Tema recorrente e de grande repercussão na doutrina e na jurisprudência nacional examina sobre a possibilidade de a investigação penal ser realizada pelo Ministério Público. A análise do assunto remonta à aplicação de normas (princípios e regras) constitucionais e infraconstitucionais atreladas ao embate jurídico nos tribunais, recorrendo ainda à evolução histórica no direito comparado e no meio acadêmico.
O Ministério Público ganhou, com o advento da CF/88, o “desenho de instituição voltada à defesa dos interesses mais elevados da convivência social e política, não apenas perante o Judiciário, mas também na ordem administrativa[1]”. É cediço que se trata de instituição permanente, com assento constitucional (art. 127 e seguintes), essencial à função jurisdicional do Estado e detentor de atributos diversos entre os quais: a de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
No entanto, cumpre examinar se entre tantas qualidades e prerrogativas a Instituição Ministerial pode agir para além da titularidade privativa da ação na seara penal. Ou seja, impende verificar se o Ministério Público, no exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF), pode também praticar atos de investigação em suposta contradição ao artigo art. 144, § 1º, I e IV[2], também da Lei Maior.
O tema em discussão aponta entendimentos conflitantes. De um lado há quem restringe a atuação do Ministério Público à persecução penal em juízo. Outros, porém, adotam sentido contrário possibilitando também a atividade investigativa a ser exercida pelo Promotor de Justiça. Passa-se então a observar os argumentos de cada lado.
Com fundamento no citado art. 144, § 1º, I e IV da Constituição Federal, sustenta parcela da doutrina que a investigação conduzida pelo Ministério Público atenta contra o sistema acusatório, uma vez que surge o desequilíbrio entre acusação e defesa a partir do momento em que se admite a atuação do “Parquet” no papel de investigar. Ademais, aduz essa corrente que o Ministério Público é detentor do poder de requisição da instauração de inquérito policial e não titular da presidência desse instrumento investigativo. Esses são os principais argumentos.
A doutrina do professor Guilherme de Souza Nucci[3], em profunda pesquisa sobre o tema, faz alusão a Maurício Henrique Guimarães Pereira (Habeas Corpus e polícia judiciária, p. 208) e Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (Procedimento administrativo criminal, realizado pelo Ministério Público, p. 3) como representantes do entendimento acima exposto. Em especial são as palavras do último jurista:
“Dirigir a investigação e a instrução preparatória, no sistema vigorante, pode comprometer a imparcialidade. Desponta o risco da procura orientada de prova, para alicerçar certo propósito, antes estabelecido; com abandono, até, do que interessa ao envolvido. Imparcialidade viciada desatende à justiça”.
Importante destacar decisões tradicionais do Supremo que pautou sob esse mesmo raciocínio, como se observa no julgamento do RE 205.473-AL (15.2.1998), que teve como relator o eminente Ministro Carlos Velloso:
“A requisição de diligências investigatórias de que cuida o art. 129, VIII, CF, deve dirigir-se à autoridade policial, não se compreendendo o poder de investigação do Ministério Público fora da excepcional previsão da ação civil pública (art. 129, III, CF)”.
Por outro lado, todavia, há doutrina que encampa entendimento favorável à possibilidade de a investigação ser produzida pelo Ministério Público[4]. Diga-se de passagem, é a mais crescente e tendenciosa a se firmar em nosso ordenamento jurídico.
Primeiro, conclama essa corrente sobre a necessidade de se distinguir controle externo da atividade policial e presidência do inquérito policial. A orientação dada é que com a atividade investigatória realizada pelo Ministério Público não há a substituição da presidência do inquérito policial, que possui previsão de sua titularidade em dispositivo constitucional, segundo preconiza o art. 144, § 4º, CF[5].
O que se entende sobre controle externo da atividade policial, na lição do professor Emerson Garcia[6], é que os “organismos policiais” estão “sujeitos à efetiva fiscalização” do Ministério Público pelos mecanismos de equilíbrio ou sistemas de controle (freios e contrapesos), como consagração do Estado Democrático de Direito.
Menciona, ainda, o ilustre professor o caso hipotético em que houvesse a omissão da Autoridade Policial na prática de um ato, v.g., a ausência na lavratura de um auto de prisão em flagrante. Nessa hipótese, poderia o Promotor de Justiça consignar sua presença no registro a fim de validar a atividade realizada e toda a prova produzida no ato. Por fim diz o ilustre professor:
“Há muito, a lei deixou de ser unicamente o elemento limitador da atividade estatal, passando a assumir a posição de substrato legitimador desta, o que interdita a prática de atos contra legem ou praetar legem e torna cogente a obrigação de agir secundum legem, conforme a conhecida fórmula de Stassinopoulos. Uma interpretação teleológico-sistemática da legislação pátria nos permite concluir que tal conduta será legítima”.
