Em recente decisão da 1ª. Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Distrito Federal, no Processo no. 2007.09.1.022199-3, tendo como apelante a Igreja Universal do Reino de Deus foi decidido que a doação realizada pela apelada é nula.
A apelada, mãe de uma criança portadora de necessidades especiais, doou à Igreja Universal do Reino de Deus um automóvel. Ocorre, porém, que toda e qualquer doação que iremos fazer, é necessário estar em conformidade com a norma jurídica.
O nosso Código Civil apresenta o conceito de doação no art. 538 que nos traz que:
Art. 538 Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.
O instituto da doação tem por base a idéia de liberalidade do doador que quer entregar a outra pessoa, determinado bem, que é por este aceito, a título gratuito. Conforme Orlando Gomes “a doação é contrato unilateral, simplesmente consensual e gratuito”.[1]
É considerado unilateral porque somente para o doador é que existem obrigações. É considerado simplesmente consensual porque não requer que a coisa seja entregue, basta que o acordo se realize com a aceitação do donatário. É considerado gratuito haja vista que o donatário aumenta o seu patrimônio sem que haja contrapartida.[2] Acrescenta ainda Carlos Roberto Gonçalves que a doação pode ser formal ou solene, ou seja, ela é formal quando se aperfeiçoa com o acordo de vontades entre o doador e o donatário, e a observância da forma escrita, independentemente assim da necessidade de haver a entrega da coisa, a não ser quando se tratar de doação manual, ou seja, aquelas de bens móveis de pequeno valor em que se aperfeiçoamento depende da tradição desses bem.[3]
Analisando o artigo 538 do Código Civil, Carlos Roberto Gonçalves aponta que desse conceito legal podemos observar os seus traços característicos que são: natureza contratual; animus donandi; transferência de bens para o patrimônio do donatário e aceitação do donatário.[4] Porém, na visão desse doutrinador são dois os elementos peculiares à doação, quais sejam: o animus donandi, que é o elemento subjetivo, ou seja a intenção de praticar uma liberalidade e o elemento objetivo que é a transferência de bens, que tem como consequência a diminuição do patrimônio do doador.
No caso em tela verificamos que preencheu essas características da doação, ou seja, a doadora, ora apelada, por um ato de liberalidade, transferiu um bem para o patrimônio da ora apelante – Igreja Universal do Reino de Deus, que aceitou essa doação.
Apesar de ser um ato de liberalidade, nossa legislação impõem determinadas limitações à essa liberalidade de doar. Assim, a liberalidade concedida pelo legislador não é uma liberalidade ampla, mas sim restrita, assim a norma veda a doação inoficiosa, ou seja a doação de todo o patrimônio do doador Encontramos dois dispositivos legais que restringem essa liberalidade, nos artigos 548 e 549 do Código Civil.
Art. 548 É nula a doação de todos os bens sem reserva da parte, ou renda suficiente para subsistência do doador.
Art. 549 Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
Analisemos esses artigos em separado. Em primeiro lugar, vejamos o artigo 548 que determina que a doação é nula se for de todos os bens sem reserva de parte ou de renda suficiente para subsistência do doador. Conforme Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery a teleologia do dispositivo “visa resguardar o ato de liberalidade das consequências de generosidade excessiva, que podem argüir fraqueza de ânimo. Por isso se estatui que a doação, sem reserva de usufruto ou renda suficiente para subsistência do doador, é nula.”[5] Assim, além dos requisitos para que ocorra a doação é necessário que não caia nas hipóteses vedadas pela norma jurídica.
Pela previsão do artigo em comento logo não é possível a doação universal, ou seja, a doação de todos os bens sem reserva de parte do patrimônio que sirva de subsistência do doador. Tal previsão está em consonância com o art. 1º., III da CF já que visa preservar a dignidade da pessoa humana. Afinal, se houver doação de todos os bens como poderá a pessoa ter uma vida digna ? Irá sobreviver de que forma ? Assim, a análise desse artigo encontra-se em conformidade com a nossa Carta Magna buscando assim, preservar a dignidade da pessoa humana, mesmo quando ela ainda não perceba essa necessidade.
O segundo artigo, art. 549, refere-se quando a doação ultrapassar o limite em que poderia dispor em testamento. E conforme o art. 1.857 do Código Civil, toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. Porém, o parágrafo primeiro nos traz que a legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento. Assim, no caso em tela, sendo o bem doado o único bem da doadora e essa possuindo herdeiro necessário, somente poderia ter doado até o limite da legítima.
