Cf. Giuseppe de Vergottini, op. cit., p. 70; e Costantino Mortati, Istituzioni di Diritto Pubblico, Tomo I, 10a ed., Padova: CEDAM, 1991, pp. 96/97.
[28] Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., p. 77; e Costantino Mortati, op. cit., p. 97.[29] The Second Treatise of Government: Essay concerning the true original, extent and end of civil government, 3a ed., Norwich: Basil Blackwell Oxford, 1976, publicado inicialmente em 1690, como parte da obra Two Treatises of Government.
[30] Op. cit., pp. 14 e ss.[31] Quanto ao “alicerce metafísico-teológico de que carece qualquer direito natural” (Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., p. 146), estaria ele associado a paradigmas de ordem religiosa, com especial deferência ao cristianismo na cultura ocidental [Cf. São Tomás de Aquino, Os Princípios da Realidade Natural (De principiis naturae), trad. de Henrique Pinto Rema, Porto: Porto Editora, 2003, especialmente pp. 79/80]. Apesar da pureza dos fins, sendo concebida como antagonismo ao poder estatal absoluto (absoluter staatlicher Herrschaft), observa Heiner Bielefeldt (in Philosophie der Menschenrechte, Grundlagen eines weltweiten Freiheitsethos, Frankfurt: Primus Verlag, 1998, p. 162) que essa teoria não logra demonstrar como seria possível conceber um direito (Recht) dissociado de uma relação jurídica (Rechtsbeziehung).
[32] O próprio Bodin (op. cit.) ressaltou a existência desses limites, excluindo a possibilidade de o órgão de poder suprimir ou desvirtuar as normas fundamentais à organização do Estado e à fundação do Reino, por já estarem incorporadas à Coroa (Livro I, p. 56), o mesmo ocorrendo em relação às leis naturais e divinas (Livro I, p. 53).[33] Cf. Emmanuel Joseph Sièyes, A Constituinte Burguesa (Qu’est-ce que le tiers état), trad. de Norma Azevedo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.
[34] Cf. Henri Legohérel, Histoire du Droit International Public, Paris: Presses Universitaires de France, 1996, pp. 48/49. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1789, em seu art. 3o, consagra “o princípio de que toda soberania reside essencialmente na Nação. Nenhum órgão e nenhum indivíduo podem exercer uma autoridade que dela não emane expressamente”. Esse preceito, além de retirar do rei toda a soberania, a concentrou na Nação. Se somente a Nação é soberana, os indivíduos apenas podem exercer uma autoridade, não a soberania. A idéia de “soberania nacional” é expressamente referida no art. 3o da Constituição francesa de 1958, repetindo prescrição do art. 3o da Carta de 1946. Com isto, foi assumida posição quanto à controvérsia entre as teorias da “soberania nacional” e da “soberania popular”. A primeira, apesar de situar a soberania na Nação - sendo a democracia dela representativa, somente materializando-se pela ação dos seus representantes –, em última ratio, tinha o povo como o seu titular. Para a “soberania popular”, que se afastava do componente sociológico (a idéia de Nação), o povo é soberano, podendo agir diretamente. Cf. François Luchaire, La Souveraineté, in Revue Française de Droit Constitutionnel no 43, p. 451 (452), 2000. [35] Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., pp.79/80.
