Co-autora: RENATA DE OLIVEIRA[1]- Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do PIBIC, integrante do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe.
SUMÁRIO[2]
1. Introdução 2. Metodologia de Direito Comparado 3. Direitos Fundamentais e a Saúde. 4 Aids e controle judicial de políticas públicas no Brasil 5. Aids e controle judicial de políticas públicas na Argentina: análise de um caso concreto. 6. Comparativo Brasil X Argentina. 7. Considerações Finais. 8. Referências bibliográficas.
RESUMO
O artigo aborda o posicionamento da legislação e as tendências do poder judiciário relacionadas ao direito à saúde no Brasil e na Argentina, especialmente quanto ao fornecimento de medicamentos e o custeio do tratamento necessário aos pacientes portadores do vírus da AIDS. Desta forma, discorre-se sobre a legislação relativa ao direito à saúde em cada um desses países, analisando-o dentro do rol dos direitos fundamentais e, ainda, buscando o posicionamento atual dos tribunais superiores acerca do tema e da obrigatoriedade do Estado de fornecer os medicamentos aos cidadãos do país.
ABSTRACT
The article discusses the positioning of the legislation and the tendencies of the judiciary related to the right to healthcare in Brazil and Argentina, particularly regarding drug supply and cost of treatment required for patients with HIV / AIDS. Thus, it discusses about legislation concerning the right to healthcare in each country, analyzing it within the list of fundamental rights and also seeking the current position of the Superior Courts on the matter and the obligation of the state to provide medicines to the citizens of the country.
Introdução
O presente artigo visa a fazer uma discussão de direito comparado, analisando as normas e as tendências dos poderes judiciários do Brasil e da Argentina com relação ao fornecimento de medicamentos e tratamento necessário aos indivíduos, especialmente com relação aos portadores do vírus HIV. Para atingir o objetivo proposto, o artigo divide-se em cinco partes, sendo ao final expostas as conclusões.
Na primeira, é procedida uma breve análise da metodologia de produção de trabalhos de Direito Estrangeiro, diferenciando-a do Direito Comparado, explicitando as premissas do trabalho. Na segunda parte, aborda-se o direito fundamental à saúde, através de seus múltiplos aspectos de raiz constitucional. Na terceira, comenta-se o tratamento dispensado ao direito à saúde no Brasil e o posicionamento dos tribunais superiores acerca do dever do Estado de fornecer medicamentos para os portadores do vírus da AIDS. Na quarta, é feita uma discussão relacionada à inclusão do direito à saúde de forma expressa no ordenamento jurídico argentino, sua aplicação prática e analisa-se um julgamento concreto conhecido como “caso da Associação Benghalensis”. Na quinta, é feito o comparativo entre as soluções jurídicas adotadas pelo Brasil e pela Argentina no controle judicial de políticas públicas na área de fornecimento de medicamentos de AIDS. Finalmente, são apontados os pontos principais do texto.
METODOLOGIA DE DIREITO COMPARADO
O estudo do direito comparado tem uma importância fundamental na medida em que fornece elementos para uma investigação científica do direito. Serrano (2006, p. 34) aponta como primeira grande utilidade das análises de direito comparado, a possibilidade de indicar as normas jurídicas afins nas legislações nacionais e estrangeiras, com o objetivo de confrontá-las para determinar as analogias e diferenças existentes entre sistemas e institutos, bem como avaliar o desenvolvimento e aproximação das legislações ou instituições jurídicas de diversos países, formando assim “o novo Direito Positivo Contemporâneo”.
Neste aspecto, há que salientar a advertência de Sacco (2001, p. 27) que chama a atenção para um sentimentalismo que sugere a idéia de que a comparação aumentaria a compreensão entre os povos e contribuiria para a coexistência das nações. Conforme demonstra o autor, a comparação pressupõe o conhecimento da regra jurídica estrangeira, a qual, por seu turno, pode suscitar simpatia, ou pode também conduzir a reações polêmicas. De qualquer modo, destaca Sacco (2001, p. 28) que a comparação não comporta necessariamente uma valoração, positiva ou negativa, favorável ou crítica, das outras instituições.