No caso sub judice acaba ocorrendo a incidência dos dois artigos, já que em primeiro lugar, a apelada não poderia doar o bem já que não dispunha de nenhum outro, além disso, somente poderia doar até o limite da legítima já que, conforme consta no acórdão, ela possui uma filha.
Ora o negócio jurídico realizado é nulo de pleno direito, devendo ser devolvido o bem doado, voltando a integrar o patrimônio da apelada, conforme decisão judicial.
Para que essa doação pudesse ser considerada válida era necessário que a apelante – Igreja Universal do Reino de Deus comprovasse que a apelada possuía outros bens além daquele doado e que não atingisse a legítima. Porém, conforme demonstra o acórdão prolatado tal fato não ocorreu, já que conforme o Código de Processo Civil, cabe ao réu alegar qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, em consonância com o art. 333, II do CPC.
Cumpre ressaltar que a doação não foi declarada nula em decorrência de ser uma doação para uma Igreja, mas sim em razão de se tratar de doação inoficiosa o que impede a subsistência da autora ora apelada.
Vejamos a íntegra da decisão proferida.
Órgão |
: |
1ª TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS E CRIMINAIS DO DISTRITO FEDERAL |
Classe |
: |
ACJ |
Processo Número |
: |
2007.09.1.022199-3 |
Apelante |
: |
IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS |
Apelado |
: |
LÍVIA INÁCIA DE ANDRADE |
Relator (a) |
: |
SANDRA REVES VASQUES TONUSSI |
E M E N T A
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. DEVIDO PROCESSO LEGAL. ÔNUS DA PROVA. DOAÇÃO. NULIDADE. ART. 548 DO CC. RECURSO IMPROVIDO.
1. Observado o devido processo legal, o julgamento pela procedência do pedido que acolhe a fundamentação da parte autora não implica, por evidente, em afronta ao contraditório ou à ampla defesa da parte ré.
2. O ônus da prova[6] incumbe ao Réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a teor do inciso II do art. 333 do CPC. Cumpriria à parte ré demonstrar que a parte autora possuía ao tempo da doação outro bem que não o veículo doado. Nada há nos autos que demonstre tal alegação. Testemunho de que a autora possuiria bem imóvel é prova inadequada ao fim colimado, porquanto para tanto a prova documental é exigência legal. Acresce a tal quadro que o depoimento sequer consta dos autos, impedindo a análise pela Turma Recursal, que é condicionada à transcrição completa pelo recorrente dos atos oralmente produzidos e gravados, na forma do art. 44 da Lei n. 9.099/95.
3. Se não há prova nos autos de que a doadora Lívia Inácia de Andrade - mãe de uma criança portadora de necessidades especiais, com precária situação financeira e recente histórico de grave violência doméstica - possuía outro bem além do veículo automotor doado à ora recorrente Igreja Universal do Reino de Deus, a par da possível identificação de vício na manifestação de vontade pelo falso motivo determinante do negócio, decorrente da promessa de “mudança de vida” com a doação integral do já diminuto patrimônio da doadora conforme regra do art. 140 do Código Civil, a clara disposição do art. 548 do Código Civil, cuja “inspiração é de ordem moral”[7] e tutela a dignidade do doador, determina como nula de pleno direito a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador[8]. O art. 549 igualmente reputa como nula a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
4. Com efeito, Pontes de Miranda já advertia que “a ordem jurídica protege os interesses dos membros da comunidade, enquanto entre si se harmonizam e coexistem; isto é, protege-os enquanto são dignos de proteção e necessitados dela”[9]. Ainda sobre a eticidade como fundamento das normas civis merece ser destacada a lição de Judith Martins e Gerson Branco: “(...) se em primeiro plano está a pessoa humana valorada por si só, pelo exclusivo fato de ser pessoa, - isto é, a pessoa em sua irredutível subjetividade e dignidade, dotada de personalidade singular e por isso mesmo titular de atributos e de interesses não mensuráveis economicamente -, passa o Direito a construir princípios e regras que visam a tutelar essa dimensão existencial, na qual, mais do que tudo, ressalta a dimensão ética das normas jurídicas. Então o direito civil reassume a sua direção etimológica e do direito dos indivíduos passa a ser considerado o direito dos civis, dos que portam em si os valores da civilidade.[10]”
5. Recurso conhecido e improvido. Sentença mantida com súmula de julgamento servindo de acórdão, conforme o art. 46 da Lei n. 9.099/95. Determinado o encaminhamento de cópia dos autos ao Ministério Público para análise de eventual ilícito penal. Condenado o recorrente ao pagamento das custas e
[1] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 253.
