SUMÁRIO
1. Introdução; 2. O conceito de acesso à justiça; 3. Da chegada dos portugueses à independência; 4. Da independência à Proclamação da República; 5. O Período Republicano; 6. A década de 80; 7. A Constituição de 1988 e seus desdobramentos; 8. Considerações finais; 9. Bibliografia
PALAVRAS-CHAVE
Acesso à Justiça – Direito – Constituição
1 – INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende traçar um panorama da evolução do direito ao acesso à justiça no Brasil. Para tanto, apresenta inicialmente algumas considerações sobre seu conceito, citando a visão de alguns autores que tentaram sistematizá-lo.
Em seguida, inicia-se propriamente o esboço histórico a que se propõe e para tanto o texto é organizado de forma a dar uma seqüência cronológica, respeitando a periodização tradicional da História do Brasil começando com o Brasil Colônia, passando pelo período do Império, chegando finalmente à República, com ênfase para as décadas finais do século XX.
Em sua elaboração procurou-se apresentar a evolução legislativa que sedimentou o caminho para a constitucionalização do direito ao acesso à justiça no Brasil, o que ocorreu definitivamente com a Constituição de 1988.
2 - O CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA
O direito de acesso à Justiça pode ser identificado como sendo um tema de fundamental importância em um país como o Brasil alicerçado em profundas desigualdades sociais. Tais desigualdades por não serem objeto de efetiva preocupação dos governantes competentes para a solução deste problema, deságuam muitas vezes no Judiciário e daí a necessidade constante de implementação deste direito e o aperfeiçoamento de seus mecanismos de efetivação.
A compreensão exata deste tema, necessária a sua efetivação não é matéria afeita apenas à Ciência do Direito, mas também a outras disciplinas que podem dar sua colaboração e por isto, deve, necessariamente, ser estudado por diversas áreas do conhecimento e quanto maior o número de estudiosos a debruçarem-se sobre essa problemática, maior será a contribuição na solução dessa grande demanda que ainda assola a sociedade brasileira.
Como preleciona Kazuo Watanabe,
“todos os obstáculos à efetiva realização do direito [acesso à justiça] devem ser corretamente enfrentados, seja em sede de Ciência Política e de Direito Constitucional, na concepção de novas e inovadoras estruturas do Estado e de organização mais adequada ao Judiciário, como também na área da Ciência Processual, para a reformulação de institutos e categorias processuais e concepções de novas alternativas e novas técnicas de solução dos conflitos” [i].
Pode-se afirmar que na segunda metade do século XX, o Direito Processual enquanto ciência e prática sofreu uma profunda mudança no que concerne ao seu objeto. Tal transformação vai desde sua definitiva afirmação epistemológica até a renovação constante e acentuada dos seus dogmas.
“A problemática do acesso à justiça, embora já se fizesse sentir no começo desse século, somente se fez perceber com mais intensidade no pós-guerra, até porque o direito de acesso à justiça, com a consagração constitucional dos chamados novos direitos, passou a ser fundamental para a própria garantia desses direitos” [ii].
Assim é que, nos anos 70, juristas do mundo inteiro, destacando-se M. Cappelletti e B. Garth empenharam-se na tarefa de identificar as razões pelas quais os processos judiciais apresentavam custos tão elevados e decisões ineficazes, em razão mesmo do excessivo tempo das demandas, provocando na sociedade o descrédito na função jurisdicional do Estado.
Retomou-se nessa época a discussão sobre a questão do acesso à justiça que, como foi bem colocado pelos autores acima citados
“é [um tema] reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico, o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individualmente e socialmente justos” [iii].
Desde então, no plano nacional, vários autores também passaram a discutir e ainda discutem amplamente o tema e diversas tentativas de sistematização conceitual foram levadas adiante buscando entender de forma científica os diversos matizes que o referido direito pode apresentar.
Para Carreira Alvim, acesso à Justiça
“compreende o acesso aos órgãos encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem assim com a representação (em juízo) a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social”[iv].
Para Horácio W. Rodrigues, citado pelo próprio Carreira Alvim o termo acesso à justiça é bastante vago e tem vários sentidos, sendo que dois, sendo que,
“o primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e Poder Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão Justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano. E conclui que esse último, por ser mais amplo, engloba no seu significado o primeiro” [v].
