SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; O REGIME JURÍDICO DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS; II – DA MANIFESTA INCONSTITUCIONALIDADE DA MP 478/2009; III – A REPERCUSSÃO DA MP 478/2009 NO PODER JUDICIÁRIO; IV – CONCLUSÕES;REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS;
INTRODUÇÃO
A base do atual SFH surgiu por volta da década de 70 para dar cabo à política habitacional no Brasil. Ao longo das décadas posteriores, o SFH passou por várias modificações orgânicas, passando pelas extintas COHAB’s, Banco Nacional da Habitação – BNH – até culminar na forma atual, com administração pertencente à CEF – Caixa Econômica Federal.
A partir dos anos 80, os múltiplos casos de comprometimento estrutural eclodiram os imóveis objeto da política habitacional da década anterior, primeiramente em Santa Catarina, depois por todo o país, decorrentes do péssimo modo de edificação das unidades, respaldado por um critério empírico de construção que, com o passar dos anos, se manifestaria de modo congênito nas unidades habitacionais.
Com isso, de modo mais que natural, surgiu uma escola de especialistas no assunto, a partir de cada ramo envolvido (Engenharia, Contabilidade, Finanças, Seguro, etc), principalmente no Direito. Esses profissionais começaram a pleitear os direitos dos mutuários, formalmente garantidos pelo SFH, e obtiveram sucessivos êxitos, sempre por meio de vias da legalidade.
Cumpre informar, também, que desde as primeiras defesas judiciais promovidas pelas seguradoras do sistema, a tese basilar era a discussão acerca da competência da Justiça Federal para julgar os feitos, de modo que ao longo dessas décadas, as partes digladiaram ferozmente sobre as mais profundas questões de competência jurisdicional para as ações securitárias do SFH.
Tal longa batalha findou com uma decisão acachapante do STJ, em sede de recurso repetitivo, que consolidou definitivamente a competência estadual para processamento e julgamento da matéria[1].
O corpo gerencial do SFH, sempre oponente e resistente aos direitos dos mutuários, insatisfeito com decisão, procurou alternativas extrajurisdicionais para conter a afirmação dos direitos previstos no ordenamento e promoveu, em uma manobra política bastante elaborada, qual seja, a promulgação da Medida Provisória 478/2009, cujo teor dispõe sobre uma profunda reestruturação do SFH, com a extinção, inclusive, da Apólice Securitária, que sempre foi o instrumento contratual basilar de amparo aos mutuários perante os ardis mecanismos financeiros do SFH.
O pilar de estruturação da controvérsia se situa preponderantemente no art. 6º da referida MP, que assim dispõe:
Art. 6º A representação judicial do SH/SFH e do FCVS será efetuada diretamente pela União, por intermédio da Advocacia-Geral da União, ou por intermédio da Caixa Econômica Federal mediante convênio.
Com a MP 478/2009, renasce essa velhíssima controvérsia judicial, sob novas roupagens, objeto de análise neste ensaio, evidenciada por contornos políticos subliminares, eivados de um desvio de finalidade inconcebível na utilização de instrumentos normativos primários, descaracterizando totalmente o manto de constitucionalidade do ato normativo referido acima.
I – O REGIME JURÍDICO DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS
Inicialmente, faz-se mister uma breve atenção a determinados caracteres que condicionam a edição da espécie normativa denominada Medida Provisória.
A conhecida MP é espécie normativa primária, pois sua previsão é de natureza expressa e diretamente constitucional, de competência exclusiva do Chefe do Executivo, cuja finalidade é introduzir no mundo jurídico fatos dotados de certa importância e necessidade iminente de tutela do Direito, ou seja, de fatos de natureza urgente, que não poderiam aguardar o regular trâmite do processo legislativo.
Nesse sentido, o art. 62 da CF/88 preconiza que:
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
O conceito de medida provisória é exemplarmente dado pelo trecho a seguir:
Em resumo, as medidas provisórias são atos normativos primários, sob condição resolutiva de caráter excepcional no quadro da separação dos Poderes, e, no âmbito federal, apenas o Presidente da República conta o poder de editá-las. Ostentam nítida feição cautelar. Embora produzam o efeito de concitar o Congresso a deliberar sobre a necessidade de converter em norma certo trecho da realidade social, não se confundem com meros projetos de lei, uma vez que desde quando editadas já produzem efeitos de norma vinculante[2].
