Co-autor: ALESSANDRO SILVEIRA DA SILVA - Graduação em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos (Belo Horizonte/MG). Especialização em Processo Civil pela Instituição de Ensino Superior Ceajufe (Belo Horizonte/MG). Advogado Cível do escritório Tostes & Coimbra Advogados.
“Cada vez mais se percebe, portanto, que leis cujo objetivo precípuo seja o de diminuir a sobrecarga dos tribunais, a qualquer custo, sem que esta finalidade seja acompanhada de real preocupação com a qualidade da prestação da tutela jurisdicional, acabam tendo seus contornos iniciais (literais) redefinidos pela doutrina e às vezes pela própria jurisprudência.”.[1]
Muito se tem discutido acerca da reforma do Código de Processo Civil, principalmente após a conclusão da primeira fase dos trabalhos realizados pela comissão de juristas designada para a realização do anteprojeto. Com o intuito de realizar uma reforma no sistema processual, que se adeque à realidade do Judiciário brasileiro, a comissão tem realizado audiências públicas para colher propostas das diversas categorias de operadores do direito. O ponto crucial a ser discutido nessa nova etapa do projeto parece ser como atingir a almejada celeridade no trâmite processual sem, contudo, solapar garantias fundamentais das partes litigantes.
De fato, o sistema processual civil brasileiro clama por celeridade. O desprestígio da instituição do Poder Judiciário perante a população exsurge, em grande parte, da morosidade na entrega da prestação requerida pelo jurisdicionado – o qual parece anuir com a célebre frase do ilustre mestre Rui Barbosa[2], “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Mas até que ponto a celeridade deve sobrepor-se às demais garantias fundamentais?
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, sobretudo em função do fim do regime ditatorial, o ideário que passou a reger o sistema processual pátrio relacionava-se, indubitavelmente, com as garantias individuais, neste aspecto erigindo o princípio do devido processo legal – que se desdobra nos princípios da ampla defesa e do contraditório – à diretriz maior na condução da relação entre as partes em juízo.
Dentre os reflexos dos aludidos princípios em âmbito infraconstitucional, está a possibilidade de revisão em segunda instância das decisões proferidas em qualquer etapa do processo – posto que o dano gerado por uma decisão proferida em desacordo com a lei ou fundada em interpretação equivocada dos fatos alegados e/ou demonstrados, é passível de causar dano à parte em qualquer estágio que a lide se encontre.
Daquele período até hoje, no entanto, pode-se afirmar que tais garantias, instrumentos que visam assegurar o resultado justo da demanda, vão sendo paulatinamente colocadas de lado em prol de uma justiça mais rápida.
Assim é que, instrumentos como a ação rescisória, por exemplo – símbolo maior do prestígio à busca da verdade real – teve seu prazo decadencial diminuído de cinco para dois anos com o advento do Novo Código Civil; a Lei 11.232/2005 alterou profundamente a execução fundada em título executivo judicial, dispensando a citação para que seja dado início aos atos expropriatórios, bastando para tanto simples intimação; a Lei 8.952/1994 trouxe o instituto da antecipação de tutela, que possibilita a concessão do bem pleiteado em juízo até mesmo sem prévia manifestação da parte contrária etc.
A criação e a utilização dos institutos acima apontados denotam um crescente prestígio ao princípio da celeridade em detrimento de outros princípios e garantias fundamentais de igual magnitude. A sobreposição de um princípio a outro não causa estranheza, nem é o fundamento das críticas que se tecem, pois, conforme já definiu Alexy[3] em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, princípios são "mandamentos de otimização", ou seja, "normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes"[4].
Assim, havendo a possibilidade/necessidade de se sopesar a aplicação de dois ou mais princípios, nada de se estranhar que em determinados momentos, em razão do caso concreto e do momento jurídico, deva um princípio preterir a aplicação de outro.
Neste sentido, por exemplo, percebe-se que os princípios da ampla defesa e do contraditório cedem ao princípio da garantia da prestação jurisdicional, quando preenchidos os requisitos da antecipação da tutela, disposto no artigo 273 do CPC, ou quando seja necessário à preservação da efetividade do processo, como dispõem os artigos 796 e seguintes da lei processual civil.