Desta forma, estabelecido o pressuposto segundo o qual o direito ao acesso à justiça deve ser uma preocupação central da Ciência do Direito e de outras disciplinas científicas Cappelletti e Garth sugerem que
“os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e que qualquer regulação processual, inclusive a criação ou o encorajamento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante sobre a forma como opera a lei substantiva – com que freqüência ela é executada, em benefício de quem e com que impacto social. O acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido, é o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos da moderna ciência jurídica[vi].
Ou seja, “a temática do acesso à justiça constitui a visão metodológica do processualista que realmente considera a perspectiva constitucional. É que o tema do acesso à justiça trabalha a teoria do processo a partir da idéia de democracia social. O acesso á justiça é o rótulo da teoria processual preocupada com a questão da justiça social, justamente posta pela democracia social”[vii].
Segundo Marinoni
“Podemos dizer que o acesso à Justiça é o tema-ponte a interligar o processo civil com a justiça social. Tal perspectiva, porém, traz à tona, ainda, a desmitificação da neutralidade ideológica do juiz e do processualista. O juiz e o processualista, se um dia realmente se pensaram ideologicamente neutros, mentiram a si mesmos, pois a afirmação da neutralidade já é uma opção ideológica do mais denso valor, a aceitar e a reproduzir o status quo” [viii].
Uma vez feitas essas considerações iniciais, retorna-se aquele que é o propósito central desse trabalho qual seja, uma breve análise da evolução histórica do instituto do acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro.
3 - DA CHEGADA DOS PORTUGUESES À INDEPENDÊNCIA
O conceito de acesso à justiça e os instrumentos que possibilitam sua efetivação são relativamente novos a história do Brasil. Datam, sobretudo, das últimas décadas do século XX. Entretanto, faz-se necessário um retorno ao passado para melhor compreender a evolução dos diversos aspectos que o informam.
Pode-se dizer que desde a chegada dos Portugueses ao Brasil até o final do século XVIII e início do século XIX, muito pouco ou quase nada se falou sobre o acesso à justiça no ordenamento jurídico luso-brasileiro. Identifica-se algo muito rudimentar nas chamadas Ordenações Filipinas. Essas segundo noticia Paulo César Pinheiro Carneiro[ix], passaram a vigorar no Brasil a partir de 11 de Janeiro de 1603 e continham algumas disposições relativas a um suposto direito das pessoas pobres e miseráveis terem patrocínio de um advogado, o que parece bastante avançado para a época.
Esse mesmo autor identifica outro aspecto relevante nesse texto legal do período colonial, aspecto esse que concerne à igualdade de armas e de defesa entre as partes menos e mais favorecidas e cita o dispositivo que lá está presente nos seguintes termos, “o juiz deve sempre preferir o advogado de mais idade e de melhor fama ao mais moço e, principalmente, a fim de que não seja mais perito o da parte contrária”[x].
Nos séculos XVII e XVIII, a Europa vivia um importante momento de sua história com a eclosão das Revoluções Burguesas, sobretudo da Revolução Francesa, que legou ao mundo seu ideário de igualdade, liberdade e fraternidade e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. Deste lado do Atlântico, uma nova nação surgia como um farol a iluminar o horizonte sombrio das demais colônias americanas que tristemente dormitavam sob o julgo opressor de Portugal e da Espanha. Tratava-se dos Estados Unidos da América, Estado que de forma prodigiosa tornava-se independente e quebrava os laços coloniais que os ligavam ao velho mundo, à velha potência imperial britânica.
Fruto dos ideais iluministas que vicejaram na Europa nessa época, esses movimentos deram uma nova face ao mundo, sepultando o que restava das antigas instituições sociais remanescentes da era feudal como, por exemplo, o absolutismo monárquico e o mercantilismo, além de terem alçado a burguesia ao centro do poder político.
Entretanto, no Brasil, poucos efeitos surtiram tais revoluções. Ainda estávamos imersos nas trevas da colonização com todas as limitações daí decorrentes. Apenas lampejos desses ideais foram vistos em movimentos isolados tais como a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana, contudo sem grandes resultados práticos do ponto de vista político e jurídico[xi].
