• Breve Histórico – No direito romano, não se reconhecia o constrangimento ilegal como crime, embora a subjugação da vontade alheia pelo “medo” fosse considerada antijurídica. Não se aprovava o que era feito por medo. Com a filosofia do direito natural, inspiradora da Revolução Francesa, é que esboçou-se a idéia de liberdade como interesse tutelável de forma autônoma (crime contra a liberdade). “A declaração dos direitos do homem” (1789), consagrou a liberdade da pessoa humana. Foi no direito alemão que o constrangimento ilegal foi reconhecido como crime (nötigung = constrangimento) contra a liberdade pessoal. No Brasil, desde a Constituição do império (1824), passou-se a tutelar o direito à liberdade, que compreende a liberdade de agir ou não agir, sem outras restrições que as prescritas em lei. Assim, o Código de 1830 já previu o “constrangimento ilegal”, como crime contra a liberdade individual (pessoal)[1]
No Código Penal brasileiro de 1940, o legislador tipificou ou crime de constrangimento ilegal no seu artigo 146, com a seguinte redação:
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Aumento de pena
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.
§ 2º - Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
II - a coação exercida para impedir suicídio.
• Objeto Jurídico: proteger a liberdade pessoal (física ou psíquica), ou seja, a liberdade de autodeterminação.
• Amparo Constitucional: art. 5° todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: [...], II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
• Elementos subjetivos do tipo: é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de constranger a vítima, mediante violência a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que a lei não permite.
• Espécies e formas de violência: 1ª) própria ou física: emprego de força bruta; 2ª) imprópria: emprego de qualquer outro meio, como hipnotismo, narcotização, sonífero, embriaguez pelo álcool etc.; 3ª) moral: emprego de grave ameaça; 4ª) direta ou imediata: contra a vítima, ex.: amordaçá-la, choques elétricos, fazê-la inalar gás, amarrá-la; 5ª) indireta ou mediata: sobre coisa ou pessoa vinculada ao sujeito passivo ex: violência contra o filho do coagido, a fim de que este se sinta constrangido e realize o comportamento almejado pelo coator, ou retirar as muletas de um aleijado ou o guia de um cego.
• Vítima constrangida a praticar uma infração penal – se a violência empregada for irresistível, a vítima não responderá pelo crime praticado, podendo o autor do constrangimento responder pelo crime praticado em concurso material com o crime de constrangimento ilegal.
• Vítima submetida à tortura a fim de praticar crime – A Lei n. 9.455/97 que define os crimes de tortura prevê na alínea “b”, do inc. I do art. 1°, a tortura crime, com a seguinte redação:
Art. 1°. Constitui crime de tortura: I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: [...]; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; [..]
Capez[3] e Rogério Greco[4] se manifestam no sentido de que nestes casos, apesar de se tratar de delito específico, o torturador responderia pela tortura em concurso material com o crime praticado pelo coagido.
• Sujeito ativo: qualquer pessoa, em se tratando de funcionário público e o fato cometido no exercício da função, poderá caracterizar o delito descrito no art. 350 do CP ou, conforme a hipótese, crime de abuso de autoridade (Lei n. 4.898/65). [5]
• Sujeito passivo: É indispensável que possua capacidade de autodeterminação, que significa liberdade de vontade, no sentido de o cidadão fazer o que bem entenda, desde que não infrinja disposição legal. No caso de criança ou louco, não há crime quando o fato é praticado contra eles, desde que a idade e a situação mental não permitam a liberdade de autodeterminação.
a) Atentar contra a liberdade pessoal dos Presidentes da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal (Lei n. 7.170, de 14-12-1983, art. 28) - Crime contra a Segurança Nacional.
b) Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º-10-2003). O art. 107 do Estatuto do Idoso pune com pena de reclusão de dois a cinco anos o fato de quem coage, de qualquer modo, o idoso (pessoa com idade igual ou superior a 60 anos) a doar, contratar, testar ou outorgar procuração.
c) Constrangimento ilegal na cobrança de dívida. Ver art. 71 da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (crime contra as relações de consumo).
• Delito subsidiário: somente caracterizar-se-á o constrangimento ilegal se não for elementar de outro tipo penal, ou seja, ficará absorvido pelo referido delito ex.: roubo, estupro, extorsão, etc.
• Constrangimento Ilegal x Exercício Arbitrário das Próprias Razões: É necessário que seja ilegítima a pretensão do sujeito ativo, i. e., que não tenha direito de exigir da vítima o comportamento almejado. Tratando-se de pretensão legítima ou supostamente legítima, há o crime de exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). [6]
• Consumação: Ocorre no momento em que a vítima faz ou deixa de fazer alguma coisa.
• Tentativa: É admissível[7].
• Aumento de pena (§ 1º)
§ 1º - As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas (mínimo 4), ou há emprego de armas: (a) próprias: instrumentos destinados a ataque ou defesa (de fogo, punhais, bombas, facões etc.); b) impróprias: não são fabricadas com finalidade de ataque ou defesa, mas têm poder ofensivo (machados, facas de cozinha, tesouras, navalhas etc.)..