[36] Cf. Patrick Daillier et alli, op. cit., p. 425. Situação peculiar pode ser verificada no âmbito de determinados Estados federais, nos quais os Estados federados, embora gozem de certa autonomia normativa, não possuem um amplo e irrestrito contato com o Direito Internacional, o que exclui o mencionado “imediatismo normativo”, a possibilidade de serem considerados Estados perante a sociedade internacional e, conseqüentemente, o reconhecimento de sua plena personalidade jurídica internacional. Cabe ao Estado federal o estabelecimento de relações internacionais, o exercício dos direitos e o cumprimento das obrigações delas decorrentes. A situação seria simples não fosse o fato de que a ordem constitucional interna pode impedir determinadas interferências do Estado federal junto às unidades federadas. Assim, embora seja internamente autônomo em relação aos Estados federados, é bem possível que o Estado federal, por representar a federação perante a sociedade internacional, seja responsabilizado perante o Direito Internacional em virtude do comportamento dos Estados membros. Essa situação foi levada a extremos no Caso Bread, que opunha o Paraguai aos EUA perante o Tribunal Internacional de Justiça. O Caso versava sobre um cidadão paraguaio condenado à morte por um Tribunal da Virgínia. Submetida a questão ao T.I.J, foi determinado, em caráter cautelar, que “os Estados Unidos devem tomar todas as medidas de que dispõem para que M. Angel Francisco Bread não seja executado enquanto a decisão definitiva na presente instância não tenha sido proferida.” Em 14 de abril de 1998, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou o pedido de suspensão da sentença de morte, apresentado imediatamente após a decisão do T.I.J., concluindo que “se o Governador (da Virgínia) desejar aguardar a decisão do T.I.J, isto releva das suas prerrogativas. Mas nada na nossa jurisprudência atual nos permite fazer esta escolha no seu lugar”. Na mesma noite, Bread foi executado. Cf. Patrick Daillier et alli, op. cit., pp. 426/428.[37] Cf. Reinhold Zippelius, op. cit., pp. 84/85.
[38] Cf. Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 323.[39] Cf. Carrillo Salcedo, op. cit., p. 11. Segundo o autor, podem ser mencionadas as seguintes notas características do antigo sistema jurídico regulador das relações de coexistência e de cooperação entre entidades políticas soberanas e autônomas: a) voluntarismo – as normas emanariam da vontade expressa ou tácita dos Estados; b) relativismo – o Estado somente estava vinculado a uma obrigação quando tivesse anuído em sua criação ou a tivesse reconhecido; c) neutralidade – o Direito Internacional estava desvinculado de qualquer inspiração de ordem axiológica ou ideológica; e d) positivismo – sem prejuízo da importância do costume, o Direito Internacional aglutinava um conjunto de normas jurídicas de lex lata, não regras morais ou de aspiração de lege ferenda (p. 12).
[40] Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, op. cit., pp. 57/80, com ampla análise das teorias que procuram demonstrar os fundamentos do Direito Internacional.[41] O último Estado a aderir às Nações Unidas (que totaliza 192 Estados membros) foi Montenegro, em 28 de junho de 2006, logo após a sua declaração de independência da Sérvia. Além disso, inúmeras associações e organizações internacionais possuem o status de observadoras, o mesmo ocorrendo com a Santa Sé.
[42] Cf. Norberto Bobbio et alii, Dizionario di Politica, Torino: Unione Tipografico- Editrice Torinese, 1976, pp. 857 a 862.[43] Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, op. cit., p. 90.
[44] Cf. Patrick Daillier et alli, op. cit., pp. 428/435.[45] Segundo o art. 2o, no 1, da Carta das Nações Unidas, “a organização baseia-se no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros”. À evidência, trata-se de igualdade situada no plano idealístico-formal, pois, no plano material, fatores políticos, econômicos ou mesmo bélicos contribuem para aumentar a perspectiva de efetividade dos interesses de determinados Estados em detrimento dos demais.
[46] Cf. Patrick Daillier et alli, op. cit., pp. 430/431. Os autores ainda identificam uma outra conseqüência da soberania do Estado: “a presunção de regularidade dos atos estatais”. Considerando que os atos do Estado somente são controlados “a posteriori”, aquele que seja acusado de violar o Direito Internacional assumirá uma postura defensiva, o que obriga os seus acusadores a demonstrarem o abuso de autoridade ou a má-fé (pp. 431/432). Esse entendimento, em linha de princípio, é mero desdobramento do princípio geral de direito de atribui o ônus da prova a quem alega, o que pode vir a ser afastado ou remediado a partir das obrigações internacionais assumidas pelo Estado. [47] Cf. Georg Jellinek, op. cit., pp. 450/456. Nas palavras de Duguit, a soberania é “una, indivisível, inalienável e imprescritível” (Manuel de Droit Constitutionnel, 4a ed., Paris: E. de Boccard, 1923, p. 85).
[48] Fausto de Quadros, Direito das Comunidades Européias e Direito Internacional Público, reimpressão, Coimbra: Livraria Almedina, 1991, pp. 338/339.[49] Fausto de Quadros, Direito das Comunidades ..., op. cit., p. 339.