Outro argumento que merece especial atenção e que na verdade é o principal fundamento para admitir-se a investigação pelo Ministério Público é o que a doutrina explica – e o Supremo acolheu – sobre a teoria dos poderes implícitos.
No passado, dois precedentes históricos advindos do direito Norte-americano (Myers v. Estados Unidos e McCulloch v. Maryland) serviram de suporte para o acolhimento dessa teoria em nosso direito interno. Tal fato deu origem à teoria dos poderes implícitos – inherent powers – que consiste em assegurar implicitamente ao detentor de uma competência final os meios necessários e suficientes para exercer o seu intento. Nesse sentido pronunciou o Ministro Celso de Mello[7]: “a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que foram atribuídos”.
A doutrina do professor Pedro Lenza[8] incrementa sobre o princípio aludido ao dispor que para sua aplicação no direito pátrio há a necessidade de se passar por uma análise implícita de razoabilidade e proporcionalidade. Cita também casos outros em que o Supremo entendeu aplicável este princípio[9], asseverando, no entanto, ser a possibilidade de investigação pelo Ministério Público o tema mais polêmico. No final, sustenta o nobre professor que a possibilidade do exercício da atividade investigatória pelo Ministério Público decorre da titularidade privativa da ação penal e que tal raciocínio se mostra compatível com suas finalidades institucionais.
No mesmo sentido manifesta-se a doutrina constitucionalista do professor Alexandre de Moraes[10], sobre a teoria dos poderes implícitos e investigação do Ministério Público:
“Ao erigir o Ministério Público como garantidor e fiscalizador da separação de poderes e, consequentemente, dos mecanismos de controles estatais (CF, art. 129, II), o legislador constituinte conferiu à Instituição função de resguardo ao status constitucional do cidadão, armando-o de funções, garantias e prerrogativas que possibilitassem o exercício daquelas e a defesa destes.
(...)
Não reconhecer ao Ministério Público seus poderes investigatórios criminais implícitos corresponde a diminuir a efetividade de sua atuação em defesa dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, cuja atuação autônoma, conforme já reconheceu nosso Supremo Tribunal Federal, configura a confiança de respeito aos direitos, individuais e coletivos, e a certeza de submissão dos Poderes à lei.”
Ante os argumentos acima expostos, não é difícil perceber que a discussão é interessante, pois de um lado uma corrente fundamenta-se em valores consideráveis como a imparcialidade e a exaltação da função de custos legis do “Parquet”. Noutro giro, entretanto, há aqueles que buscam dar maior efetividade a atividade investigativa ao atribuir poderes ao Ministério Público a fim de implementar mecanismos de controle e à melhor elucidação de fatos ilícitos.
Penso estar com razão a segunda corrente. De fato, é imprescindível que para se buscar uma justiça justa não se pode aceitar a atuação de órgãos estatais inquinados do vício de parcialidade. Ocorre que permitir a atuação do Ministério Público na atividade investigativa não irá conduzir ao um juízo tendencioso na persecução penal.
Ao revés, atuando o Ministério Público, garante-se uma investigação cada vez mais fiscalizada quando presidida pela Polícia Judiciária. Já quando o Promotor de Justiça investiga diretamente, possibilita-se um instrumento aditivo de apuração de condutas criminosas. Assim, acaso existentes os indícios de autoria e a materialidade do crime deverá o Promotor oferecer a denúncia em se tratando de ação penal pública, do contrário, deverá requerer o arquivamento da peça investigativa (desconsiderando a possibilidade de novas diligências). Quer-se com isso dizer que o órgão de execução do Ministério Público, atento aos fins de sua atuação funcional, deverá estribar sua conduta sempre vinculada ao resultado da investigação produzida.
Não se pode esquecer que o papel de defensor da ordem jurídica, insculpido na Carta Magna, outorga poderes a Instituição Ministerial para a consecução da decantada justiça coletiva. O propósito parcial e perseguidor predeterminado por um representante do “Parquet” na ação penal não pode ser considerado como regra no ordenamento jurídico e, acaso venha existir, deverá ser sanado pela forma prevista em lei[11].
Não é por outra razão que o CNMP editou a resolução de nº 13 a qual prevê a atuação do Ministério Público na atividade investigativa criminal:
“Art. 1.º O procedimento investigatório criminal é instrumento de natureza administrativa e inquisitorial, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais de natureza pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal.”
