Crises, escândalos, ilegalidades, impunidades ... são palavras que reiteradamente se ouvem atualmente quando o assunto é o Congresso Nacional, em especial quanto ao Senado Federal. À sociedade brasileira resta um estado de perplexidade diante destes abusos, resignada em um sentimento de incapacidade em exigir mudanças. O que fazer?
Em um movimento de combate a esta situação muitos, inclusive personalidades e juristas respeitados no âmbito nacional, têm levantado a bandeira da extinção do Senado Federal, como forma de correção de grande parte dos problemas relacionados á corrupção, lentidão na aprovação das leis, gastos astronômicos com a manutenção de duas Casas legisladoras, etc; fundamentando sua argumentação na incapacidade desta instituição em cumprir a competência estabelecida na Constituição e ante a própria desnecessariedade da composição do legislativo em duas Casas para a existência da república federativa brasileira.
Este artigo se propõe a refletir sobre a importância e necessidade (ou não) do sistema bicameral nos moldes em que é adotado em nosso país e as críticas que dele decorrem. Aborda-se também uma proposta para o aprimoramento do Poder Legislativo nacional.
BICAMERALISMO
Em decorrência do Estado Democrático de Direito constituído em nosso país, o poder legiferante é atributo essencialmente do povo, ou nas palavras da Constituição “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente...” (Art. 1º Par. único). Assim, instituiu-se a forma representativa para o exercício da capacidade legislativa. O Poder Legislativo brasileiro é historicamente bicameral (exceção feita às Constituições de 1934 e 1967 que tenderam ao unicameralismo), ou seja, duas câmaras exercendo simultaneamente o mesmo poder, uma Câmara Baixa representando o povo e uma Câmara Alta representando os estados federados, na experiência brasileira Câmara dos Deputados e Senado Federal, respectivamente.
Este sistema bicameral é, via de regra, justificado quando o país adotante possui como características a heterogeneidade étnica de sua população e forma descentralizada de estrutura política. O objetivo principal é alcançar, desta forma, uma discussão mais ampla dos projetos a serem convertidos em leis ou emendas à constituição. Tanto é que no Brasil este sistema já foi adotado por estados-membros que entendiam haver uma heterogeneidade em sua população – exemplos, o estado da Bahia com a Constituição Estadual de 1891 e o de São Paulo com a Constituição Estadual do mesmo ano mantido até a Constituição Estadual de 1935; o que hoje não possui permissivo na Constituição Federal de 1988.
Verdade é que no Brasil a adoção do sistema bicameral foi uma maneira utilizada pelo imperador para conferir poder aos oligarcas. Tanto o é que existiam três critérios para a escolha de um senador: 1) Somente poderia candidatar-se ao cargo o cidadão que tivesse renda mínima anual de 800 mil réis, uma fortuna à época; 2) Teria de ser eleito em sua província uma lista com três candidatos; 3) Esta lista era encaminhada ao imperador que escolhia um destes para compor o Senado. [1]
Atualmente percebe-se na quase totalidade dos países que adotam o bicameralismo em seus poderes legislativos, uma tendência a reduzir essa atuação concomitante na elaboração das leis. Até mesmo em seu berço, na Inglaterra, a House of Lords (Câmara Alta composta pelos nobres) após três revisões constitucionais – 1215, 1707 e 1832; teve sua competência drasticamente reduzida, com o agravante de que no sistema inglês os membros desta Câmara não têm legitimidade democrática pelo fato de serem indicados. Isto nos induz a avaliarmos o desempenho do Senado brasileiro à luz de seu papel e de sua atuação.
COMPETÊNCIA
O Senado Federal é composto por representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos pelo sistema majoritário. Cada unidade federativa citada elege três senadores, cada qual com dois suplentes, em oposição à Câmara dos Deputados onde o critério para eleição é a proporção demográfica da população. O mandado é de oito anos, que corresponde a duas legislaturas, sendo que a renovação dos senadores será realizada de quatro em quatro anos, na proporção de 1/3, e, posteriormente na legislatura seguinte, em 2/3. O objetivo principal desta divisão uniforme no número de cadeiras entre os entes é corrigir distorções na representação, visando que os estados menos populosos não sejam esquecidos na distribuição de recursos federais.