Prosseguindo no rol de finalidades do Direito Comparado, Serrano (2006, p. 35) acrescenta a de confrontar teorias e doutrinas jurídicas: conceitos, classificações, interpretações, correlações e generalizações jurídicas. Aponta, ainda, como finalidade, conhecer a natureza e evolução histórica das instituições do Direito, relacionando as notícias e tradições do passado com o presente. Também, indica a sua importância na descoberta e formulação dos princípios comuns que regem as relações das nações civilizadas, bem como na determinação da possibilidade de enriquecimentos recíproco entre normas jurídicas, e, por fim, o fornecimento de bases jurídicas e conclusões científicas, a partir da experiência nacional e internacional, com o objetivo de aperfeiçoar os diferentes sistemas jurídicos.
Conforme se percebe, entre as finalidades apresentadas pelo autor, encontra-se a utilização do direito comparado para aperfeiçoamento do direito nacional. A esse respeito, Sacco (2001, p. 43) aponta que a comparação enquanto ciência visa adquirir dados teóricos, independentemente de ulteriores utilizações destes dados, de forma que ela, como pesquisa pura, já tem obtém por si resultados, tais como análises das diferenças e analogias entre common law e civil law, reconstruções científicas do etnodireito, balanço das transformações do direito afro-asiático frente ao direito europeu, indagações sobre diferenças entre o direito dos países capitalistas e o direito dos países socialistas. Estas conquistas, segundo o autor, são obra da ciência, ainda que não sejam seguidas da circulação de modelos.
O direito comparado pode dar margem à alteração da legislação interna de determinado país. Conforme ressalta Sacco (2001, p. 165) os modelos jurídicos mudam ininterruptamente por lenta evolução ou por sobreposição global, ocorrendo mutações propriamente originais - inovações, e as imitações. Segundo o autor, inovações de modelos jurídicos são feitas a todo instante, mas as únicas inovações que contam são aquelas que “provêm de uma ‘autoridade’, ou que são feitas precisamente por uma ‘autoridade’, ou que encontrem imitadores e adquiram assim uma difusão generalizada” (SACCO, 2001, p. 167). Por outro lado, destaca Sacco (2001, p. 167) que a natureza da inovação é mais ambígua, pois, se encontrar imitadores, será uma descoberta e, se não os encontrar, será uma opinião isolada, um erro.
Destaca Sacco (2001, p. 168) que nascimento de um modelo original é um fenômeno mais raro do que imitação. E a originalidade não é sempre acompanhada da ressonância que suscita em torno de si. Sacco (2001, p. 170) destaca as imitações de modelos e de leis, além das imitações doutrinárias e as judiciais. Nesse último grupo, destaca Sacco (2001, p. 171): a) Imitação direta de juízes por juízes; b) Imitação através de intermediários; e c) Imitação através de intermediários quando a jurisprudência de um país vem ilustrada pela doutrina nacional, sendo esta uma imitação da doutrina de um segundo país, a qual produz uma ulterior recepção judicial. Segundo o autor, assim como as imitações doutrinárias, as imitações judiciais são um tanto independentes das correlações dos modelos legais dos países interessados. A circulação ocorre, portanto, de modo transistemático, de formante a formante homólogo.
Por outro lado, Sacco (2001, p. 181) relata que os raros casos de inovação criativa e original dependerão de uma escolha política consciente, veiculada pelas mudanças na escala de valores ou na ideologia, ou mesmo pela tomada do poder por detentores de valores ou ideologias diferentes e opostos àqueles até então vigentes. Inversamente, às vezes a inovação é introduzida por fenômenos estruturais próprios daquele dado sistema jurídico. Assim, a racionalização dos modelos jurídicos ocorre por assimilação (tratamento idêntico de casos adotados de um elemento de analogia) e dissimilação (tratamento diferenciado de casos dotados de um elemento distinto). Menciona o autor, por outro lado, que as causas próximas da imitação, perceptíveis pelo jurista, praticamente se reduzem a duas: a imposição e o prestígio. As primeiras em geral são reversíveis e cessam quando a relação de força se modifica. Por outro lado, destaca Sacco (2001, p. 184) que o elemento mais encontrado à base da recepção é o desejo de apropriar-se das atribuições de outrem, quando estas carreguem uma qualidade que comumente chamamos de “prestígio”. O prestígio pode revestir um único instituto, ou um ordenamento inteiro. Por outro lado, ressalva o autor que um modelo não tem, no lugar em que surgiu, raízes mais profundas do que em outro, antes pelo contrário, porque “o caráter criativo do modelo A, surgido no país A’, implica que o país A’ tenha uma capacidade de inovação que poderá manifestar-se no futuro, com a substituição do modelo A por um outro modelo B” (SACCO, 2001, p. 185).