Cumpre observar que o Superior Tribunal de Justiça há tempo reconhece a possibilidade de investigação pelo Ministério Público[12], inclusive com previsão em súmula: “234. A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”. Nesse sentido, vale à pena ler na íntegra o julgado a seguir:
“11613914 - HABEAS CORPUS. MINISTÉRIO PÚBLICO. PODERES DE INVESTIGAÇÃO. LEGITIMIDADE. LC N.º 75/93. ART. 4.º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP. TESE DE FALTA DE JUSTA CAUSA. PLEITO DE TRANCAMENTO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO. PROCEDIMENTO CONCLUÍDO. INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO. PERDA SUPERVENIENTE DO INTERESSE PROCESSUAL. 1. A legitimidade do Ministério Público para determinar diligências investigatórias decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/93. 2. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial - titular exclusivo da ação penal pública - proceder à coleta de elementos de convicção, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria, mormente quando se trata de crime atribuído a autoridades policiais que estão submetidas ao controle externo do Parquet. 3. A ordem jurídica confere explicitamente poderes de investigação ao Ministério Público - art. 129, incisos VI, VIII, da Constituição Federal, e art. 8º, incisos II e IV, e § 2º, da Lei Complementar n.º 75/1993. 4. A competência da polícia judiciária não exclui a de outras autoridades administrativas. Inteligência do art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal. Precedentes. "A outorga constitucional de funções de polícia judiciária à instituição policial não impede nem exclui a possibilidade de o Ministério Público, que é o dominus litis, determinar a abertura de inquéritos policiais, requisitar esclarecimentos e diligências investigatórias, estar presente e acompanhar, junto a órgãos e agentes policiais, quaisquer atos de investigação penal, mesmo aqueles sob regime de sigilo, sem prejuízo de outras medidas que lhe pareçam indispensáveis à formação da sua 'opinio delicti', sendo-lhe vedado, no entanto, assumir a presidência do inquérito policial, que traduz atribuição privativa da autoridade policial." (STF HC 94.173/BA, 2.ª Turma, Rel. Min. Celso DE Mello, DJe de 26/11/2009). 5. Concluído o procedimento investigativo a que se visava trancar por falta de justa causa, resta evidenciada, no particular, a perda superveniente do interesse processual. 6. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado. (STJ; HC 94.129; Proc. 2007/0263795-3; RJ; Quinta Turma; Relª Minª Laurita Hilário Vaz; Julg. 23/02/2010; DJE 22/03/2010)”
A segunda turma do Supremo, também em recente decisão, conforme se verifica no informativo de nº 564, reconheceu a legitimidade da investigação ser realizada pelo Ministério Público:
“O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, pelos agentes de tal órgão, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos os advogados, sem prejuízo da possibilidade — sempre presente no Estado Democrático de Direito — do permanente controle jurisdicional dos atos praticados pelos promotores de justiça e procuradores da república. Com base nesse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus em que se alegava a nulidade de ação penal promovida com fulcro em procedimento investigatório instaurado exclusivamente pelo Ministério Público e que culminara na condenação do paciente, delegado de polícia, pela prática do crime de tortura.
HC 89837/DF, rel. Min. Celso de Mello, 20.10.2009. (HC-89837)”
Desta arte, nota-se uma premente construção doutrinária e jurisprudencial a se firmar positivamente acerca da possibilidade da atividade investigativa criminal ser realizada pelo Ministério Público. Contudo, conquanto majoritário esse entendimento, o assunto ainda não se tornou pacífico e ainda pende de julgamento ações relacionadas ao tema pelo Supremo, o que requer o aguardo e o acompanhamento de novas manifestações do STF para se chegar a um entendimento sólido.
BIBLIOGRAFIA:
GARCIA, Emerson. Ministério Público. Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 3ª Ed. Rio de Janeiro: 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª Ed. São Paulo: 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3ª Ed. São Paulo: 2007.
TÁVORA, Nestor e RODRIGUES ALENCAR, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª Ed. Salvador: 2009.
[1] Essas são as palavras de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. In Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed., p. 1039.
[2] § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; (...) IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
[3] In Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3ª Ed., p. 130 a 133.
[4] Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar in Curso de Direito Processual Penal. 3ª Ed., p. 74, dizem: “é perfeitamente possível ao Ministério Público a realização de investigações no âmbito criminal”.
[5] Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
[6] In Ministério Público. Organização, Atribuições e Regime Jurídico. 3ª Ed., p. 241 e 242.
[7] MS 26.547-MC/DF.
[8] In Direito Constitucional Esquematizado. 14ª Ed., p. 139 e 679.
[9] Medidas cautelares pelo TCU no exercício de suas atribuições explicitamente fixadas no art. 71 da CF e a possibilidade de o TJ estadual conhecer e julgar reclamação para preservação de sua competência e a autoridade de suas decisões.
[10] In Direito Constitucional. 19ª Ed., p. 553 e 554.
[11] Administrativamente, a lei 8.625/93 no artigo 17, incisos I e V, diz competir a Corregedoria-Geral do Ministério Público realizar inspeções e correições, bem como instaurar processo administrativo disciplinar contra membro da instituição.
[12] RHC 8106-DF, 5.ª T., rel. Gilson Dipp, 03.04.2001.
Advogado. Formado no CESV - Centro de Esnio Superior de Vitória.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAM, Elias Gomes. O Ministério Público e o poder de investigação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 abr 2010, 02:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19605/o-ministerio-publico-e-o-poder-de-investigacao. Acesso em: 23 dez 2024.
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