RESUMO
O acesso à justiça através da proteção jurisdicional dos direitos transindividuais desenvolve-se a partir de uma mudança na concepção individualista, que vigorou nos séculos XVIII e XIX. Com efeito, observou-se que as normas processuais que regulavam os conflitos de ordem individual não podiam ser utilizadas com o mesmo sucesso para a resolução dos conflitos cujas características essenciais transcendiam a esfera individual, Para que houvesse uma efetiva mudança nessa tradicional concepção, tornou-se necessário adaptar os princípios da ciência processual à realidade marcada pela ocorrência cada vez maior dos conflitos de massa. O conceito de legitimação extraordinária, com a oportunidade de o legitimado passivo agir em nome próprio, mas zelando por interesses transindividuais, logrou trazer maior efetividade à proteção dos interesses coletivos. No Brasil, a própria Constituição Federal de 1988 tratou de prever instrumentos processuais para a defesa dos direitos transindividuais; a ação popular e a ação civil pública representam à importância que se tem dado aos conflitos de massa, e uma pequena análise de cada um desses instrumentos pode demonstrar de que maneira o ordenamento jurídico brasileiro vem tratando da defesa de direitos dessa natureza.
1. INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem o escopo de tratar da proteção dos direitos transindividuais no direito brasileiro, levando-se em consideração a acessibilidade à tutela jurisdicional destes mesmos direitos através dos meios disponíveis no ordenamento jurídico pátrio.
Para tornar possível essa tarefa, serão demonstradas as diferenças entre a tutela prestada pelo Estado-juiz quando os interesses envolvidos são de caráter individual e a tutela que deve ser prestada quando num conflito contém interesses de ordem transindividual. Feito isso, poderá se entender o motivo pelo qual alguns autores posicionam-se favoravelmente à superação da concepção individualista do direito herdada do liberalismo dos séculos XVIII e XIX.
De fato, é reconhecido que a utilização dos tradicionais conceitos da ciência processual inviabiliza a adequada prestação jurisdicional voltada para os direitos transindividuais, isto é, esses conceitos constituem-se em verdadeiros obstáculos ao acesso a uma ordem jurídica justa, sugerindo a segunda onda de reformas proposta por Cappelletti. Evidente, pois, a urgência de se exigir do sistema jurídico uma roupagem capaz de assegurar uma eficiente tutela jurisdicional dos direitos transindividuais.
Assim é que a legitimação extraordinária surge como um desses mecanismos que possibilitam o aceso à defesa dos direitos coletivos, sepultando o antigo entendimento de que a legitimidade para atuar em juízo pertence apenas àquele que seja o titular do direito violado.
Finalmente, será realizada uma sucinta abordagem em duas principais ações destinadas à defesa dos direitos transindividuais: a ação popular (Lei n° 4.717/65 e a ação civil pública (Lei n° 7.347/85), as quais poderão servir de parâmetro para a avaliação do estágio em que se encontra a tutela jurisdicional dos direitos transindividuais no sistema jurídico brasileiro.
2. ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS TRANINDIVIDUAIS
Antes de iniciar a discussão acerca da tutela dos direitos transindividuais no direito brasileiro, cumpre fazer uma breve exposição sobre as noções greias sobre o tema do acesso à justiça no direito moderno, bem como explicitar o que se deve entender por direitos transindividuais. Tendo em vista que o presente trabalho possui o objetivo de enfocar a tutela dos direitos transindividuais sob o prisma do efetivo acesso à justiça, é de extrema necessidade que se realize breves esclarecimentos sobre esse ponto.
O conceito de acesso à justiça vem passando por uma grande mudança, marcando a tentativa de superação de uma antiga limitação, proporcionada pelo apego formalista característico dos séculos XVIII e XIX. O estudo do direito manteve-se, por muito tempo, afastado da realidade. Durante o período em que vigorava a estrutura do modelo de estado burguês, apresentava-se o que se poderia chamar de um direito meramente formal de acesso à justiça, baseado no direito natural, que não exigia qualquer atuação estatal para a sua garantia. Pouco importava se o individuo possuía condições econômicas de suportar a duração de um processo, o que resultava numa justiça acessível apenas para quem tivesse condições de fazer frente aos seus custos. Esse estado de apatia se refletia também nos estudos jurídicos, que eram essencialmente dogmáticos, formalistas, despreocupado com os reais problemas da população.