[50] Fausto de Quadros, Direito das Comunidades ..., op. cit., p. 339.[51] Cf. Carolina Loayza e Nicolas de Piérola, Efectos Jurídicos Internacionales por la Expedición y aplicación de leyes violatorias de la Convención Americana sobre Derechos Humanos, Comentários a la Opinón Consultiva OC-14/94 de la Corte Interamericana de Derechos Humanos del 9 de diciembre de 1994, in Anuario de Derecho Internacional no XIII, p. 213 (233), 1997.
[52] Sobre a distinção entre transferência e delegação, indicando a primeira uma cessão definitiva de poderes e a segunda uma cessão temporária, com a possibilidade de reaquisição dos poderes cedidos, vide Fausto de Quadros, Direito das Comunidades ..., op. cit., pp.196/249. Por ser admissível a denúncia aos tratados, não se deve falar em renúncia, mas unicamente em limitação de soberania. Cf. Giuseppe de Vergottini, op. cit., p. 47). Vergottini ainda observa que falar em transferência (rectius: delegação) de poderes soberanos é um “non senso”, pois isto somente seria adequado se o ente beneficiário da transferência fosse soberano, sendo irrelevante a natureza soberana do ente que operou a transferência: “a atribuição ou a competência transferida não é soberana ex se, mas unicamente quando a sua titularidade pertence a um sujeito soberano” (op. cit., p. 48). Não obstante a coerência do argumento, como o caso é de delegação, não de transferência, o Estado mantém a titularidade dos poderes que serão temporariamente exercidos pela organização, o que justifica falarmos em delegação de poderes soberanos. [53] Em relação à estrutura jurídica e ao alcance das limitações que impõem à soberania dos Estados, as organizações internacionais podem ser de duas espécies: organizações intergovernamentais, de coordenação ou de mera cooperação e organizações supranacionais, de unificação ou de integração. As primeiras configuram o tipo clássico e são a grande maioria das organizações existentes, sendo caracterizadas pelo fato de os Estados (ou mesmo outros sujeitos de direito internacional, como as próprias organizações internacionais) se associarem e estabelecerem relações de cooperação com o fim de realizar os objetivos materiais da organização. Nesses casos, em rigor, a organização não realiza qualquer intervenção direta na ordem interna dos Estados membros e não é divisada qualquer limitação à soberania estatal, limitando-se à coordenação dessas soberanias. Quanto às organizações supranacionais ou de integração, apareceram após a Segunda Guerra Mundial, tendo como exemplos mais característicos as comunidades européias (o designativo supranacional apareceu pela primeira vez no Tratado de Paris, de 1951, que instituiu a CECA) e, em situação ainda embrionária, o MERCOSUL. São caracterizadas pela limitação da soberania dos Estados, os quais delegam parte dos seus poderes soberanos a essas organizações. Com isto, são estabelecidas, em determinados domínios, relações de subordinação entre os Estados e a organização de que são membros, possibilitando a influência direta da organização na ordem interna dos Estados e a própria revisão de determinados atos praticados, inclusive com o acesso direto dos sujeitos de direito interno aos órgãos da organização. Na primeira categoria, tem-se uma relação de cooperação, na segunda uma relação de subordinação para fins de integração. A inclusão da organização nessas categorias dependerá da preponderância de uma ou outra característica, já que é factível a presença de ambas em uma mesma organização. Cf. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros, op. cit., pp. 421/424; João Mota de Campos et alii, Organizações Internacionais, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp. 51/53; Patrick Daillier et alii, op. cit., pp. 578/579; e Joe Verhoeven, Droit International Public, Bruxelas: Larcier, 2000, p. 209. José A. Pastor Ridruejo (op. cit., pp. 655/657), bem como Margarida Salema d’Oliveira Martins e Afonso d’Oliveira Martins (op. cit., pp. 77/82), dividem as organizações de mera cooperação nas seguintes categorias: a) de coordenação – articulam a atuação dos Estados ; b) de controle – zelam pela observância de um tratado; e c) operacionais – atuam diretamente no plano internacional, utilizando-se de processos financeiros, econômicos e materiais.