Assim, se observa que a edição de MP está indissociavelmente atrelada, ou seja, está, na verdade, precipuamente condicionada à existência da relevância e urgência que legitime sua prolação por parte do Chefe do Executivo.
Em outras palavras, o fundamento teleológico que autoriza a edição de Medida Provisória no ordenamento constitucional brasileiro reside na excepcionalidade da situação de fato que clama por uma regulação normativa e que não pode aguardar a tramitação normal de um projeto de Lei. A configuração da realidade material almeja uma normatização emergencial, de natureza excepcional, e essa característica é conditio sine qua non para o exercício de uma das formas de concretização da função atípica de legislar atribuída ao Executivo, dando-lhe, assim, contornos e fundamentos de validade, de legitimidade e constitucionalidade.
Por sua vez, o regime jurídico de urgência não é característica atribuída exclusivamente às Medidas Provisórias. No ordenamento jurídico brasileiro há, e não poderia ser diferente, inúmeros outros casos de excepcionalidades legitimadas como forma de resguardar situações materialmente urgentes, residentes nos mais variados ramos e segmentos jurídicos.
Para exemplificar, no Direito Penal, a legítima defesa e o estado de necessidade são subelementos contemplados na contemporânea teoria do delito e que excluem a ilicitude da conduta praticada pelo agente e previstas no art. 23 do Código Penal Brasileiro. Ou seja, ainda que o agente tenha se conduzido de modo tipicamente criminoso, com dolo inclusive, nessas situações emergenciais não há a caracterização da responsabilidade penal do agente, porque não há crime. O agente estava legitimado por uma configuração de fato que o autorizava a agir dessa ou daquela maneira. A urgência e relevância da situação de legitima defesa e estado de necessidade são indiscutíveis, concretizando a excepcionalidade que legitima a desconstituição da conduta delituosa.
No Direito tributário, há previsão constitucional de instituição do chamado Imposto Extraordinário de Guerra (art. 154, II da CF/88). O seu fundamento é, justamente, a urgência na captação de recursos para financiamento das necessidades estatais em situação de conflito armado. Outro exemplo remete à figura tributária do Empréstimo Compulsório instituído para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, previsto no art. 148, I da CF/88.
No âmbito administrativo, pode-se citar o exemplo de dispensa de procedimento licitatório em caso de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos, (art. 24, IV da Lei 8.666/93). Essa circunstancia autoriza uma exceção à regra da licitação, que obedece à excepcionalidade da uma emergência materialmente caracterizada e que se pauta pela incompatibilidade com a demora, normalmente inerente ao desenvolvimento do múnus público.
No processo civil, por sua vez, há uma situação emblemática em âmbito recursal que retrata exatamente o que aqui se expõe. A regra para o questionamento de decisão judicial interlocutória é por meio da interposição do recurso de Agravo na modalidade Retida, conforme instituído na Lei 11.187/05, que alterou o CPC. Todavia, quando se tratar de uma situação em que esteja presente o perigo de dano grave ou de difícil reparação insuscetível de qualquer espera, sob pena de ineficácia do provimento, ou seja, de um evento que não pode aguardar o provimento jurisdicional regular, assim caracterizado o chamado periculum in mora, poderá ser invocada uma modalidade excepcional de Agravo, na sua forma instrumental, que possui procedimento mais rápido para analise da insurgência.
Como se observa em todos os exemplos, as situações fáticas necessitam de uma providência mais célere, de modo que a urgência é o fundamento primeiro para a prática de quaisquer desses atos, sob pena de ilegalidade da conduta e da licitação, inadmissão do recurso e inconstitucionalidade do tributo, etc.. Em outras palavras, se não estiver presente a emergência da situação material, o ordenamento não autoriza a prática do ato, sendo desprovido de qualquer respaldo normativo.
A Medida Provisória, como uma das manifestações da tutela jurídica de situações de emergência, não foge a essa lógica e sua edição deve estar respaldada pela mesma cortina teleológica. Fora desse regime hermenêutico de compreensão da normatização da urgência, tendo em vista a efetividade do Direito e seus efeitos no plano das diversas relações sociais, a MP e qualquer outra medida emergencial que se distancie desses parâmetros não encontra qualquer fundamento no ordenamento constitucional brasileiro.
Pois bem, feitas essas breves considerações sobre a Medida Provisória e as tutelas das situações emergenciais, passa-se a analisar alguns fatores relevantes para a caracterização da inconstitucionalidade da MP 478/2009, conforme se verá a seguir.