Por outra via, entre dois sistemas similares verifica-se uma tendência à produção de influências e imitações mais intensas do que a existente entre sistemas muito diferentes. Ainda, um sistema lacunoso será levado a imitações, quaisquer que sejam, para preencher-lhe o vazio. Destaca o autor, ainda, a relação entre direito, política e taxonomia: a regra ligada a uma escolha política capaz de despertar a paixão dos cidadãos certamente pode circular. Mas a imitação está vinculada a uma condição precisa: a regra circula se a idéia política circular (SACCO, 2001, p. 187). Destaca, ainda, o autor (2001, p. 187) que alguns modelos são mais fáceis de se observar e compreender. Por outro lado, o conhecimento do modelo a ser imitado necessita de certo conhecimento da língua em que o modelo se expressa.
Além da modificação do Direito nacional, o Direito Comparado pode também trazer como resultado a Unificação, ou seja, a uniformização do direito. Nesse aspecto, Sacco (2001, p.194) destaca o crescimento de um “ardor universalístico” que nasceu quando o jurista tomou consciência das restrições que limitavam os seus horizontes, após a formação das barreiras nacionais e desenvolveu-se sobretudo quando se pensou que a uniformização estivesse chegando ao fim de um exame comparativo das soluções em questão, o qual teria premiado o modelo culturalmente sofisticado e socialmente mais evoluído.
Ao mesmo tempo, ressaltam-se também as críticas ao estudo comparativo. Segundo Marc Ancel (1980, p 16) três críticas principais foram levantadas contra toda pesquisa jurídica comparativa: em primeiro lugar, o direito nacional seria suficientemente difícil de ser conhecido com clareza para que se possa complicar com os sistemas estrangeiros; Em segundo lugar, o direito comparado seria uma fonte constante de confusão. Por fim, Ancel (1980, p. 16) destaca que outros afirmam que o direito de um país faz parte do patrimônio nacional.
Várias são as críticas também lançadas à denominação “direito comparado”. Nesse aspecto, Ancel (1980, p. 44) ressalta que o direito comparado consiste fundamentalmente na constatação dos pontos comuns e das divergências existentes em dois ou vários direitos nacionais. Seria, assim, essencialmente um processo de comparação, o que levaria a críticas à expressão direito comparado, pois não haveria direito comparado no sentido em que se fala normalmente em livros de direito civil, de direito penal ou de direito administrativo.
Com efeito, a expressão “Direito Comparado” é equívoca, e, neste sentido, Ancel (1980, p. 44) assinala que a expressão alemã Rechtsvergleichung é certamente preferível. Mas os termos direito comparado, diritto comparato, derecho comparado, comparative law são tão correntes no campo jurídico que seria difícil modificá-los.
A distinção entre o direito comparado e o direito estrangeiro é que o direito comparado vai além do estudo e da descrição das leis estrangeiras. Um estudo sério de direito estrangeiro, o mais completo quanto possível, é indispensável antes de toda comparação propriamente dita. O fato é que devem ser evitadas aproximações levadas a efeito por abordagens horizontais, sem estudo vertical suficiente. Assim é que Ancel (1980, p. 105) aponta que o direito comparado está na dependência dos estudos de direito estrangeiro e que o direito estrangeiro é a matéria-prima do direito comparado.
Este artigo, porém, pretende demonstrar que em que pesem as críticas suscitadas, o recurso ao direito estrangeiro é sempre interessante do ponto de vista científico, máxime no caso ora abordado. Com efeito, países outros e a África do Sul em especial, passaram por crises endêmicas e epidêmicas, tendo enfrentado discussões jurídicas sobre o fornecimento de medicamentos, da mesma forma que o Brasil ora enfrenta essa discussão.
Eis, em suma a razão da escolha do tema, que será bem dissecado nos itens seguintes.
DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO À SAÚDE
A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” [3] etc.
A expressão “direitos fundamentais”, consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 56) não significa esfera privada contraposta à atividade pública, mas sim “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”. Da definição exposta pelo autor, verifica-se sua posição no sentido de limitar a expressão ao campo de abrangência da proteção dos particulares contra o Estado.