4 - DA INDEPENDÊNCIA À PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA
No início do século XIX, podemos dizer que o sistema colonial que vigorava desde as grandes navegações dava mostras de esgotamento. As colônias americanas, embaladas pelo exemplo dos Estados Unidos, uma após a outra, conseguiram romper seus laços econômicos e políticos com as antigas metrópoles européias e no Brasil não foi diferente.
Embora um pouco atrasado, em 1922 é proclamado a sua independência, instaurando um regime imperial politicamente desvinculado de Portugal, embora com forte submissão econômica ao império britânico.
Após esta ruptura, do ponto de vista jurídico e, principalmente, no que se refere ao tema em comento, poucas mudanças ocorreram. Ainda era muito cedo para se falar em acesso à justiça em um país alicerçado em um regime escravocrata e recém saído das amarras do sistema colonial.
Entretanto, alguns acenos foram dados pela Constituição de 1824, a primeira a ser elaborada no Brasil e que se propunha a dar o arcabouço jurídico do novo Estado que ora emergia no cenário internacional. Em que pese a presença da bizarra instituição do Poder Moderador[xii], nesta Carta podemos vislumbrar alguns avanços, sobretudo em seu Artigo 179 que diz respeito aos direitos civis e políticos dos cidadãos[xiii]. Nele já se previa “a liberdade de imprensa (nº 4), a liberdade religiosa (nº 5), a inviolabilidade do domicílio (nº 7) e alguns acenos de cunho social, como a garantia dos socorros públicos (nº 31) e a instrução primária (nº 32)[xiv].
Ademais, “é interessante notar que a Constituição Federal de 1824, em seu Artigo 161, dispunha que: ‘Sem se fazer constar que se tem intentado o meio da reconciliação não se começará processo algum’[xv], ou seja, já se vislumbrava um início de valorização da conciliação como meio idôneo à solução de conflitos, o que, para a época constituía um grande avanço (ainda que somente no plano das idéias).
Fatores de ordem econômica, política, social e ideológica que, pela modesta pretensão deste trabalho, não serão objeto de análise, levaram ao surgimento das condições que propiciaram a Proclamação da República em 1889.
A partir desse momento, o Brasil passou por diversas fases históricas importantes, com características particulares e que engendraram uma série de Constituições, representando essas ora um avanço ora um retrocesso na evolução jurídica brasileira.
Pode-se afirmar que após a Proclamação da República, algo realmente relevante no que concerne ao tema em comento surgiu somente com a Constituição de 1934. Essa, grandemente influenciada pela Constituição de Weimar trouxe em seu bojo, pela primeira vez, algumas garantias trabalhistas (Artigo 121) tais como o salário mínimo, férias, o sindicalismo, a Justiça do Trabalho (Art. 122), dentre outras. É também ali que se vislumbra pela primeira vez o direito à assistência judiciária para os pobres, além da Ação Popular, pois previa o seu artigo 113, nº 38 que “qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios”[xvi].
Em 1937, Getúlio Vargas promove um golpe de Estado, iniciando um novo período da historia brasileira e dando ensejo a um dos maiores retrocessos políticos e jurídicos que se tem notícia.
Uma de suas primeiras e mais drásticas medidas foi a outorga da Constituição de 1937, lançando desta forma as bases de um Estado autoritário e centralizador com a nefasta previsão dos decretos-leis (Artigo 180). Chega-se ao descalabro de autorizar a possibilidade de revisão de decisões judiciais, como se depreende da leitura do Artigo 96 e seu parágrafo que dizia
“no caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.”.
Como preleciona José Afonso da Silva, “a Carta de 1937 não teve aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava como órgão do Executivo” [xvii].
Entretanto, em que pese todas as arbitrariedades, foi nesse período que foi editado um dos mais importantes diplomas legais do Brasil (amado por uns e odiado por outros), a Consolidação das Leis do Trabalho que até hoje rege as relações capital/trabalho e ainda representa um marco divisor no ordenamento jurídico nacional, pois foi “o primeiro diploma legal que preocupou com o sentimento de coletividade, se opondo ao individualismo dominante”[xviii].