[54] Costantino Mortati, op. cit., pp. 99/100.[55] O Conselho Constitucional francês, na Decisão no 188 DC, de 22 de Maio de 1985 (confirmada pelas Decisões no 294 DC, de 25 de Julho de 1991 e no 308 DC, de 9 de abril de 1992) , relativa a Protocolo celebrado no âmbito do Conselho da Europa e que dizia respeito à abolição da pena de morte, fixou, de forma discricionária, o seguinte conteúdo essencial da soberania estatal: “o dever de o Estado assegurar o respeito às instituições da República, a continuidade da vida da Nação e a garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos”. Cf. François Luchaire, op. cit., p. 458.
[56] Nesse sentido, é sugestivo o art. 11 da Constituição italiana, ao dispor que o Estado “aceita limitações de soberania onde elas sejam necessárias para possibilitar um sistema jurídico de justiça e paz entre as nações”. A alínea 15 do Preâmbulo da Constituição francesa de 1946, incorporado à Carta de 1958, consagra disposição praticamente idêntica.[57] Cf. Júlio D.González Campos et alii, Curso de Derecho Internacional Público, Madrid: Civitas, 2003, p. 752.
[58] Cf. Bruno Nascimbene, L’Individuo e la Tutela Internazionale dei Diritti Umani, in Istituzioni di Diritto Internazionale, a cura de Sergio M. Carbone, Riccardo Luzzatto, Alberto Santa Maria, Torino: G. Giappichelli Editore, pp. 280/281; e Carrillo Salcedo, op. cit., pp. 153/158.[59] Cf. Bruno Simma, The Charter of the United Nations, A Comentary, vol II, 2a ed., Nova Iorque, Oxford University Press, 2002, p. 923; e Júlio D.González Campos et alii, op. cit., p. 751.
[60] Cf. Marcel Sinkondo, op. cit., p. 414. O art. 60, V, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, é expresso no sentido de que “a condição de reciprocidade é excluída no que concerne às disposições relativas à proteção humana contida nos tratados humanitários”. Tratando-se de regra indiscutivelmente costumeira, é ela extensiva aos Estados que não ratificaram a Convenção. Cf. François Luchaire, op. cit., p. 456.[61] Cf. Antonio Henique Pérez Luño, , Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion, 8a ed., Madrid: Editorial Tecnos, 2003, pp. 129/130.
[62] Cf. Patrick Daillier et alii, op. cit., p. 658.[63] O fenômeno da “globalização”, metáfora condensadora da nova realidade, permite visualizar uma clara dicotomia: a contraposição entre aqueles que têm seus direitos fundamentais diuturnamente reconhecidos e aqueles para os quais direitos dessa natureza são signos lingüísticos destituídos de conteúdo, daí a felicidade da expressão cunhada por José Manuel Pureza ao referir-se à existência de um “apartheid global” (O Patrimônio Comum da Humanidade: Rumo a um direito internacional da solidariedade?, Coimbra: Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1995, pp. 15 e ss).
[64] O art. 1o da Constituição cubana fala por si: “Cuba es un Estado socialista de trabajadores, independiente y soberano, organizado con todos y para el bien de todos, como república unitaria y democrática ...”.[65] Benedetto Conforti (Diritto Internazionale, 6a ed., Napoli: Editoriale Scientifica, 2002, p. 208) observa que muitos Estados aderentes aos pactos internacionais não têm grande familiaridade com a tutela dos direitos humanos, o que justifica a suspeita de que várias adesões foram inspiradas em mera propaganda, não estando acompanhadas de uma séria vontade de cumprir as obrigações assumidas.