II – DA MANIFESTA INCONSTITUCIONALIDADE DA MP 478/2009
Após esses brevíssimos esclarecimentos acerca contornos das Medidas Provisórias como espécie normativa primária, cumpre analisar mais detidamente a MP 478/2009, confrontando-a com o ordenamento constitucional vigente, para que se evidencie sua manifesta inconstitucionalidade.
A Medida Provisória, como já dito, é um tipo de ato normativo primário, expressa e diretamente previsto no texto constitucional, tendo por escopo regular situações dotadas de tamanha importância que a necessidade iminente de tutela do Direito se faz patente. De outra forma, deve se destinar a fatos urgentes que jamais, em tese, poderiam aguardar o normal procedimento legislativo constitucional.
Assim, a introdução de norma pela via da MP está visceralmente condicionada à existência da relevância e urgência que legitime sua edição. O fundamento teleológico da MP é a excepcionalidade da situação de fato, que necessita de uma regulação emergencial e que não pode aguardar a tramitação normal de um projeto de Lei. A configuração da realidade material emergencial, caracterizando sua excepcionalidade, é conditio sine qua non para a legítima edição de uma MP, dotando-lhe, assim, de validade e constitucionalidade perante o ordenamento como um todo.
Por sua vez, o critério urgente da normatização por MP é tratado amplamente pela Doutrina e recebe tratamento bastante sedimentado uniforme e pacífico quanto a esse assunto específico, conforme se observa a seguir:
São pressupostos formais das medidas provisórias a urgência e a relevância da matéria sobre que versam, requisitos comuns às medidas cautelares em geral. Para que se legitime a edição da medida provisória, há de estar configurada uma situação em que a demora na produção da norma passa acarretar dano de difícil ou impossível reparação para o interesse público[3].
No mesmo sentido, comentando acerca da origem desse instrumento normativo no Direito Italiano e, para o Brasil, na figura do antigo Decreto-Lei, o Prof. Alexandre de Moraes assim se pronuncia:
Apesar dos abusos efetivados como decreto-lei, a prática demonstrou a necessidade de um ato normativo excepcional e célere, para situações de relevância e urgência. Pretendendo regularizar esta situação e buscando tornar possível e eficaz a prestação legislativa do Estado, o legislador constituinte de 1988 previu as chamadas medidas provisórias, espelhando-se no modelo italiano[4].
Diante dessas peculiaridades tão conhecidas da Medida Provisória, cumpre esclarecer certas incongruências latentes na MP 478/2009.
A primeira delas é que o foco normativo do ato se concentra na alteração e reestruturação do antigo Sistema Financeiro da Habitação – SFH, propondo-lhe novos contornos e nova administração gerencial. Porém, já em sua exposição de motivos fica evidenciada uma proposta fundada num interesse público dissimulado, que esconde a manobra político-financeira em direção à diminuição dos valores pagos a título de indenização aos mutuários que têm suas moradas acometidas por sinistros estruturais.
Afora toda essa celeuma política que perpassa pela referida MP, dada sua publicação ter se dado no ocaso do ano de 2009, num verdadeiro “fim de festa” e “por baixo da porta”, o centro deste ensaio se direciona muito mais para o seu aspecto jurídico, não obstante perplexas digressões políticas, e, assim, passa-se a discorrer.
A exposição de motivos da referida MP assim inicia suas justificativas:
2. A extinção da Apólice do Seguro Habitacional do Sistema Financeiro da Habitação - SH/SFH. Tal medida tem por objetivo permitir que o Fundo de Compensação de Variações Salariais - FCVS possa oferecer coberturas de morte, invalidez permanente, danos físicos ao imóvel e relativas às perdas de responsabilidade civil do construtor, para as operações de financiamento habitacional averbadas na Apólice do SH/SFH, as quais atualmente já contam com a garantia do Fundo e, por consequência, da União, preservando todos os direitos dos segurados.
Após uma longa pausa nos termos jurídicos da situação, recheada de argumentos políticos e claramente ideológicos, a Exposição retorna à sua fundamentação dispondo o seguinte:
9. Assim, o aumento das despesas para regulação de sinistros associado à elevação das despesas com indenizações judiciais culminaram na ocorrência de déficit no balanço do SH, apurado no exercício de 2008.