Esta norma trás grandes novidades no que concerne ao tema acesso à justiça, pois ela “deu ênfase à via da conciliação extrajudicial para dirimir conflitos, prevendo em título próprio a organização sindical (Titulo V), conferindo legitimação aos sindicatos para celebrar convenções ou acordos coletivos do trabalho (Artigo 612)”[xix]. Também no que concerne ao processo ela foi absolutamente inovadora, pois previa um procedimento rápido, informal e com ênfase na conciliação para a solução das pendências trabalhistas.
Após os anos nebulosos do Estado Novo, mais uma vez a engrenagem da história é colocada em movimento e instaura-se no Brasil o primeiro período que se pode chamar de democrático. O grande baluarte desse regime foi a Constituição de 1946.
Na década de sessenta, como de resto sempre foi freqüente na história do Brasil, mais uma vez os militares tomaram o poder e com eles vêm à tona a ideologia das forças armadas que atinge seu ponto máximo na chamada doutrina de segurança nacional e o AI-5[xx]. Novamente o Brasil submerge em um sombrio período de ditadura que, se por um lado representou um retrocesso, por outro, inegavelmente, foi profícuo na elaboração legislativa. Paradoxalmente, leis fundamentais na garantia de direitos foram produzidas nesse período e como exemplos, dentre outros, podemos citar a lei que dispõe sobre a Ação de Alimentos[xxi] e o próprio Código de Processo Civil[xxii].
6 - A DÉCADA DE 80
Em 1979, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei da Anistia[xxiii] e os exilados políticos agora poderiam voltar ao Brasil. Neste ano o AI-5 também foi revogado e a Lei de Segurança Nacional, instrumento jurídico do autoritarismo do regime foi abrandada.
Embalados por estes fatos e pelos ventos da mudança, no início da década de 80 os movimentos de resistência ao regime militar ganham relevo, percebendo-se claramente uma aglutinação de forças dentro da sociedade civil lutando pela liberdade política e pela redemocratização do país.
Com o retorno dos exilados ao Brasil uma onda de idéias democráticas invade o cenário político, o que culminou com a campanha pelas “Diretas Já” em que multidões tomaram as ruas das cidades em comícios, numa mobilização popular raramente vista na história nacional.
Nesse período, ganha corpo no Brasil um verdadeiro movimento de reflexão acerca do tema do acesso à justiça, com uma profícua e valiosa produção doutrinária e teórica.
Segundo Paulo Cezar Pinheiro Carneiro,
“no campo do direito, e em especial do processual, ponto de partida para uma mudança de mentalidade, e para as reformas que se sucederam, inúmeros trabalhos científicos vieram a lume, cabendo destacar, ainda nas décadas de 70 e 80, sem desmerecer outros tantos processualistas, os do professor José Carlos Barbosa Moreira, seja pela notória qualidade técnica, seja pela aguda antevisão dos problemas relacionados com a realização concreta da justiça”[xxiv].
É justamente nessa década que a produção legislativa foi mais volumosa e deu ao ordenamento jurídico pátrio o maior número de diplomas legais que têm, em última análise, o tema do acesso à justiça como sua mola propulsora.
Uma primeira lei que deve ser citada é a de nº 7.019 de 31 de Agosto de 1982 que alterou o Código de Processo Civil e criou o procedimento de arrolamento de bens em caso de partilha amigável, quebrando a rigidez do processo tradicional de inventário e simplificando suas formas.
Outra iniciativa relevante, obrigatoriamente citada e que muito contribuiu para a consolidação da idéia de acesso à justiça no Brasil foi a experiência levada a cabo pela Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul, a AJURIS. Esta segundo Atos Gusmão Carneiro “patrocinou pioneira iniciativa no Brasil, visando trazer Justiça à grandes massas populares, sob os auspícios do próprio Poder Judiciário”[xxv]. Ali foram criados os Conselhos de Conciliação e Arbitramento que depois passaram a ser chamados de Tribunais de Pequenas Causas.
Entretanto, o grande marco legislativo nacional no que concerne ao tema acesso à justiça é, sem sombra de dúvida, a Lei nº 7.244, de 7 de Novembro de 1984 que dispõe sobre a criação e funcionamento dos Juizados Especiais de Pequenas Causas.