Todavia, a sociedade aumentou de tamanho e de complexidade, e, por conseguinte, as relações entre os seus membros adquiriram um caráter cada vez mais coletivo. Assim, passam a ser reconhecidos certos direitos (por exemplo, o direito à saúde, direito à educação, direito ao trabalho), que dependem de uma autuação positiva do Estado pra que sua efetividade seja garantida. Nesse movimento de reconhecimento de novos direitos e a necessidade de se garantir a sua efetividade, avulta a importância a efetividade do direito ao acesso à justiça, como instrumento apto para reivindicação desses novos direitos:
[…] De fato, o direito de acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo e importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para a sua efetiva reivindicação. O acesso á justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos (CAPPELLETTI, 1988, p.11-12)
Segundo Grinover et al (2006), a expressão “acesso à justiça” não se identifica com a mera possibilidade de ingresso em juízo. Quando uma pretensão é trazida ao processo ela reclama que se faça justiça a ambos os participantes do conflito que inspira a relação processual; o significado que atualmente se atribui a referida expressão diz respeito ao acesso das partes a uma ordem jurídica justa.
No que diz respeito ao conceito de interesses transindividuais, cupre dizer que surge da tradicional distinção entre interesse público e interesse privado. Mais especificamente, surge do reconhecimento de uma categoria intermediária entre esses dois interesses, porquanto não seja propriamente um interesse estatal, e tampouco chega a ser um mero interesse individual, “[...] porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas [...]” (MAZZILLI, 2001, p. 43).
Dividindo-se esses interesses transindividuais, tomando-se por base a sua origem, têm-se os interesses individuais homogêneos, os interesses difusos, bem como os interesses coletivos em sentido estrito. Destarte, quando se tem uma situação de fato que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, configuram-se interesses individuais homogêneos; quando há uma relação jurídica unindo unindo interessados determináveis, tem-se interesses coletivos em sentido estrito; e, finalmente, quando se identifica que uma situação de fato une interessados indetermináveis, mas o dano é individualmente indivisível, tem-se interesses difusos.
Para melhor compreensão dessa distinção, convém exemplificar sucintamente cada uma dessas situações, como é formado cada um desses interesses.
Alguns exemplos relacionados aos consumidores podem cumprir essa tarefa satisfatoriamente. Assim, há interesses individuais homogêneos quando se tem um grupo de consumidores que adquirem produtos fabricados em série com o mesmo defeito, há uma situação que envolve direitos individuais cujos interessados determinados ou determináveis compartilham prejuízos divisíveis, oriundos de uma circunstância de fato, ; quando um grupo de consumidores é submetido ao cumprimento de uma cláusula ilegal de um contrato de adesão, surgem daí interesses coletivos em sentido estrito, oriundo de uma determinada relação jurídica (consubstanciada naquele contrato de adesão); por outro lado, quando os consumidores são vítimas de propaganda enganosa, divulgada, normalmente, por grandes veículos de comunicação, há a ocorrência de um fato do qual se originam interesses difusos, dada a indeterminabilidade dos interessados envolvidos e a indivisibilidade dos danos.
A compreensão das noções supramencionadas será de grande relevância para a análise do cidadão a esses direitos, cuja disciplina legal é ainda muito recente e contrasta com o modelo clássico do direito processual, marcado essencialmente pela concepção individualista responsável pela construção teórica de institutos como a legitimidade passiva e a coisa julgada.
3. A TUTELA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS NO DIREITO BRASILEIRO
Cappelletti já acenava para as dificuldades existentes quanto à acessibilidade dos direitos transindividuais. De fato, fica evidente que boa parte dessas dificuldades surgem das mutações ocorridas na estrutura social, contribuindo para o aumento de sua complexidade e exigindo do sistema jurídico a submissão a um processo de reformulação, de modo a se adaptar às novas demanda dessa realidade mais complexa. Para que isso pudesse ocorrer, era necessária uma profunda alteração da visão individualista do direito:
Na realidade, a complexidade da sociedade moderna, com intricado desenvolvimento das relações econômicas, dá lugar a situações nas quais determinadas atividades podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir problemas desconhecidos às lides meramente individuais. Assim, os direitos e deveres não se apresentam mais, como nos códigos tradicionais, de inspiração liberal-individualística, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas meta-individuais e coletivos […] Portanto, continuar, conforme a tradição individualística, a atribuir direitos exclusivamente a pessoas individuais significaria tornar impossível uma efetiva proteção jurídica dos direitos coletivos, exatamente na ocasião em que surgem como elementos cada vez mais essenciais para vida civil (direito ao meio-ambiente, à saúde, segurança social em sentido lato, etc.). Em suma, os direitos transindividuais pertencem, em última análise, à coletividade. (PINHO, 2002).