A competência atribuída pela Constituição Federal ao Poder Legislativo, e consequentemente ao Senado, compõe-se de funções típicas e atípicas. As funções típicas são: o exercício do poder legiferante, isto é, a elaboração de leis ordinárias e complementares por meio de votação observado o quorum necessário a cada uma delas; mas também, em igual importância, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo (Art. 70 da Constituição). Já as funções atípicas constituem-se em: administrar a estrutura organizacional e operacional interna (provimento de cargos, promoções, etc.); além de julgar os casos em que a Constituição taxativamente prevê, como por exemplo, no processo e julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade.
O CERNE DAS DISCUSSÕES
As criticas imputadas ao Senado Federal são as mais variáveis possíveis e se estendem desde a própria competência a ele atribuída pela Constituição, até a sua incapacidade em cumpri-la de modo satisfatório. Dentre estas vamos nos deter naquelas que entendemos serem as mais significativas e com maior grau de relevância ao argumento dos que defendem a extinção da Câmara Alta brasileira.
Primeiramente, questão fundamental a ser analisada é a essencialidade ou não do Senado Federal para a plena validade do federalismo. Põe-se em cheque que a extinção do Senado não infringiria os princípios contidos na Constituição, uma vez que esta protege a tripartição dos poderes, mas não necessariamente o bicameralismo existente em algum destes. Atribuindo as funções do Senado à Câmara dos deputados o federalismo estaria protegido, pois sendo o Brasil soberano no aspecto interno, não há que se falar em instabilidade entre os entes federados. Entretanto, a experiência brasileira já demonstrou que esta regulação pacífica entre os entes federados não funciona caso não seja devidamente controlada, exemplo claro é a guerra fiscal resultante do afinco de cada Estado em buscar a qualquer custo uma fatia maior na arrecadação tributária. Este problema, com toda certeza, se agravaria com apenas uma Câmara eleita pela proporção de sua população, uma vez que teríamos estados com poucos ou mesmo nenhum representante, abandonados a própria sorte pela União. Ferido estaria o federalismo.
Alguns ainda buscam sustentar a posição pró-extinção do Senado lapidando a proposta com o argumento de implantação de um sistema de votação de leis em dois turnos em uma única Câmara, um de cômputo majoritário simples (maioria de votos do Parlamento pleno) e outro de cômputo qualificado (maioria de votos correspondentes, cada um, a uma unidade da Federação). Aparente solução, mas que resultaria no agravamento de um problema já existente: a lentidão na elaboração das leis. Se com duas Casas trabalhando simultaneamente temos um processo de leis defasado que deixa muito a desejar quanto a agilidade nas votações, este sistema entraria em pane se uma mesma Câmara tivesse de dobrar sua competência com dois sistemas de votação para as mesmas leis, uma proposta inviável.
Outro problema que fica evidente ante um exame mais apurado é constatar-se que a atividade desempenhada pelo Senado Federal é quase idêntica à exercida pela Câmara dos Deputados. Há, com isto, comumente uma confusão da competência atribuída a cada Casa, tanto o é que nas campanhas eleitorais as propostas apresentadas por candidatos a deputados e senadores são praticamente iguais. É bem verdade que a Constituição de 1988 acabou por corroborar com esta confusão quando da delimitação de competência, onde, por vezes, as duas Casas são incumbidas de idêntica atuação. Este problema tende a se agravar, pois cada vez mais as propagandas eleitorais fomentam esta confusão, e a população (e por vezes os próprios políticos) fica sem conseguir identificar com clareza os papéis que cada Casa desempenha no enredo político. Na realidade, este problema é comum a diversas esferas da política, e o meio para que se corrija esta questão é o enfoque na educação política da população, seja por meio de campanhas informativas, seja por meio da incorporação desta matéria no ensino secular, preparando tanto os que no futuro ocuparão estes cargos, como aqueles que os elegerão para tal.