Essa lei, fruto da reflexão de grandes expoentes dos estudos da processualística nacional, tais como Ada Pellegrine Grinover e Kazuo Watanabe, teve, entre outras, as seguintes finalidades:
“a) descentralizar a justiça para que ficasse mais próxima, menos misteriosa e desconhecida da população em geral, favorecendo , especialmente, o acesso das classes menos favorecidas;
b) privilegiar a conciliação extrajudicial como meio de pacificação dos conflitos;
c) ser o palco para a resolução de causas de pequena monta, que praticamente não eram levadas à Justiça tradicional (...);
d) incentivar a participação popular na administração da justiça, através da contribuição de pessoas do próprio bairro na solução dos conflitos;
e)servir de referência de pólo, onde as pessoas do povo pudessem ter informações sobre os seus direitos em geral, e como fizer para torna-los efetivos;
f)ser gratuita, rápida , desburocratizada, informal e equânime;
g) desafogar a justiça tradicional”; [xxvi]
Essa primeira experiência legislativa, aliada à grande reflexão doutrinária levada adiante pelos processualistas pátrios no decorrer da década foi fundamental para sedimentar o caminho da constitucionalização do direito de acesso à justiça, o que ocorreu justamente na Constituição de 1988.
Sendo o ponto máximo e coroando o chamado período da transição democrática que colocou fim ao regime militar veio a lume a Constituição de 1988 e com ela uma série de novidades e importantes conquistas referentes ao tema em comento.
A partir de toda a experiência positiva anterior dos anos 80 a Constituição Federal de 1988 deu finalmente guarida a tal preocupação. Foi nela que a problemática referente ao efetivo acesso à justiça ganhou status constitucional, inclusive com a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Tal matéria foi ali colocada “com o fim específico de se dar tratamento diferenciado para determinadas causas que por seu próprio conteúdo, demandassem uma solução mais expedita. A instituição foi erigida a valor constitucional pela possibilidade de tornar efetiva a cláusula do acesso à justiça” [xxvii].
Influenciada pelos movimentos sociais que então passam a ter grande força no Brasil, a Constituição Brasileira de 1988 deu guarida a um considerável número de direitos fundamentais, individuais e sociais, que de uma forma ou de outra contribuem para a implementação do direito em comento, podendo citar, a título de exemplo, sem pretensão de esgotá-los: a) alargamento do direito à assistência judiciária aos necessitados, que passa a ser integral (Artigo 5º, LXXIV), compreendendo: informação, consultas, assistência judicial e extrajudicial; b) previsão para a criação de uma justiça de paz, remunerada composta de cidadãos eleitos, com competência para o processo de habilitação e celebração de casamentos, para atividades conciliatórias e outras previstas em lei (Artigo 98, II); c) tratamento constitucional da Ação Civil Pública (Artigo 129, III); d) criação de novos instrumentos destinados à defesa coletiva de direitos: mandado de segurança coletivo (Artigo 5º, LXX), mandado de injunção (Artigo 5º, LXXI); e) reestruturação e fortalecimento do Ministério Público (Artigo127); e) elevação da Defensoria Pública como instrumento essencial à função jurisdicional (Artigo 134), dentre outros.
Depois de promulgada a Constituição Federal com as referidas previsões, um novo e importante avanço aconteceu com a promulgação da Lei 9.099 de 26 de Setembro de 1995 que instituiu os já referidos Juizados especiais Cíveis e Criminais, diploma esse que representou um novo paradigma na prestação jurisdicional moderna no Brasil, com um procedimento despojado e destituído de maiores complexidades, baseado nos mesmos princípios[xxviii] da Lei 7.244/84 com especial ênfase na conciliação, percebendo que, como sugeriu Cappelletti e Garth nessa “existem vantagens óbvias tanto para as partes quanto para o sistema jurídico se o litígio é resolvido sem a necessidade de julgamento”[xxix].