• Norma explicativa (§ 2º): Além das penas cominadas ao autor do constrangimento ilegal, aplicam-se as correspondentes à violência. Significa que, se o sujeito pratica constrangimento ilegal ferindo a vítima, deve responder por dois crimes em concurso material: constrangimento ilegal e lesão corporal leve, grave ou gravíssima[8].
CAUSAS ESPECIAIS DE EXCLUSÃO DA TIPICIDADE (§ 3º):
• Natureza penal: Trata-se de causas excludentes da tipicidade e não da antijuridicidade. O Código Penal diz que determinados fatos “não se compreendem na disposição” que define o constrangimento ilegal. Se os fatos não se encontram compreendidos na norma penal incriminadora, são condutas atípicas. Antes de esses comportamentos serem ilícitos, ocorre a atipicidade, diante da inadequação à norma de incriminação.
• Intervenção médica ou cirúrgica (I): Mesmo sem o consentimento da vítima ou de seu representante legal, não há tipicidade do constrangimento, desde que a intervenção ou a cirurgia seja determinada por iminente perigo de vida. Trata-se de hipótese de estado de necessidade de terceiro, capitulado pelo Código Penal como excludente da tipicidade.
• Impedimento de suicídio (II): Embora não constitua ilícito penal, o suicídio não deixa de ser conduta antijurídica. Assim, impedir, mediante violência ou grave ameaça, que uma pessoa pratique ato antijurídico não pode constituir constrangimento ilegal. Trata-se de estado de necessidade de terceiro elevado à categoria de causa excludente da tipicidade.
• Pena – Competência – Ação Penal – Suspensão Condicional do Processo.
Detenção de 3 meses a 1 (um ano), ou multa – trata-se de crime de menor potencial ofensivo, alcançado pelo conceito do art. 61 da Lei n. 9.099/95, portanto de competência dos Juizados Especiais Criminais (inclusive nas hipóteses do § 1º), sendo possível a transação penal e suspensão do processo. Ação penal é pública incondicionada. Nos casos de condenação, será possível a substituição da pena de prisão por restritiva de direitos, desde que preenchidos os requisitos do art. 44 do CP.
• Classificação doutrinária: crime comum (não exige qualidade especial do sujeito ativo); doloso, material (pois somente se consuma quando a vítima não faz o que a lei permite ou faz aquilo que ela não manda); de forma livre, podendo ser praticada comissiva (ação) ou omissivamente (status de garantidor); instantâneo (resultado instantâneo que não se prolonga no tempo); subsidiário (só caracteriza o delito quando não for elementar de outro crime); monossubjetivo (pode ser praticado por um só agente); plurissubsistente (via de regra, vários atos integram a conduta); e de dano (consuma-se apenas com a efetiva lesão a um bem jurídico tutelado)
• Meios de provas: oitiva de testemunhas, oitiva da vítima, interrogatório do autor (confissão), apreensão de arma ou objetos, documentos, além de exames periciais.
• Quesitação para perícia:
a) Qual o tipo de violência física para a consecução do contrangimento?
b) Quais os vestígios materiais do evento, relacionáveis com o constrangimento, encontrados no local?
c) Há lesão corporal, ou outro vestígio, indicando ter havido emprego de violência contra a vítima? (resposta justificada).
d) Há vestígio indincando ter havido emprego de qualquer outro meio para reduzir a capacidade de resistência da vítima? (resposta justificada)
e) Qual o meio empregado?
Notas:
[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal – art. 146 a 149. p. 146 - 180
[2] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal – art. 146 a 149. p. 146 - 180
[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, parte especial. 8 ed. v. 2, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 311-312.[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, v. 2, RJ: Impetus, 2006. p. 555.
[5] Nesse sentido: RT, 420:250.[6] Nesse sentido: JTACrimSP, 40:71.
[7] Nesse sentido: JTACrimSP, 31:224; RT, 651:267.[8] Nesse sentido: TJSP, ACrim 216.603, RT, 749:651 e 653.
Mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada - Espanha. Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UNICEUB. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor Universitário de Direito Penal e Orientação de Monografia. Advogado. Delegado de Polícia da PCDF (aposentado). Já exerceu os cargos de Coordenador da Polícia Legislativa da Câmara Legislativa do Distrito Federal (COPOL/CLDF), Advogado exercendo o cargo de Assessor de Procurador-Geral da CLDF. Chefe de Gabinete da Administração do Varjão-DF. Chefe da Assessoria para Assuntos Especiais da PCDF. Chefe da Assessoria Técnica da Cidade do Varjão - DF; Presidente da CPD/CGP/PCDF. Assessor Institucional da PCDF. Secretário Executivo da PCDF. Diretor da DRCCP/CGP/PCDF. Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Assessor do Departamento de Polícia Especializada - DPE/PCDF. Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Analista Judiciário do TJDF. Agente de Polícia Civil do DF. Agente Penitenciário do DF. Policial Militar do DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COIMBRA, Valdinei Cordeiro. Do Constrangimento Ilegal (art. 146, do CP) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2010, 19:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19689/do-constrangimento-ilegal-art-146-do-cp. Acesso em: 23 dez 2024.
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