O que não poderá ocorrer, no entanto, é a definitiva extirpação de uma garantia fundamental em função de outra já no plano abstrato, como se pretende fazer ao ensejo da elaboração de um novo Código de Processo Civil.
Propostas da comissão
Conforme acima aduzido, muitas das propostas já apresentadas pela comissão de juristas, conquanto visem agilizar o trâmite dos processos, acabam, algumas vezes, não apenas elidindo a aplicação de garantias fundamentais, mas contrapondo-se à própria celeridade almejada.
Exemplo maior da afirmação acima é a extinção do recurso de Agravo de Instrumento, concomitantemente à exclusão dos incidentes de impedimento e suspeição. Tais matérias, que no Código Processual vigente são alegáveis em sede de exceção, ou seja, em petição apartada dos autos principais, passariam então a ser arguidas em sede de contestação.
Todavia, nas hipóteses em que o juiz não se considerar suspeito ou impedido para julgar a demanda, o excipiente terá que aguardar todo o transcurso do processo, para submeter a decisão ao segundo grau de jurisdição, vez que, aprovada a pretendida alteração, inexistiria qualquer recurso que desafie decisões interlocutórias.
Assim, apenas em sede de apelação poderá ser revista a decisão combatida. Desta forma os julgadores declarariam a nulidade dos atos processuais praticados e determinariam a redistribuição da ação em primeira instância. Consequências? A ação percorreria todo seu iter novamente sem nenhuma homenagem ou prestígio aos princípios da economia processual ou mesmo da famigerada celeridade.
Da mesma forma, a imposição da audiência de conciliação para todo e qualquer procedimento, além de agredir a autonomia das partes que não podem, em hipótese alguma, serem obrigadas pelo juízo a transacionar – situação corrente nos Juizados Especiais, onde o magistrado atua em velada coação para que as partes acordem, ora pressionando o autor no sentido de que poderá sentenciar valor menor que o oferecido, ora pressionando o réu a oferecer proposta maior em vista da “média do valor das condenações que costuma proferir” – não levará a qualquer agilização do procedimento.
Se a busca da celeridade se dá em função da quantidade descomunal de processos com que os magistrados se defrontam, como então acrescentar em suas agendas dezenas de novas audiências diariamente? Ou far-se-á novamente como nos juizados, em que restará a cargo de agentes e estagiários inexperientes a tarefa de coagir, ou, melhor dizendo, conciliar as partes?
Conclusão
Tais questões são de fato complexas e demandam, portanto, profunda reflexão por parte dos membros da comissão de juristas escolhidos para esta árdua tarefa de revisão da lei processual. Isto porque o embate principal se dá entre princípios que não apenas regem a relação processual, mas que consubstanciam cláusulas pétreas insculpidas na Constituição Federal.
Assim, não se presta o presente artigo a concluir sobre a viabilidade ou não das propostas aqui criticadas, mas apenas para alertar sobre os riscos de se sobrepujar garantias fundamentais como a ampla defesa, o contraditório e o duplo grau de jurisdição, com a finalidade exclusiva de desabarrotar câmaras, secretarias e gabinetes das infindáveis ações diuturnamente propostas.
Por fim, deve-se ter em mente que, embora, certamente, a justiça tardia seja uma falha na prestação jurisdicional, certo é também que a prestação de uma injustiça célere apenas agravará os transtornos enfrentados pelo Poder Judiciário.
[1] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença - 6. ed. rev., ampl. e atual. de acordo com a reforma processual de 2006/2007 - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 (coleção estudos de direito de processo Enrico Tulio Liebman; volume 16).
[2] 1849-1923.
[3] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.
[4] NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 2. ed. Método: São Paulo, 2008. p. 207
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUFINI, Eduardo Henrique. SILVA, ALESSANDRO SILVEIRA. A reforma do Código Processual Civil e o aparente prestígio ao princípio da celeridade. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr. 2010. Disponivel em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.26648. Acesso em: dia mes. ano.
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