[2] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 254.
[3] Carlos Roberto Gonçalves, faz uma ressalva quanto a ser somente unilateral, ou seja, como regra o contrato de doação é unilateral, porém, esse doutrinador entende que pode vir a ser classificado como bilateral quando se tratar de doação modal ou com encargo. Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.III. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 257.
[4] Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol.III. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, p. 254.
[5] NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 550.
[6] Sobre as regras do ônus da prova destaco a pertinente observação de Didier Jr., Braga e Oliveira(DIDIER Jr, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, volume 2: Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 4ª ed. Bahia: Editora JusPodivm, 2009, p. 76.):
“As regras do ônus da prova não são regras de procedimento, não são regras que estruturam o processo. O ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu.”
Os renomados autores ressaltam a lição de José Carlos Barbosa Moreira (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Julgamento e ônus da prova”. Temas de Direito Processual Civil – segunda série. São Paulo, 1988, p. 74-75 apud ob. cit. em a nota 3, p. 73-74):
“Explica o ônus subjetivo, BARBOSA MOREIRA: ‘O desejo de obter a vitória cria para a litigante a necessidade, antes de mais nada, de pesar os meios de que se poderá valer no trabalho de persuasão, e de esforçar-se, depois, para que tais meios sejam efetivamente utilizados na instrução da causa. Fala-se, ao propósito, de ônus da prova, num primeiro sentido (ônus subjetivo ou formal).
E segue comentando o ônus objetivo: ‘A circunstância de que, ainda assim, o litígio deva ser decidido torna imperioso que alguma das partes suporte o risco inerente ao mau êxito da prova. Cuida então a lei, em geral, de proceder a uma distribuição de riscos: traça critérios destinados a indicar, conforme o caso, qual dos litigantes terá de suportá-los, arcando com as conseqüências desfavoráveis de não se haver provado o fato que lhe aproveitava. Aqui também se alude a ônus da prova, mas num segundo sentido (ônus subjetivo ou material)’”
[7] Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República – vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 548.
[8] Sobre a matéria o claro acórdão do e. TJDFT de relatoria da Exma. Desembargadora Nídia Corrêa Lima: “CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE VALIDADE DE NEGÓCIO JURÍDICO. DOAÇÃO DE TODO O PATRIMÔNIO. VALOR SUPERIOR QUE PODERIA SER DISPOSTO EM TESTAMENTO. NULIDADE. 1. NOS TERMOS DO ARTIGO 1.175 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, "É NULA A DOAÇÃO DE TODOS OS BENS SEM RESERVA DE PARTE, OU RENDA SUFICIENTE PARA A SUBSISTÊNCIA DO DOADOR".2. NULA É A DOAÇÃO NOS CASOS EM QUE A DOADORA, MESMO DIANTE DA EXISTÊNCIA DE HERDEIRO, DISPÕE DE QUANTIA SUPERIOR ÀQUELA PERMITIDA PARA AS HIPÓTESES DE TESTAMENTO, CONFORME DISPOSTO NO ART. 1.176 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916, EM VIGOR À ÉPOCA CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO. 3. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.” (2008 09 1 006426-5 APC - 0006426-54.2008.807.0009 (Res.65 - CNJ) DF; Registro do Acórdão Número : 326771; Órgão Julgador : 3ª Turma Cível; DJ-e: 23/10/2008 Pág. : 63)
[9] PONTES DE MIRANDA apud MARTINS COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo, Atlas, 2008, p. 57
[10] MARTINS COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luis Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 132.
Advogada. Mestre em Direito pela UFPE. Professora na Graduação e na Pós-graduação de disciplinas tais como: Teoria Geral do Processo, Direito Processual, Introdução ao Estudo do Direito, dentre outras. Ex-Diretora do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RENATA MALTA VILAS-BôAS, . Doação Inoficiosa: Acórdão declara a Nulidade de Doação realizada à Igreja Universal do Reino de Deus Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 fev 2010, 08:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19231/doacao-inoficiosa-acordao-declara-a-nulidade-de-doacao-realizada-a-igreja-universal-do-reino-de-deus. Acesso em: 23 dez 2024.
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