9.1. Além disso, estudos atuariais indicam que a trajetória deficitária tende a se agravar, ou seja, os valores dos prêmios arrecadados serão insuficientes para cobertura das despesas incorridas, ensejando o comprometimento cada vez maior de recursos do FCVS, garantidor do equilíbrio da Apólice.
10. À vista do exposto e, ainda, tendo em vista que a atual sistemática possui ineficiências operacionais e de natureza regulamentar, consideramos necessária a reformulação do modelo vigente, sem violar o pressuposto fundamental dos direitos adquiridos dos contratos assegurados pelo SH/SFH. A proposta tem o condão de regularizar e reestruturar um modelo atípico, onde as companhias seguradoras não possuem nenhum risco e a União, como real seguradora dos contratos, tem sido impedida de defender o FCVS em juízo, contra a dilapidação de recursos públicos. As mudanças propostas serão a seguir descritas.
E finaliza com a seguinte proposta:
1.1. Desse modo, propomos a transferência das atividades atualmente realizadas pelas sociedades seguradoras para a CAIXA, na qualidade de Administradora do FCVS, cabendo a esta a responsabilidade pela operacionalização das garantias relativas à morte, invalidez permanente, danos físicos do imóvel e à responsabilidade civil do construtor, relativas aos contratos atualmente averbados na Apólice Habitacional do SH/SFH, utilizando-se dos prêmios arrecadados bem como dos recursos do FCVS. Com isso, o FCVS, que já assumia integralmente o risco da Apólice, passa também a se responsabilizar pela regulação dos sinistros. Dessa forma, completa-se a alteração iniciada em 1988, concentrando-se unicamente no ente público todas as garantias e atribuições relacionadas ao SH/SFH.
Com essas considerações feitas pela Exposição dos Motivos da MP 478/2009, pode-se desdobrar a análise de suas justificativas em contraponto à realidade histórica do SFH, conforme se faz a seguir.
O Sistema Financeiro da Habitação foi inaugurado de modo bastante rudimentar na década de 70, provocando a explosão de um programa de construção de habitações populares em todo o país, financiado pelo Poder Público e executado pela iniciativa privada, na maioria dos casos. Na década de 80, as primeiras falhas desse sistema precário e descontrolado se evidenciam na medida em que o método de construção se mostrou absolutamente equivocado e os eventos de sinistralidade eclodiram cada vez mais intensamente.
Em decorrência disso, como não poderia ser diferente, tendo em vista a luta dos mutuários por seus direitos civis e consumeristas, ao longo de toda a década de 90 assistiu-se à multiplicação das ações judiciais que visavam à obtenção de indenização, formalmente prevista nos instrumentos normativos exarados pelo próprio SFH (Apólices, Resoluções, Portarias, etc.), pelos sinistros físicos que acometiam infindáveis regiões do Brasil. O movimento sistêmico do mecanismo financeiro e estatístico do SFH, por sua vez, começou a exigir constantes e rotineiras alterações na cobertura e nos procedimentos de regulação dos sinistros ao longo dos anos 90 e início dos anos 2000.
O que se observa, assim, é que o ciclo histórico do SFH se desenvolve há quase 40 (quarenta) anos, praticamente de modo semelhante, sem que tenha havido qualquer colapso financeiro. Ao contrário de toda a justificativa da para a edição da MP discutida, a realidade fático-financeira sempre foi bem distinta, jamais estando o SFH próximo da ruína.
Isso é absolutamente inegável por vários aspectos, dentre eles a) as seguradoras integrantes do sistema jamais vieram à falência (ao contrário, continuaram obtendo assombrosas margens de lucro com a atividade); b) jamais houve qualquer saque do FCVS, pois o sistema de garantias do SFH sempre funcionou satisfatoriamente, prevendo medidas intermediárias de alocação de recursos (não há prova concreta de que as indenizações “arranharam” os recursos da reserva técnica das seguradoras – elemento financeiro de garantia de liquidez muito anterior ao FCVS na escala de deduções para pagamentos indenizatórios); e, por fim, c) o Estado nunca precisou intervir para dar suporte financeiro ao SFH, que sempre funcionou autossuficientemente a partir das quantias movimentadas pelos próprios mutuários mensalmente.