Uma grave questão que além de saltar aos olhos da população como um dos maiores problemas da Casa, tem corroído o sistema representativo no âmbito do Senado Federal é o fato de que eleito o senador este será assessorado por dois suplentes que assumem sua função caso faça-se necessário. O problema reside em que como o mandato é de oito anos e neste tempo muita coisa costuma acontecer no meio político, via de regra, os senadores costumam se afastarem antes do término do mandato, quase sempre para disputa de outra eleição, deixando assim caminho aberto para que seu suplente assuma esta importantíssima função. Atualmente, dos 81 senadores 18 entraram na Casa por esta via, ou seja, 22% (vinte e dois por cento) dos atuais senadores não foram escolhidos democraticamente[2]. Na prática os suplentes sequer são mencionados nas campanhas, exatamente por tratar-se, via de regra, de um membro da família do senador correspondente ou até mesmo por um patrocinador de sua campanha. O sistema representativo urge desesperadamente reforma neste particular, para obrigar a divulgação dos suplentes nos mesmos moldes da que hoje é feita os vices (presidente, governadores, prefeitos), para que a população legitime por meio do voto estes indivíduos que eventualmente a representarão.
As Câmaras Altas, gênero de qual o Senado representa, sempre foram pensadas como sendo a Casa que desempenharia uma função conservadora, uma câmara de revisão daquilo que fosse oriundo da Câmara Baixa (dos Deputados). Eis o motivo pelo qual hoje ainda perdura a exigência de que o senador tenha mais de 35 anos, supondo com isto que seus membros serão pessoas mais maduras, com maior vivência política e social, capazes de avaliarem com maior precisão os efeitos de suas decisões. Idéia esta que guarda certa lógica, mas restringe-se a teoria, pois na prática política, como conseqüência da distorção que nesta Casa impregnou-se, a corrupção, aconchavos, interesses, são o que têm norteado as escolhas de nossos senadores. Em uma votação pouco importa se uma proposta de lei é boa ou ruim, se traz benefícios ou malefícios, as convicções são deixadas de lado, pois o que importa é se foi proposta pela base do governo ou da oposição, e a partir daí cassam argumentos que fundamentarão seu voto contrário ou a favor. Assim, conseguiu-se enfraquecer esta característica que deveria nortear as tomadas de decisões na Casa. Este é um problema de difícil correção, onde o único caminho é a mudança da mentalidade política no Brasil, ou seja, educação política.
PROPOSTA DE REFORMA
Não há outra solução, para que o Legislativo brasileiro se sobreponha entre esta multidão de problemas, faz-se necessário, urgentemente, uma reforma eleitoral. E dentre os muitos pontos necessários a serem abrangidos por uma reforma séria e eficiente, cremos que o mais fundamental é exatamente o primeiro passo a ser tomado: uma mudança de competência do Senado Federal que não o extinga, mas sim lhe restrinja a atuação.
Notável facilmente é a constatação de que a superestrutura montada para comportar toda a máquina do Senado Federal tem trazido a população muito mais descontentamento do que satisfação. O orçamento destinado ao Senado brasileiro no ano de 2009 atingiu 2,7 bilhões de reais. Para se possa mensurar este valor basta dizer que o orçamento do Senado é o mesmo que o destinado ao Município de Campinas no interior paulista. Ou seja, as atividades de 81 senadores consomem igual valor ao previsto à todas as ações governamentais de um município com mais de 1 milhão de habitantes. Isto disseminado a um corpo de cerca de 10 mil funcionários, sendo boa parte destes sem concurso público. E, esta realidade não é muito diferente quando a análise recai sobre a Câmara dos Deputados, ou seja, duas estruturas gigantescas montadas para que as duas Casas tenham praticamente as mesmas atribuições, um desperdício de recursos incalculável.
Em entrevista a Agência Senado o Prof. José Afonso da Silva apontou o bicameralismo igualitário como uma das grandes falhas que a Constituição de 1988 incorreu. Na realidade, esta forma de competência concorrente onde às duas Casas tratam da mesma matéria renega os legisladores a uma função meramente formal, que não mais se coaduna com as exigências da atualidade. No entendimento do Prof. José Afonso e partilhado por grande parte dos corajosos juristas que enfrentam esta questão, “um bicameralismo onde cada Casa legislativa tivesse seu campo de atuação seria muito mais efetivo” [3].