É correto afirmar, portanto, que existem diferenças entre a tutela que se presta aos direitos individuais e os direitos transindividuais. Destacar algumas dessas diferenças é fundamental para o entendimento das mudanças que sofrem os ordenamentos que estavam presos à concepção individualista dos interesses tutelados.
3.1 Diferenças entre a tutela dos direitos individuais e a tutela dos direitos transindividuais
Afirma Mazzalli (2001, p. 44) que “todos esses interesses [transindividuais] de grupos, classes ou de categorias de pessoas, merecem tutela coletiva para o acessa à justiça, e não apenas individual”. Nesta linha de raciocínio, importa que sejam levadas em consideração algumas das principais diferenças entre a tutela individual e a tutela coletiva.
Basicamente, quando há um conflito coletivo, os interesses envolvidos são difusos, coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos, enquanto que nos conflitos individuais normalmente o objeto do conflito se restringe a interesses individuais. Além disso, como será visto adiante, a defesa dos interesses coletivos é realizada através da legitimação extraordinária.
Outra importante diferença que pode ser considerada entre a tutela prestada aos direitos coletivos e aquela que é prestada aos direitos individuais, diz respeito à destinação do produto da indenização. Enquanto na tutela dos direitos individuais o produto da indenização destina-se diretamente aos interessados – o que, excepcionalmente, pode ocorrer com o produto da indenização resultante da defesa coletiva de interesses individuais homogêneos –, na tutela de interesses coletivos há destinação especial do produto da indenização, vez que este é dirigido para um fundo fluido, de utilização flexível para a reparação de danos.
Aspecto importante a ser ressaltado é o fato de que “é necessário que a imutabilidade do decisum ultrapasse os limites das partes, diversamente do que ocorre com a coisa julgada nas ações individuais” (ibdem, 2001, p. 46).
Ademais, uma especial característica dos interesses coletivos é de que neles prevalece o princípio da economia processual. Portanto, há na tutela coletiva a discussão dos interesses de todo um grupo, classe ou categoria de pessoas concentradas numa só ação. Quanto à tutela dos interesses individuais, o quandro se apresenta de modo diverso. Na tutela desses interesses as ações judiciais são mais restritas no que diz respeito aos seus efeitos; esse traço dá margem para a ocorrência de julgamentos contraditórios, do que resulta grande insegurança dos jurisdicionados quanto à qualidade da prestação jurisdicional.
3.2 A questão da legitimidade extraordinária e das transformações das estruturas tradicionais que sustentam o direito processual civil.
Já foi dito que a concepção individualista do direito foi um dos pontos que serviu de obstáculo para que se viabilizasse uma prestação eficaz dos direitos transindividuais. Com efeito, salientava Cappelletti (1988) que uma verdadeira revolução se opera no processo civil, tendo em vista a superação do individualismo que durante muito tempo tomou conta dos ordenamentos jurídicos:
Concepção tradicional do direito civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto como um assunto entre as duas partes, que se destinava a solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencem ao grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem a esse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juizes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentados por particulares. (ibdem, 1988, p.49-50).
Como componente dessa revolução pode-se destacar, dentre outros aspectos, as transformações fundamentais em conceitos básicos como o do direito de ser ouvido. Isso ocorre devido à evidente impossibilidade de todos os titulares de direitos que transcendem a esfera individual em comparecerem em juízo; daí a necessidade de um representante que aja em benefício da coletividade, mesmo que os membros dela não sejam citados individualmente.
No Brasil, esse óbice jurídico vem sendo superado pela Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85 ), haja vista que se oferece a possibilidade de que o Ministério Público, bem como as associações possam pleitear a tutela jurisdicional de interesses coletivos e interesses difusos . Logicamente, outros instrumentos já existiam – conforme será explicado no próximo tópico –, mas não se pode negar o fato de que a lei em comento constitui grande inovação no que toca a questão dos interesses transindividuais.
Outra transformação importante refere-se legitimação para agir em matéria de direitos transindividuais, já que a defesa desses direitos não pode ser contemplada pelas regras que definem a legitimação para agir em temas que envolvem interesses individuais. A tradicional disciplina da matéria por parte do processo civil apenas reverenciava regras segundo as quais somente poderia acionar a jurisdição aquele que tivesse a titularidade do direito a ser defendido em juízo. Decerto, eram regras que não regeriam de forma convincente os conflitos de ordem coletiva. Aliás, sobre esse ponto se manifesta Mancuso:
Tal elaboração doutrinária é perfeitamente válida no que tange aos conflitos intersubjetivos, em que as partes sustentam posições jurídicas individuais, facilitando a perquirição pelo juiz, da coincidência entre elas e as posições de vantagem ou de sujeições indicadas pela norma jurídica de regência. O problema, porém, surge quando se trata da legitmatio ad causam nos conflitos supraindividuais, porque, mesmo que se supere o obstáculo do interesse de agir (entendendo-se que basta um interesse legítimo, relevante, sem necessidade do quesito direto e pessoal), restará saber quem é idôneo, adequado, apto e, pois, a justa parte para vir a juízo em nome daqueles interesses supraindividuais […] (2000, p.160).