Outro aspecto bastante curioso é que a Exposição de Motivos da MP 478/2009 não menciona a existência do FESA – Fundo de Equalização de Sinsitralidade da Apólice em momento algum. O FESA, até antes da MP, era um fundo constituído de recursos provenientes da movimentação financeira mensal executada pelo SFH. Para ficar mais claro, faz-se mister a transcrição de trecho de um outro artigo de minha autoria publicado na Internet:
A contraprestação do seguro, (...) é paga pelo mutuário através da prestação do seu financiamento, por meio de um percentual mensal do valor financiado, que é repassado pelo agente financeiro e vinculado a uma reserva monetária compartilhada por todas as seguradoras do SFH e, também, a um fundo denominado FESA (Fundo de Equalização de Sinistralidade da Apólice Securitária). Esse fundo se constitui formalmente como uma sub-conta do FCVS (Fundo de Compensações e Variações Salariais), mas que não se confundem em nenhum momento[5].
Portanto, por uma análise técnica da Exposição de Motivos da MP se observa que ela em momento algum preenche o requisito constitucional de urgência, pois pretende, retoricamente, dar contornos emergenciais a uma situação que se reproduz repetidamente há mais de 30 (trinta) anos, inclusive, resguardadas as falhas do programa, assegurando e garantindo os direitos dos mutuários que não têm qualquer culpa pela má implementação da política habitacional no Brasil.
A justificativa da MP se vale de um fundamento inexistente. O sistema não está para ruir como pretensamente expõe e a edição da MP se revela muito mais uma manobra política e antijurídica de reviravolta nas ações securitárias, para diminuir o pagamento de indenizações – justíssimas, diga-se de passagem.
Para comprovar o alegado, basta que se pense: o SFH funcionou por quase 40 (quarenta) anos sem que encontrasse a ruína, mesmo com as grandes quantidades de sinistros indenizados. Todo o mecanismo de garantias financeiras do SFH sempre arcou com as oscilações do cambio e dos surtos de sinistralidade decorrentes das ações judiciais de forma autossuficiente.
Desse modo, se há a necessidade de qualquer modificação na estrutura ou função do SFH, esta deve ser implementada por meio de legislação ordinária, sob a observância do devido processo legal na seara legislativa, pois a edição de Medida Provisória não se presta para tanto, sendo manifestamente inconstitucional. A situação relatada não é dotada da urgência necessária e premente que autorize a instituição de MP.
III – A REPERCUSSÃO DA MP 478/2009 NO PODER JUDICIÁRIO
A “estranheza jurídica” da MP analisada é tão evidente que houve grande surpresa para os mutuários e seus patronos, pegos absolutamente desprevenidos e deixados à deriva em um oceano de insegurança jurídica, por conseqüência de um instrumento normativo claramente político e muito pouco - ou nada - jurídico. Mais aguda é a perplexidade demonstrada pela magistratura de diversas localidades do país, que traduz-se lucidamente nos trechos de uma das pioneiras decisões acerca da inconstitucionalidade da MP 478/2009, em sede de controle difuso de constitucionalidade, proferida pelo MM Juiz de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Palhoça – SC, conforme se lê a seguir:
Inicialmente cumpre dispor que a edição e publicação da MP nº 478/2009, causou, por parte deste magistrado, certa perplexidade, para não dizer inconformismo, considerando os motivos pelos quais foi editada referida norma (...). Ora, o Poder Executivo não pode se valer de Medidas Provisórias, instituto este que visa suprir a ausência de lei, em casos extraordinários de urgência e relevância, consoante determina o art. 62, da Constituição Federal, para buscar decisões favoráveis no âmbito do Poder Judiciário. Há que se ressaltar que a matéria correlata ao Sistema Financeiro Habitacional, após longo debate jurídico, restou pacificada nos Tribunais de Justiça Estaduais e no Superior Tribunal de Justiça, inclusive com relação a competência da Justiça Estadual para apreciar as questões relativas aos mutuários do SFH[6].
E prossegue com sua indignação da seguinte forma:
Por outro norte, considerando o caráter social do sistema, entendo que o Chefe do Poder Executivo Nacional não pode valer-se do instituto da Medida Provisória para alterar a competência jurisdicional, motivado pela fragilidade das defesas apresentadas no âmbito da Justiça Estadual, e, assim buscar alterar o entendimento já pacificado no âmbito desta justiça, por ser desfavorável aos cofres públicos. Entendo ainda, que todos devemos buscar o interesse maior do Estado, através de medidas que visem a conservação do patrimônio público, mas não podemos aceitar, contudo, que o Poder Executivo desvirtue a aplicabilidade das Medidas Provisórias para tentar suprir falhas e ineficiência administrativas[7].