Uma noção mais atualizada dos direitos fundamentais, porém, conduz à conclusão de que estes representam a constitucionalização dos direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história e que são reconhecidos como condição para o exercício dos demais direitos. Haveria, dessa forma, “um conteúdo mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático” (SAMPAIO, 2006, p. 17).
Segundo José Afonso da Silva( 2005, p. 58), os direitos fundamentais teriam os seguintes caracteres: a) historicidade; b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade. São, assim, os direitos fundamentais históricos, o que rechaça qualquer fundamentação no direito natural. São imprescritíveis dada a sua natureza de direitos personalíssimos de natureza em geral não patrimonial; são, por fim, irrenunciáveis, embora possam deixar de ser exercidos.
Quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, esse foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com efeito, consoante assinala Canotilho (1989, p. 425), os direitos fundamentais “pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”.
Inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente nos direitos de autonomia e defesa. Os postulados desta teoria liberal vêm bem expostos por Canotilho (1989, p. 426) que aponta os seguintes: 1) os direitos fundamentais são direitos do particular contra o estado; 2) revestem concomitantemente o caráter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado; 3) apresentam-se como pré-estaduais, sendo vedada qualquer ingerência do Estado; 4) a substância e o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como sua utilização e fundamentação, ficariam fora da competência regulamentar do Estado; 5) a finalidade e o objetivo dos direitos fundamentais são de natureza puramente individual.
A teoria da ordem dos valores, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos fundamentais como valores de caráter objetivo, o que levava a conseqüências indicadas por Canotilho (1989, p. 427): 1) o indivíduo deixa de ser a medida dos direitos, pois os direitos fundamentais são objetivos; 2) no conteúdo essencial dos direitos fundamentais está compreendida a tutela de bens de valor jurídico igual ou mais alto.; 3) através da ordem de valores dos direitos fundamentais respeita-se a totalidade do sistema de valores do direito constitucional; 4) os direitos fundamentais só podem ser realizados no quadro dos valores aceitos por determinada comunidade; 5) a dependência do quadro de valores leva à relativização dos direitos fundamentais; 6) além da relativização, a transmutação dos direitos fundamentais em realização de valores justifica intervenções concretizadoras dos entes públicos, de forma a obter eficácia ótima dos direitos fundamentais.
A teoria institucional dos direitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle parte da afirmação de que os direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Cabe, desse modo, à teoria, “o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1989, p. 428) embora se esqueça de outras dimensões dos direitos fundamentais, como a esfera social.
A teoria social dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; institucional e processual. Essa dimensão processual “impõe ao Estado não só a realização dos direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao seu livre desenvolvimento” (SAMPAIO, 2006, p. 30).
A teoria democrática funcional defende que os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público. Por outro lado, consoante ressalta Canotilho (1989, p. 429) “a liberdade não é a liberdade pura e simples, mas a liberdade como meio de prossecução e segurança do processo democrático, pelo que se torna patente o seu caráter funcional”. A teoria parte assim da idéia de um cidadão ativo, com direitos fundamentais colocados a serviço do princípio democrático.
Expostas as teorias que pretendem fixar o conteúdo dos direitos fundamentais, importa destacar a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo Sarlet (2006, p. 194) que divide os direitos fundamentais em dois grupos: direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como direitos a prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em direitos a prestações em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito – direitos sociais - e direitos à participação na organização e procedimento.
A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a prestações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com efeito, os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais. Por outro lado, os direitos fundamentais a prestações implicam uma postura ativa do Estado, que é obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (SARLET, 2006. p. 216).
Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade, às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da personalidade, da nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos.
Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006, p. 221) entre direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquadram-se todos os direitos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social. Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São, assim, os chamados direitos fundamentais sociais.
Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet (2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais.
Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação na organização e procedimento. Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elementos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p. 226) afirma que importantes liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de uma cooperação por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando prestações estatais de cunho organizatório.
Ressalte-se, porém, como faz Andréas Krell (1999) que a doutrina moderna dá ênfase em afirmar que qualquer direito fundamental contém, ao mesmo tempo, componentes de obrigações positivas e negativas para o Estado. Desta forma, a tradicional diferenciação entre os direitos “da primeira” e os “da segunda” geração seria meramente gradual, mas não substancial, uma vez que muitos dos direitos fundamentais tradicionais seriam reinterpretados como sociais, perdendo sentido, assim, as distinções rígidas.