Então, se a clássica maneira de se defender interesses em juízos se faz através da legitimação ordinária, na qual o próprio lesado é que defende o seu interesse, nos casos em que o interesse em questão é de caráter coletivo a sua defesa se desenvolve por meio de legitimação extraordinária.
A legitimação extraordinária é a possibilidade de alguém, em nome próprio, defender interesse alheio. É extraordinária porque por ter a excepcionalidade como característica, porquanto depende da expressa autorização legal.
Ocorre verdadeira substituição processual, conforme afirma Mazzilli, que não deve ser confundida com a representação. Neste ultimo caso, alguém defende interesse alheio, em nome alheio, como no caso do procurador ou mandatário.
Por outro lado, há autores que entendem não haver na defesa de interesses coletivos legitimação extraordinária, mas típica legitimação autônoma, legitimação ordinária, uma vez que alguém, não obstante agir na defesa em juízo de interesses de terceiros, não deixa estar, igualmente, agindo na defesa de interesse próprio. Essa é visão de Nelson Nery Junior, para quem há, nessas situações, verdadeira legitimação ordinária, coincidência entre a legitimação do direito material e a titularidade do direito de ação:
Assim, sobrevieram normas, constitucionais e infraconstitucionais, destinadas a autorizar determinados órgãos, pessoas ou entidades, a agirem em juízo na defesa desses interesses difusos e coletivos. [...] Não se trata de legitimação extraordinária nem de substituição processual. Talvez não devêssemos falar dessa dicotomia clássica da legitimidade das partes, mas sim numa legitimidade autônoma para a condução do processo, [...] mas se formos reduzir essa legitimação para defender em juízo direitos difusos e coletivos àquela dicotomia, certamente estaremos diante de hipóteses de ‘legitimação ordinária’ para a causa. (1991, p.36).
Mazzilli, no entanto, faz questão de fazer alguns reparos nesse argumento, ao afirmar que:
Ainda que proceda em parte essa argumentação, identificamos na ação civil pública ou coletiva a predominância do fenômeno da legitimação extraordinária ou da substituição processual, o que não ocorre nas hipóteses em que o titular da pretensão aja apenas na defesa dos próprios interesses. Na ação civil pública ou coletiva, embora em nome próprio, os legitimados ativos, ainda que ajam de forma autônoma e, às vezes, também defendam interesses próprios: zelam também por interesses transindividuais, de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, os quais não estariam legitimados a defender a não ser por expressa autorização legal. Daí porque esse fenômeno configura preponderantemente a legitimação extraordinária, ainda que, em parte, alguns legitimados ativos possam, na ação civil pública ou coletiva, também estar a defender interesse próprio. (2001, p.58).
Com efeito, não se pode negar o fato de que na defesa por interesses coletivos se aja em prol de um interesse que transcende a esfera individual, mesmo que isso se faça em nome próprio. A legitimação, pois, apresenta-se como um mecanismo de grande importância para tutela eficiente destes direitos.
3.3 instrumentos de defesa dos direitos transindividuais no sistema jurídico brasileiro.
Observou-se que a tutela dos interesses transindividuais necessitava de mecanismos diversos daqueles encontrados na estrutura da tradicional ciência processual. Cappelletti (1988) já apontava para aquilo que chamou de segunda onda de reformas, cujo objetivo seria o de viabilizar o acesso à justiça; essa segunda onda de reformas demonstrada pelo autor referia-se justamente a modificação da concepção individualista que imperava sobre o direito e propunha a adaptação dos ordenamentos jurídicos aos novos interesses que já não podiam gozar da proteção oferecidas por regras destinadas a regularem conflitos de ordem individual. Convém apresentar, agora, alguns dos instrumentos oferecidos pelo direito brasileiro que estão aptos para a defesa dos direitos transindividuais.