De outra forma, com igual espanto e indignação, o MM Juiz da 1ª Vara Cível de Paulista, Estado de Pernambuco, Dr. Otoniel Ferreira dos Santos, reconhece a inconstitucionalidade da MP 478/2009 de modo ainda mais minucioso, fundamentado e brilhante, conforme se lê abaixo:
Estes processos indenizatórios ajuizados pelos mutuários contra as seguradoras, tratados como um mal, como algo nocivo, pelo Governo, significam, na verdade, um grito desesperado contra uma situação perversa, verdadeiramente trágica, que aqueles enfrentam, por verem as suas vidas mudadas repentinamente, em face da ameaça de desmoronamento dos seus lares, em função do descaso e da má-fé dos que os construíram, vinculados ao mesmo Governo que ora revela o mesmo descaso na sua sorte em relação aos iminentes sinistros[8].
E prossegue:
A relevância ou a urgência que justificaram a MP são no sentido de abafar estes gritos desesperados, ou seja, que os mutuários devem ficar sem o teto, que está ameaçado de ruína, sem o aluguel do imóvel que foi forçado a locar, pelo fato de não poder mais habitar na sua residência, sem ser indenizado, diante da impossibilidade de ver a sua pretensão julgada procedente em razão de uma cláusula perversa da Apólice, que não cobre danos advindos de vícios de construção internos, cláusula esta mantida pela MP e que passa a ser a sua suprema esperança de vitória contra os incômodos mutuários, que ousam buscar uma solução plausível para a sua desdita. A Medida apresentou como justificativa, pois, atender interesses econômico-financeiros do Governo, como bem pode ser visto na Exposição de Motivos. A preocupação é fazer com que os mutuários não alcancem mais nenhuma vitória naqueles processos ora em tramitação na Justiça Estadual, nem que seja sob os escombros dos direitos à vida, à habitação e, sobretudo, a uma vida digna[9].
Diante disso, faço minhas as palavras do próprio magistrado e pergunto se esta preocupação de extinguir a apólice habitacional atende aos critérios de relevância e urgência previstos no art. 62, caput, da CF? A MP só revela uma face da moeda habitacional brasileira, a que se atrela aos seus editores, relativa “à prevenção de possíveis prejuízos que venham atingir os cofres públicos, em função da demanda judiciária vitoriosa dos mutuários em busca de indenizações por danos em suas residências[10]”.
Desse modo resta uma indisfarçável vergonha jurídica que se sente perante a leitura desta MP, pois sua suposta urgência é fincada em interesses financeiros do estado que aniquilam completamente os anseios de justiça mutuários. Claramente inconstitucional é esta MP, pois:
A problemática do SFH, denunciada como trágica pela Exposição de Motivos da MP, não é nova e representa algo elaborado pelos órgãos a ele vinculados. A sua estrutura foi construída através de lei e administrada pelos agentes financeiros do Governo, que têm convivido com "a relevância e a urgência" por vários anos, sem terem a competência gerencial para encontrar uma solução plausível para tal problemática, sem o sacrifício do princípio da dignidade da pessoa humana (CF-1º, III). (...) A matéria da MP, naquilo que concerne aos processos ora em destaque, não apresentam uma situação extraordinária a ponto de justificar a sua edição, podendo, se fosse o caso, ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional[11].
E finaliza de forma lapidar:
A arguição de inconstitucionalidade é matéria de ordem pública por excelência e o julgador, diante de sua condição de Guardião da Constituição, de agente político destinado a zelar por sua aplicação eficaz, não pode e nem deve se omitir deste mister, sob pena de permitir a vigência do nulo, do ilícito, do imoral, do inconstitucional ... do injusto (...)
Por todo o exposto, indefiro os pedidos formulados pela Suplicada e deixo de aplicar ao presente feito a MP 478/2009, naquilo que diz respeito à Apólice do Seguro Habitacional do SFH, declarando a sua inconstitucionalidade, com apoio nos arts. 5º, XXXV, e 102, III, b, da Constituição Federal, por não atender aos pressupostos de relevância e urgência, previstos no art. 62, caput, da mesma Carta Constitucional, e por ferir ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Norma Constitucional, c/c o art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil. Intimem-se. Paulista, 19 de fevereiro de 2010. OTONIEL FERREIRA DOS SANTOS JUIZ DE DIREITO[12]
IV – CONCLUSÕES
Por todo o exposto, a inconstitucionalidade da Medida Provisória 478/2009 resta exaustivamente evidenciada, tendo em vista o seu absoluto desvio de finalidade e a ausência dos critérios da relevância e, principalmente, da urgência que fundamentem sua edição.