Segundo nos diz Tourinho Neto e Figueira Júnior, citando o comentário feito pelo próprio Figueira Júnior em artigo na RT, 200, p. 41
“essa nova forma de prestar jurisdição significa antes de tudo um avanço legislativo de origem eminentemente constitucional, que vem dar guarida aos antigos anseios de todos os cidadãos, especialmente da população menos abastada, de uma justiça apta a proporcionar uma prestação de tutela simples, rápida, econômica e segura, capaz de levar à liberação da indesejável litigiosidade contida. Em outros termos, trata-se, em última análise de mecanismo hábil de ampliação do acesso a ordem jurídica justa”[xxx].
Dessa forma, poder-se concordar com o ensinamento de Geisa de Assis Rodrigues quando afirma que “a proposta dos Juizados Especiais Cíveis é, ao mesmo tempo, um desdobramento da reforma das pequenas causas e um aprofundamento dos objetivos primeiros daquela reforma. Nesse sentido, também é uma resposta do Estado para a crise dos seus mecanismos tradicionais de composição do conflito”[xxxi].
Além dessa importante lei, é fundamental arrolar outras que, nos últimas décadas, de uma forma ou de outra contribuíram para a evolução do direito ao acesso à justiça.
Segundo Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, essas são, “no âmbito da defesa coletiva, as leis: 7.853, de 24 de Outubro de 1989, que disciplina a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos das pessoas portadores de deficiência; 7.913 de 7 de Dezembro de 1989, que dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, sendo o primeiro diploma legal a prover a defesa coletiva de direitos individuais homogêneos; 8.069, de 13 de julho de 1990, que trata do Estatuto da Criança e do Adolescente; 8.078, de 11 de Setembro de 1990, que instituiu o Código do Consumidor, trazendo notáveis modificações a Lei que regula a ação civil publica”[xxxii]. Isso sem falar nas inúmeras alterações e que sofreu o Código Processo Civil, visando sempre dar efetividade a seus dispositivos.
Pode-se encerrar o rol da legislação garantidora do direito ao acesso à justiça[xxxiii] com a Lei nº 10.259, de 12 de Julho de 2001, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da justiça Federal, lei essa que muito tem contribuído para desafogar o Judiciário Federal e dar uma prestação mais célere nessa esfera da Justiça.
Sob a ótica constitucional é importante assinalar que a Emenda Constitucional de nº 45 trouxe grandes inovações no que concerne ao tema ora discutido.
Inicialmente podemos apontar a inclusão do Inciso LXXVIII ao Artigo 5º. Nele vem determinado que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação”.
Outra relevante alteração é a que está presente no Inciso X do Artigo 93. Nesse está previsto que “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros”
Também foi incluído no corpo da Lei Maior o Artigo 103A e seus parágrafos onde se prevê a criação da súmula com efeito vinculante, instituto esse que poderá representar mais um passo no sentido de dar agilidade aos julgamentos e, em conseqüência disso, ser mais um elemento a contribuir para solucionar o nefasto problema da morosidade do Judiciário.
Finalmente, é relevante lembrar da criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão que contará em sua composição com representantes da sociedade civil, sendo esse mais um passo no sentido de se fazer a ponte entre o Poder Judiciário e a sociedade.
Desta forma, pode-se dizer que o tema do acesso à justiça foi tratado com a devida importância apenas no último quartel do século XX. Porém, muito ainda tem que se caminhar para que tal direito seja efetivado no Brasil e passe a integrar o patrimônio jurídico dos cidadãos brasileiros. Isso só ocorrerá com a participação de toda a sociedade na cobrança aos poderes constituídos para que não só criem, mas também implementem os mecanismos já existentes, aprimorando-os para melhor consecução de seus objetivos, que é, em última análise, a garantia da efetivação do direito de acesso à justiça.
8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se dizer que o direito ao acesso à justiça sofreu no Brasil um lento e gradual processo de evolução histórica. Nos anos iniciais da colonização brasileira e no Período Imperial pouco ou quase nada se falou sobre o tema. Tal fato se explica pela organização social e política então vigente que inviabilizava qualquer reflexão sobre o assunto. Não havia interesse por parte das elites metropolitanas ou coloniais em resolver tal demanda.
Com a República, algumas conquistas foram se concretizando. Ainda que lentamente a legislação brasileira passou a contemplar algumas novidades concernentes ao referido direito.
