Era ainda um pirralho. Entrou na livraria e ficou a manusear, encantado, os volumes que mais o atraíam. Num determinado livro, pousou os olhos com maior firmeza. Com sofreguidão mesmo. Foi lendo, foi lendo e os olhos cada vez mais acesos ficavam.
Dirigiu-se a um senhor que, pelo aspecto, parecia ser o dono da livraria:
- Quanto custa?
O suposto dono olhou na primeira página a anotação a lápis e disse ao menino qual era o preço do livro.
O garoto voltou ao pequeno canto da livraria onde estava antes. Lá no extremo oposto à porta de entrada. Era um espaço de silêncio, de mistério e de paz. Mas também de provocação e questionamento. Perto daquela estante colorida e misteriosa, o menino reinava, pois nem mesmo havia ali outro comprador, manuseando livros.
Leu mais um pouco o livro que lhe despertara tanto interesse. O livro não era caro, mas os trocados que tinha no bolso não eram suficientes para comprá-lo. Contou e recontou as moedinhas. Não tinha jeito. Moedas não se multiplicam a não ser dentro do chapéu dos mágicos. E mágico ele não era.
Triste, pé ante pé, bem discretamente, foi deixando a livraria. Quando já estava quase saindo, ouviu um vozeirão:
- “Menino!”
Voltou-se assustado.
Era o homem que parecia ser o dono da livraria.
- “E o livro que você indagou?”
- “Deixei na estante, senhor. O dinheiro que tenho não é suficiente para comprá-lo.”
- “Deixe-me ver esse seu dinheiro. De repente, você não contou direito.”
O menino tirou meio sem graça o dinheiro do bolso, separou o trocado para a condução e entregou o restante ao circunspecto senhor.
Este colocou as moedas na palma da mão esquerda e disse:
“Traga lá o livro.”
O menino atendeu.
E o dono da livraria, fechando a história (o menino ficou certo que se tratava do dono justamente por esse fecho), sentenciou:
“Leve o livro. Esse dinheiro é bastante.”
“Bem”, - respondeu o menino inteligente e corajoso. “Já que o senhor vai me vender o livro, por menos da metade do preço, quase vai me dar o livro de presente, por favor, podia autografá-lo?”
E o livreiro, com ar aparentemente distante, mas com a atenção pregada no garoto, lançou o autógrafo:
“A este menino curioso, que será um grande escritor, ou um grande livreiro, com um abraço do
Monteiro Lobato.”
O garoto perdeu a fala. Nem conseguiu dizer obrigado. O dono da livraria era o querido escritor de tantos livros infantis que ele já lera. Saiu da livraria em disparada.
Nasceu naquele momento, não o escritor, mas o livreiro.
Pela vida afora, na Livraria Âncora, ele repetiria o gesto de Monteiro Lobato.
“Leve o livro, eu anoto na conta.”
Muitos jovens só pagaram a conta depois de formados.
Sabemos que aqueles tempos eram outros. Não queremos exigir dos sacrificados livreiros de hoje um comportamento semelhante.
Mas fica o registro para simbolizar a sacralidade do livro, que não é uma mercadoria, mas que é muito mais que isso, mesmo nesses tempos de neoliberalismo sem alma e sem beleza. O livro é senha para outros mundos, passaporte para viagens infinitas, código secreto para desvendar enigmas e mistérios, chave de resposta para as mais angustiantes dúvidas e perplexidades do ser humano.
Nestor Cinelli, o menino da história, veio a ser, como profetizara Monteiro Lobato, o grande livreiro, o maior que o Estado do Espírito Santo teve em toda a sua História e, seguramente, um dos maiores livreiros do Brasil. Promotor da cultura, coração aberto e generoso, fez da Livraria Âncora o mais famoso ponto de encontro de intelectuais capixabas.
Ao homenagear a memória de Nestor Cinelli, como figura-símbolo, homenageio todos os livreiros do Brasil.
Dizem que, por causa da televisão, as pessoas estão lendo menos. Não sei. Mas televisão e livro são coisas completamente diferentes. Na televisão, eu não posso parar num quadro, como no livro eu me detenho numa página para relê-la e meditar no que li. Não posso, na TV, fazer algo como escrever notas marginais ao texto. Não posso colocar a televisão debaixo do travessereiro, como que para continuar a leitura durante o sono. Televisão eu não folheio. Televisão eu não levo comigo para o banco da praça, ou para um trajeto a pé, de carro ou de ônibus. Nem posso fazer algo como abrir uma página ao acaso, ou ler um trecho para a esposa, a avó ou a namorada. A televisão quer me dominar, não sou sujeito, sou objeto, a menos que assuma uma posição defensiva. O livro é dócil companheiro, conversa comigo. O livro não grita. Até sussura, se eu quiser. De televisão eu posso gostar. Amar, amar mesmo, só o livro eu posso amar.
João Baptista Herkenhoff é Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo e professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES). Autor do livro Filosofia do Direito (Editora GZ, Rio de Janeiro, 2010). E-mail: [email protected] Homepage: www.jbherkenhoff.com.br
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