[66] Sobre os contornos gerais da dignidade humana, vide, de nossa autoria, “Dignidade da Pessoa Humana: Referenciais Metodológicos e Regime Jurídico”, in Revista Brasileira de Direito Constitucional no
4/380, 2004.[67] Analisando o fundamento da regra do art. 30, § 4o, da Constituição portuguesa (“Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”), afirmou o Tribunal Constitucional [1a Seção, Acórdão no 522/95, Proc. no 183/94, Rel. Cons. Monteiro Diniz, j. em 28/09/1995, ATC vol. 32, 1995, pp. 345 a 354 (352)]: “Aliás, tudo o que vem de dizer-se tem sido referido em diversos arestos deste tribunal (Cf. acórdãos nºs 16/84, 165/86 e 353/86, Diário da República, respectivamente, 2ª série, de 12 de Maio de 1984, 1ª série, de 3 de Junho de 1986 e 2ª série, de 9 de Abril de 1987) sublinhando-se aí, designadamente, que ‘no fundo, o nº 4 do artigo 30º da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de direito democrático que estruturaram a nossa lei fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1º); e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2º)’. E a seguir ajuntou-se que ‘daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade’, para se concluir assim: ‘Ora, se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria um flagrante atentado contra o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana’”. Por outro lado, o art. 15, III, da Constituição brasileira determina a suspensão dos direitos políticos enquanto perdurarem os efeitos da condenação criminal transitada em julgado, suspensão esta que é automática, acarretando, inclusive, a perda do mandato eletivo (STF, RE no 418.876/MT, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Inf. no 350), isto sem olvidar o art. 92 do Código Penal, que dispõe sobre a perda do cargo do agente público condenado a pena superior a 1 (um) ano nos crimes contra a administração e superior a 4 (quatro) nos demais casos. Aqui, os interesses individuais foram relegados a plano secundário, sendo prestigiado o interesse público correlato à ocupação do cargo que a condenação criminal demonstrou não ter o agente aptidões ético-morais para ocupar. A dicotomia de valores consagrados pelas Cartas brasileira e portuguesa bem demonstra que a noção de dignidade pode apresentar profundas variações de ordem espacial, o que permite concluir que, embora seja um valor inerente ao homem e transcendente ao direito posto, a constitucionalização de matérias afeitas à dignidade confere maior especificidade a esse princípio.
[68] Sobre o universalismo que a concepção individualista ocidental e moderna dos direitos humanos procura atribuir a si própria, Eusebio Fernández-García (Dignidad Humana y Ciudadanía Cosmopolita, Madrid: Editorial Dykinson, 2001, p. 66) realiza uma crítica que, embora vigorosa, é extremamente realista: “Nem todas as tradições culturais têm tido ou têm o mesmo valor a partir da perspectiva do reconhecimento, desenvolvimento e garantia dos direitos humanos. Uma Declaração universal dos direitos fundamentais é incompatível com a defesa do relativismo cultural e moral. Isso significaria que a universidade dos direitos tem preferência sobre a preservação de identidades culturais antidireitos”. Anteriormente, o autor havia ressaltado que, em determinadas sociedades, como a hindu, os direitos derivam dos deveres, que assumem uma posição de preeminência no organismo social, enquanto que, à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem, os deveres estariam determinados por esses deveres (op. cit., p. 65). Outros exemplos de acentuada diversidade podem ser vistos na Declaração dos Direitos do Homem no Islã, adotada pela Organização da Conferência Islâmica, no dia 5 de Outubro de 1990, no Cairo - quando afirma que “a comunidade islâmica é a melhor comunidade que Deus criou” e que “o islã é a religião natural do homem”, o que definitivamente não se compatibiliza com a liberdade religiosa propagada pelo ocidente – e na prática de um considerável número de países asiáticos, especialmente Singapura e Malásia, que professam os valores de Confúcio e centram o foco de suas atenções nos deveres dos indivíduos perante a sociedade, na disciplina e no respeito à autoridade. Cf. Jean-François Dobelle, Le Droit International et la Protection des Droits de L’Homme, in Leçons de Droit International Public, org. por Marc Perrin de Brichambaut et alii, Paris: Éditions Dalloz, 2002, p. 371 (383/384). Bruno Nascimbene (op. cit., p. 290) acrescenta que a Carta da Liga Árabe, em seus arts. 32 a 35, estabelece nítidas discriminações entre nacionais e estrangeiros por razões religiosas. Também Bruno Simma (op. cit., vol. II, p. 924) lembra que a China e os Estados islâmicos professam o relativismo dos direitos humanos. [69] Cf. Marco Ruotolo, La “Funzione Ermeneutica” delle Convenzioni Internazionali sui Diritti Umani nei Confronti delle Disposizioni Costituzionali, in Rivista Diritto e Societá no 2, pp. 291 a 319, 2000, p. 318.
[70] Cf. Marco Ruotolo, op. cit., p. 318.[71] Cf. Pierre-Marie Dupuy, op. cit., pp. 228/232.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
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