Entretanto, somente a partir da década de 80 do século XX que, efetivamente, o problema foi tratado da forma devida. A partir daí a produção teórica e doutrinária foi ampliada e o ordenamento jurídico pátrio ganhou uma série de instrumentos legais aptos a solucionar o então crônico problema do acesso à justiça. Tudo isso culminou com a Constituição de 1988 e com a promulgação no início dos anos noventa dentre outras da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Porém, é imperioso dizer que muito ainda tem por se fazer no Brasil para efetivar o direito ao acesso à justiça. Alguns instrumentos legais estão à disposição de todos (ou apenas de alguns), mas devem ser implementados e aprimorados para melhor atender aos cidadãos, sobretudo os mais humildes, aqueles que verdadeiramente necessitam de tais leis.
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[ii] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 2º ed, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 21
[iii] CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça.Tradução Ellem Gracie Northfleet, Porto Alegre: Sérgio Antonio Editor, 1988, p. 8.
[iv] ALVIM, J.E Carreira. Justiça: Acesso e Descesso. Jus Navegandi, Teresina, a.7, n.65, mai. 2003. Disponível em: http://www.jus.com.br, p. 1.
[v] Ibid.
[vi] Ob. cit., p. 12/13.
[vii] MARINONI, Ob. cit., p. 2.
[viii] Ob. cit., p. 22.
[ix] CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 34.
[x] CARNEIRO, Ob. cit., p. 35.
[xi] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. São Paulo: Edusp, 1992, p. 114 a 120.
[xii] Era exercido privativamente pelo Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente velasse sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos (artigo 98 da Constituição de 1824).
[xiii] Entretanto, há que se questionar o significado e a extensão do conceito de cidadão em uma sociedade escravocrata, e de grandes limitações sociais.
[xiv] CARNEIRO, Ob. cit., p. 36.
[xv] TOURINHO NETO e FIGUIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Federais Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 51.
[xvi] Entretanto, somente em 1965 ela foi regulamentada pela lei nº 4.717, em pleno regime militar.
[xvii] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 76
[xviii] CARNEIRO, Ob. cit., p. 40.
[xix] CARNEIRO, Ob. cit., p. 40
[xx] Este instrumento jurídico dava, dentre outros, poderes ao Presidente da República para fechar provisoriamente o Congresso Nacional, intervir nos Estados e municípios nomeando interventores, além de restabelecer os poderes presidenciais para cassar mandatos e suspender direitos políticos, demitir ou aposentar servidores públicos.
[xxi] Lei 5.478 de 25 de Julho de 1968.
[xxii] Lei 5.869 de 11 de Janeiro de 1973.
[xxiii] O Artigo 1º da Lei 6.683 assim dizia: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
[xxiv] Ob. cit., p. 44.
[xxv] GRINOVER, Ada P., DINAMARCO, Candido R., WATANABE, Kazuo (org). Ob. cit, p. 335.
[xxvi] CARNEIRO, Ob. cit., p. 46.
[xxvii] RODRIGUES, Geisa de Assis. Juizados Especiais Cíveis e Ações Coletivas. Rio de Janeiro: Forense.1997, p. 17.
[xxviii] O Artigo 2º da Lei 7.244 diz que “O processo, perante o Juizado Especial de Pequenas Causas, orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível a conciliação das partes” e o Artigo 2º da Lei 9.099 tem a mesma redação.
[xxix] Ob. cit., p. 83.
[xxx] Ob. cit., p. 59.
[xxxi] Ob. cit., p. 18.
[xxxii] Ob. cit., p. 50.
[xxxiii] Não se teve a pretensão de esgotar o rol de diplomas legais garantidores do acesso à justiça no Brasil, mas tão somente, o de dar uma noção da evolução da legislação pátria. Para isso optou-se por citar algumas leis que são reconhecidamente importantes, sem, contudo, desprezar os demais.
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999), graduado em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (1990) e Mestre em Direito pela Universidade Vale do Rio Verde (2005). Professor dos cursos de Direito e Administração da Fundação Educacional de Oliveira e Membro de corpo editorial da Revista Científica da FEOL http://jguilhermecosta.blogspot.com/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Juvenal Guilherme. Considerações acerca da evolução do direito ao acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2009, 08:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19005/consideracoes-acerca-da-evolucao-do-direito-ao-acesso-a-justica-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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