Eu andava preocupado com as repetidas reminiscências, feitas nos meus artigos, a fatos relacionados com minha própria vida, especialmente episódios da trajetória percorrida como juiz.
Ficava conjeturando que isso é mania de velho e que eu devia reagir.
Passado é passado, temos de olhar é para o futuro.
Quando estava já decidido a mudar de rota e não falar em acontecidos, recebo um testemunho, em sentido oposto ao das preocupações que me assaltavam.
Um cidadão experiente, homem de negócios, que se chama Getúlio Azevedo, casado com uma sobrinha do coração, disse gostar dos textos que publico. Mas ressalvou: agradam-me especialmente suas narrativas pretéritas.
O que eu supunha um pecado é então uma virtude, avalizada por alguém que tem os pés na terra.
Com a opinião referida, sinto-me encorajado a recapitular acontecências, pelo menos vez por outra.
Vamos então recordar porque recordar é viver.
No exercício da função jurisdicional procurei desvendar e compreender o universo feminino.
Nem sempre foi fácil esta tarefa porque a alma da mulher é um mistério e, às vezes, chega a ser um labirinto, de difícil decifração.
Muitas mulheres estiveram sob meu julgamento, nas dezesseis comarcas capixabas pelas quais passei, na itinerância a que a carreira de magistrado obriga.
Vou começar com uma decisão que prolatei, assegurando visita íntima de companheiro a uma presa provisória que estava sob minha jurisdição. Não me cabia disciplinar a matéria, em caráter geral, pois juiz das execuções criminais não era, mas tinha competência legal para decidir sobre o pleito de uma acusada que estava submetida a processo sob meus cuidados. Argumentei, no decisório, que a prisão não subtraía da requerente o seu direito ao exercício da sexualidade. Quanto a engravidar, somente à presa competia decidir sobre este tema. Não tinha razão jurídica o óbice, que se opunha às visitas íntimas, justamente sob a alegação daquilo que indevidamente se chamava de “risco de gravidez”. Gravidez não é risco, é um ato livre. Aproveitei a oportunidade para fustigar o sistema, observando que a mulher não é “sujeito” na estrutura do sistema carcerário, como não é “sujeito” na arquitetura social. A presa tem o direito de “ser mulher” em toda a sua extensão. Finalmente, abrangendo homens e mulheres, fechei meu despacho afirmando que o direito a visita íntima é importante para a reabilitação do encarcerado, pois conduz ao sentimento de pertença ao gênero humano.
O segundo caso que coloco neste escrito é o de uma mulher que desacatou um guarda de trânsito chamando-o de guardinha. A acusada teve lavradas contra sua pessoa seis sucessivas multas porque seu carro, afogado nas imediações do Palácio Anchieta, obstaculou o fluxo de veículos. Não chancelei a conduta da ré e fiz questão de realçar o mérito do funcionário desacatado. Contudo fundamentei a absolvição considerando que a acusada estava prestes a conseguir um emprego, conforme provado nos autos. Se condenada, mesmo que na pena minima, perderia a oportunidade. Ponderei a desigualdade entre homens e mulheres nas chances para obter trabalho, desigualdade que a Justiça não podia exacerbar através de um julgamento draconiano.
Numa terceira decisão, acolhi o motivo de relevante valor moral no ato de um acusado que feriu o agressor de sua irmã Ana Célia, uma prostituta. No caso, o paciente não era uma mulher, mas um homem. Porém a razão de ser da conduta, que estava sendo apreciada, era uma mulher.
Por que uma pobre meretriz estaria ao desabrigo da lei? Por que seu irmão não poderia ferir o agressor, para defendê-la? Evidentemente seria um absurdo que a Justiça fizesse essa odiosa discriminação.
Numa quarta decisão, fundamentei no zelo com que Isabel cuidava de Moacir, seu irmão, doente mental, a razão para libertar Moacir de um processo. Este segurou o braço de uma criança, mas nada lhe fez. A menina ficou assustada, ou porque estranhou a fisionomia do paciente, ou porque conhecia sua condição de insano. Na minha presença, Isabel disse que seu irmão não oferecia qualquer perigo e que ela, que sempre estava atenta aos passos dele, redobraria sua vigilância depois do fato que havia ocorrido.
Finalmente devo citar, não uma sentença, mas um procedimento adotado em diversas comarcas do interior do Espírito Santo.
Para que esse procedimento seja entendido é preciso dizer que ocorreu no final da década de 1960.
Encontrei, em diversas comarcas, listas de jurados com uma presença inexpressiva de mulheres. Assim, em tal situação, os tribunais do júri eram, na verdade, tribunais masculinos. Com habilidade conseguimos alterar substancialmente a distorção.
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