A ação popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, constitui um instrumento posto à disposição de qualquer cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio publico ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Trata-se, segundo Hely Lopes Meirelles, de um meio apto para obter a invalidação de atos ou contratos administrativos, quando estes são ilegais ou lesivos ao patrimônio federal, estadual ou municipal, ou de suas autarquias, entidades paraestatais e pessoas jurídicas subvencionadas pelo dinheiro público:
É um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros. Por ela não se amparam direitos individuais próprios, mas sim interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato dessa ação não é o autor; é o povo, titular de direito subjetivo ao governo honesto. O cidadão promove em nome da coletividade, no uso de uma prerrogativa cívica que a Constituição da República lhe outorga. (2001, p. 118).
No entanto, marcante mesmo foi a chamada Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7347/85), pois permitiu a propositura de inúmeras ações e serviu de base para novas leis que ampliaram a sua abrangência. É o instrumento processual adequado para prevenir ou reprimir “danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e valores de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico e por infrações da ordem econômica”. (ibd., 2001, p.155-156).
A ação civil pública teve seu campo de atuação ampliado por leis posteriores e até mesmo pela Constituição Federal de 1988. Após a promulgação da Lei maior de 1988 possibilitou maior abertura no que diz respeito ao rol dos legitimados ativos para defesa dos interesses transindividuais. Além disso, após o advento da Lei da Ação Civil Pública, leis como a que prevê a propositura de ação civil pública para defesa das pessoas portadoras de deficiência física (Lei nº 7853/89), a que regula a ação civil pública de responsabilidade de danos causados aos investidores no mercado de valores imobiliários (Lei 7913/89), entre outras – como a Lei nº 8069/90, o Código de Defesa do Consumidor, etc. -, contribuíram para a ampliação do campo de atuação da ação pública.
CONCLUSÃO
A abordagem da tutela dos direitos transindividuais no direito brasileiro, sob a orientação da temática referente ao acesso à justiça, auxilia na compreensão do movimento de acesso à jurisdição relacionada aos interesses coletivos e, por conseguinte, da premente necessidade de alterações na concepção individualista do direito, a fim de que se possa atribuir uma defesa eficaz aos interesses metaindividuais.
No Brasil, instrumentos como a ação popular e a ação civil pública podem ser apresentados com algumas das vias que possibilitam a defesa de interesses que até pouco tempo eram estranhos ao direito. A legitimação extraordinária também possibilitou que um pouco dessa visão individualista do direito fosse superada, pois permite que alguém aja em nome próprio por interesses alheios.
Sobre essa mudança de concepção de direito, manifestou-se Mancuso, ao propor uma mudança interpretativa do direito processual para que se observe uma defesa mais forte dos interesses transindividuais:
[...] Em primeiro lugar, há necessidade atual – aqui e agora – de se outorgar tutela a esses interesses, de modo que não se afigura viável proceder-se, preliminarmente, a uma revisão global do processo civil, com eventual criação de institutos específicos, para só então cuidar-se de concretizar praticamente essa tutela. Em segundo lugar, examinando-se o material já existente, sob o prisma de uma interpretação menos rígida e mais progressista ou liberal, chega-se a conclusão de que ao menos alguns dos mais importantes institutos existentes comportam essa adaptação. (MANCUSO, 2000, p. 235).
Sem dúvida são evoluções que favorecem o acesso aos direitos transindividuais, mas sabe-se que muito ainda deverá ser feito para que a tutela dos mesmos seja realmente eficaz. Para que isso ocorra, muitas barreiras ao acesso à justiça terão de ser superadas, o que não será nada fácil, tendo em vista os graves problemas que assolam a sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 277 p.
MAZILLI, Hugo Nigro. As várias categorias de interesses; Legitimação ordinária e extraordinária. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13 Ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Cap. 1 e 2, p. 41-61.
MEIRELLES, Hely Lopes. Ação popular; Ação Civil Pública. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injução, “Habbeas Data”, Ação direta de inconstitucionalidade, Ação declaratória de constitucionalidade e Argüição de descumprimento de preceito fundamental. 23. Ed. São Paulo: Malheiros, 2001. cap. 2 e 3, p. 117-156.
NERY JUNIOR, Nelson. Condições da Ação. Revista de Processo, São Paulo, v. 64, p. 33-38, out./dez. 1991.
PINHO, Humberto Dalla Bernadina de. A dimensão da garantia do acesso à justiça na jurisdição coletiva. Jus Navegandi. Fev. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2790>. Acesso em: 30 dez. 2006.
Acadêmico de Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS, Salvador, Brasil.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMALHO, Paulo Victor do Carmo. O acesso à justiça para a proteção dos direitos transindividuais na ordem jurídica brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jan 2010, 08:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19139/o-acesso-a-justica-para-a-protecao-dos-direitos-transindividuais-na-ordem-juridica-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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