Este bicameralismo desigual onde passariam pelo Senado Federal somente as questões que incidem de forma diferenciada sobre os Estados, o proporcionaria à cumprir seu dever de impedir tratamento desigual entre os entes federados. Reduziria, por conseqüência, seu quadro de pessoal (abolindo os comissionados, agregados e afins), suas despesas de funcionamento e as necessidades de benefícios concedidos atualmente, eliminando assim as principais causas da superestrutura do Senado.
Ainda existem outras questões que carecem serem repensadas quanto ao Senado Federal, como, por exemplo, o sistema de votação secreta, entre tantos outros. Entretanto, entendemos que esta proposta apresentada seria a etapa crucial para que o Senado pudesse melhorar do ponto de vista da representação, de seu caráter moderador e de sua relevância social, ao invés de constituir-se um peso a população que anseia veementemente por este momento.
CONCLUSÃO
Mudança! Com certeza este é o caminho a ser traçado para o aprimoramento do Poder Legislativo brasileiro. Não o radicalismo que busca a extinção do Senado, visto que infringe pontos indeléveis a política nacional. Primeiramente, por tratar-se de uma medida que enfraqueceria o sistema federativo brasileiro, logo somente admitido por meio de uma nova Constituição, visto tratar-se de uma cláusula pétrea. E, ainda, por renegar os estados menos populosos ao domínio político de estados populosos, causando, com isto, uma guerra política onde os menores seriam facilmente vencidos.
Obviamente que atualmente a instituição está maculada por tantas irregularidades e barbáries que têm sido divulgadas pela imprensa e outras tantas que estão sob o manto oculto da corrupção, mas isto não enseja a necessariedade da extinção do Senado. Não podemos cogitar que a incompetência de alguns membros defina a extinção de determinada instituição, sob pena de termos de extinguir o ensino público, o sistema de saúde, etc.; na realidade, se assim fosse poucas instituições ainda perdurariam.
Portanto, a essência da solução para a política em nosso país é a sua moralização. Não que precisemos de mais bancadas de segmentos religiosos, mas sim de políticos mais capacitados ao exercício de sua função e comprometidos com seu dever. Isto somado as mudanças estruturas mencionadas faz-nos concluir: O Senado Federal brasileiro não está obrigatoriamente fadado ao fracasso!
BIBLIOGRAFIA
BAAKLINI, Abdo. O congresso e o sistema político do Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O fim do Senado precisa ser discutido. Entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo. São Paulo, 22 jun. 2009.
DALVI, Luciano. Curso de Direito Constitucional. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. – São Paulo: Atlas, 2007.
PEREIRA, Aldo. Para que serve o Senado? Com que eficiência, honestidade e custo o Senado tem cumprido suas funções? Por que não as atribuir à Câmara? Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo. São Paulo, 10 dez. 2009.
RABAT, Márcio Nuno. Bicameralismo nos Estados Unidos, na Alemanha e na Inglaterra. Brasília: Estudo da Consultoria Legislativa, 2002.
SILVA, José Afonso. Constituição Cidadã – 20 anos. Entrevista concedida à Agência Senado. Brasília, 08 ago. 2008. Acessado em 10 fev. 2010. Disponível em http://www.senado.gov.br/agencia/verNoticia.aspx?codNoticia=77425&codAplicativo=2¶metros=jos%c3%a9+afonso+da+silva
ZANCANER, Gabriela. As competências do Poder Legislativo e as Comissões Parlamentares. São Paulo: Malheiros, 2009.
[1] Característica elencadas pelo Prof. Dalmo Dallari, em reportagem para o jornal O Estado de São Paulo em 22 de junho de 2009.
[2] Levantamento realizado em 12 de janeiro de 2010.
[3] Entrevista “Constituição Cidadã – 20 anos”, concedida a Agência Senado em 08 de agosto de 2008.
Acadêmico de Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR e estagiário do escritório Marins Bertoldi Advogados Associados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Leandro Marcelino de. Senado Federal: precisamos dele? Uma reflexão sobre a necessidade do sistema bicameral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 fev 2010, 07:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19280/senado-federal-precisamos-dele-uma-reflexao-sobre-a-necessidade-do-sistema-bicameral. Acesso em: 23 dez 2024.
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