Dentre os direitos prestacionais em sentido estrito pode-se elencar o direito à saúde, reconhecido e proclamado como direito fundamental da pessoa humana e da coletividade. Neste sentido, a Carta Política do Brasil de 1988 estabeleceu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Frise-se que, consoante Sueli Gandolfi Dallari, o conceito de saúde adotado nos documentos internacionais de direitos humanos abrange desde a típica face individual do direito subjetivo à assistência médica em caso de doença, até a constatação da necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento, personificada no direito a um nível de vida adequado a manutenção da dignidade humana (SILVA NETO, 2008; p. 251).
Evidentemente o direito a saúde deve ser priorizado pelo Estado, vez que é conditio sine qua non para a cidadania, compreendida, segundo as lições de Manoel Jorge e Silva Neto, em sentido amplo. É dizer: “consagrar-se o fundamento à cidadania em sentido amplo é vincular o Estado à obrigação de destinar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais, mui especialmente aqueles relacionados aos direitos sociais”. [4]
Ademais, insta consignar que o direito fundamental à saúde está inscrito no “mínimo existencial” para a sobrevivência do indivíduo e garantia da dignidade da pessoa humana. Andreas Krell (2002; p. 63) sugere que o “padrão mínimo existencial” incluirá sempre o atendimento básico e eficiente a saúde. Desta forma, pode-se afirmar que as prestações a saúde que compõem o mínimo devem ser sindicáveis pelo Poder Judiciário quando constatado o abuso ou a omissão do Legislativo e Executivo, a fim de dar guarida ao Estado Democrático de Direito.
Tal prévia análise do conceito e conteúdo dos direitos fundamentais e especificamente do direito à saúde, é relevante para a verificação da concretização dos direitos fundamentais através do controle judicial de políticas públicas, tanto no Brasil como na Argentina, o que se demonstra a seguir.
AIDS E CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL
O direito à saúde não foi lembrado nas primeiras constituições brasileiras, tendo sido primeiramente citado na Emenda Constitucional nº. 27 de 1980 que acrescentou um parágrafo ao texto constitucional de 1969 dispondo acerca de um percentual de repartição tributária aplicado a programas de saúde. No entanto, apenas com a Constituição de 1988 a saúde adquiriu um status de direito (SOUZA, 2008).
Como um direito social incluído no rol do caput do art. 6º da Constituição Federal de 1988, a saúde segue o disposto no §1º do art. 5º, que prevê a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, considerados de plena eficácia. Além de constituir um direito fundamental, no entanto, a saúde é um dever fundamental do Estado.
Ao poder público, portanto, cabe o dever de implementar políticas públicas que dêem efetividade ao direito, garantindo o acesso à assistência médico-hospitalar (CRETELLA JÚNIOR, 1993). Tal poder, assim, possui um dever de prestação positiva, cumprido através de instâncias governamentais que devem se responsabilizar por tomar providências nesse sentido. Ainda em sede constitucional há disposição acerca do tema, em seu art. 196 que aduz:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Dessa forma, a saúde é direito de titularidade universal, ou seja, de toda e qualquer pessoa humana, seja ela brasileira ou não (SARLET; FIGUEIREDO, 2008). Além disso, e das previsões em constituições estatais, por pressão das associações de defesa aos direitos de indivíduos soropositivos, em 1996 foi editada a Lei n. 9313, em atenção à questão do fornecimento de medicamentos aos portadores do vírus da AIDS, prevendo expressamente esse dever, conforme esclarece seu art. 1º:
Artigo 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.
De acordo com tal lei, não deve haver qualquer distinção econômica entre os indivíduos portadores do vírus HIV, podendo qualquer deles requerer o fornecimento gratuito dos medicamentos pelo governo, sem que haja necessidade de comprovar a impossibilidade financeira de arcar com os custos. Apesar disso, mesmo com a edição de tal lei, os entes federativos continuaram, muitas vezes, a recusar o fornecimento, costumando os Estados e Municípios alegarem a responsabilidade uns dos outros ao se esquivar do pagamento. Os tribunais, no entanto, começaram a declarar a responsabilidade desses entes não só pelo fornecimento, mas também pela disponibilização de quaisquer serviços médicos necessários para o tratamento.
A legislação brasileira, portanto, especialmente a Constituição Federal pátria, encontra-se em conformidade com a previsão do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), de 1966, ratificado pelo Brasil e segundo o qual os Estados que passaram a fazer parte do pacto reconhecem o direito de todo indivíduo desfrutar do mais elevado nível de saúde física e mental.