Por fim, deixa-se registrado o sentimento de injustiça e indignação que é despertado no âmago dos magistrados estaduais por esta norma absurda de forma a refletir, inclusive nos princípios federativo do Estado Brasileiro:
Nesta é possível constatar a assunção de duas premissas absurdas, quais sejam, o equívoco da Justiça Estadual ao julgar procedentes as demandas indenizatórias ao arrepio das cláusulas constantes da Apólice, e a expectativa de que a Justiça Federal servilmente atenderá as pretensões do Governo, fechando as portas para os direitos dos mutuários, rendendo-se aos seus irrefutáveis argumentos que não foram bem exercitados pelas seguradoras[13].
Encerra-se, assim, com a mais sincera esperança de que essa MP seja erradicada do ordenamento, seja por rejeição do Congresso, seja pelo controle de constitucionalidade, pois é a mais comezinha norma já editada na esfera de política habitacional do Brasil. Caso essa norma permaneça produzindo esses efeitos nefastos à sociedade, não são mensuráveis as conseqüências da já calamitosa situação habitacional brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 1 ed. Salvador: JusPodivum, 2008.
FIGUEIREDO. Alcio Manoel de Sousa. Prática Processual no Sistema Financeiro da Habitação, 1. ed. Curitiba: Juruá Editora Ltda., 2009.
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. SFH - Sistema Financeiro de Habitação: Questões Controvertidas - Doutrina, Jurisprudência e Modelo Processual, 1. ed. Campinas: LZN, 2002.
FIGUEIREDO, Alcio. M. S. (Org.) ; OLIVEIRA, Álvaro J. Carvalho de (Org.) ; FRANÇA Fº, Walter (Org.) ; CARVALHO, Uesler (Org.) ; LEITE, Tância de Carvalho (Org.) ; NOVAIS, Sérgio H. Andrade (Org.) ; ALMEIDA, Nilzete da Costa (Org.) ; THOMÉ, Márcia Correia (Org.) ; ROCHA, Maria Clara da Silva (Org.) ; GONCALVES, Lindoval C. (Org.) . Sistema Financeiro da Habitação: Reflexos Financeiros e Econômicos. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora Ltda, 2004. v. 1.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
[1] REsp. 1091363, Min. Relator Carlos Fernando Mathias, Publicado em 25/05/2009).
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 926.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 926.
[4] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 670.
[5] “A competência jurisdicional nas ações oriundas de contratos de seguro, adjetos ao mútuo hipotecário, firmados no âmbito do SFH” disponível no domínio http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6452
[6] Decisão interlocutória publicada em 10/02/10, proferida na Ação Ordinária nº. 0004850-46.2005.8.24.0045, em tramite perante a 1º Vara Cível da Comarca de Palhoça, Estado de Santa Catarina.
[7] Idem.
[8] Decisão interlocutória proferida em 10/02/10, nos autos da Ação Ordinária nº. 0000458-56.2007.8.17.1090, em tramite perante a 1º Vara Cível da Comarca de Paulista, Estado de Pernambuco.
[9] Decisão interlocutória proferida em 10/02/10, nos autos da Ação Ordinária nº. 0000458-56.2007.8.17.1090, em tramite perante a 1º Vara Cível da Comarca de Paulista, Estado de Pernambuco.
[10] Idem.
[11] Ibidem
[12] Ibidem
[13] Ibidem
Advogado e Pós-Graduando em Direito Público. Atuação profissional com ênfase em Direito Civil, Tributário, Administrativo e Econômico. Salvador - BA<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUCENA, Rafael Nogueira de. A inconstitucionalidade da Medida Provisória nº. 478 de 29 de dezembro de 2009 por ausencia do critério de urgencia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 fev 2010, 09:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19312/a-inconstitucionalidade-da-medida-provisoria-no-478-de-29-de-dezembro-de-2009-por-ausencia-do-criterio-de-urgencia. Acesso em: 23 dez 2024.
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