Cumpre comentar, ainda, que embora não haja no Brasil previsão expressa que garanta o chamado mínimo existência, a garantia constitucional de uma existência digna prevista no rol dos princípios e objetivos da ordem econômica elencados no art. 170 é suficiente para embasar o requerimento da concretização de direitos (SARLET; FIGUEIREDO, 2008).
Como conseqüência da importância atribuída à garantia do direito à saúde, o legislador classificou as ações e serviços de saúde como prestações de relevância pública, legitimando o papel do Ministério Público e do poder judiciário de intervir nas situações em que os órgãos estatais se recusam a fornecer os medicamentos necessários a qualquer pessoa (SILVA, 2000).
Diante de tais legislações e de volumosas discussões doutrinárias, o judiciário brasileiro tem se posicionado no sentido de que deve ser dada prevalência ao direito à vida e à saúde em detrimento de possíveis alegações dos entes federados de que a proteção a tais bens, em certos casos, afetaria questões de ordem financeira e de recursos. Neste sentido, a obrigatoriedade do Estado pelo fornecimento gratuito de medicamentos vem sendo declarada em diversas decisões de tribunais superiores, inclusive o Supremo Tribunal Superior, a fim de concretizar os preceitos constitucionalmente previstos e à legislação ordinária sobre o tema. É nesse aspecto que se enquadra a questão do fornecimento pelo Estado de medicamentos para o tratamento do vírus da AIDS.
As decisões, assim, tem determinado que a falta de previsão orçamentária do ente federado acerca dos gastos relativos ao custeio do tratamento do indivíduo não justificam a recusa em fornecer os medicamentos, prevalecendo a defesa aos direitos à vida e à saúde. Neste sentido se manifestou o ministro do STF Celso de Mello [pet 1.246-SC]:
“entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde (...) ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo (...) uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana, notadamente daqueles que têm acesso, por força de legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes”.
O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado favoravelmente ao fornecimento de medicamentos e tratamento pelos estados, especialmente daqueles elencados nas listas de aprovação do Ministério da Saúde, reconhecendo a existência de uma obrigação de origem constitucional, citando-se nesse sentido o Agravo nº 253938/RS, julgado pela 1ª Turma, em que por unânimidade foi declarado direito ao recebimento de medicamentos para o tratamento de AIDS (Rel. Min. José Delgado) e o Recurso Especial nº. 83.800/RS, julgado pela 1ª Turma, onde a maioria dos ministros se manifestou pela existência da obrigação do estado em fornecer os medicamentos para fenilcetonúria (Rel. Min. Gomes de Barros, vencido o Relator originário, Min. Demócrito Reinaldo).
Os tribunais, assim, têm concedido mandados de segurança em favor do cidadãos portadores de alguma patologia, a fim de que recebam o tratamento de que necessitam, atingindo Estados, Municípios e a União
Algumas causas que versam sobre o tema em questão começaram a chegar ao STF em 2000, tendo este órgão desde então proferido decisões a favor do fornecimento obrigatório dos medicamentos pelo estado, em respeito ao direito à vida e à saúde, conforme RE 236.200-RS (Rel. Min. Maurício Corrêa), RE 247.900-RS (Rel. Min. Marco Aurélio), RE 264.269-RS (Rel. Min. Moreira Alves), RE 267.612-RS (Rel. Min. Celso de Mello), dentre outros. Para esse órgão, portanto, a alegação de problemas orçamentários do estado não o impedem da obrigação de fornecimento de medicamentos indispensáveis, cabendo inclusive o bloqueio de verbas públicas (SOUZA, 2008).
AIDS E CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ARGENTINA: ANÁLISE DE UM CASO CONCRETO
O direito à saúde, na Argentina, sofreu alterações relevantes com a reforma constitucional de 1994, que facilitou o desenrolar de um processo de internacionalização do ordenamento de acordo com o sistema interamericano de direitos humanos. Através dessa reforma, foram introduzidas previsões constitucionais explícitas que consagraram o direito à saúde, inexistentes anteriormente (CLERICI, 2005). Essa modificação foi influenciada por ordenamentos internacionais, como as declarações de direitos promovidas pelas revoluções dos Estados Unidos e da França, que deram surgimento à Declaração de Direitos Humanos de 1948.
Assim, a reforma de 1994 teve o papel de introduzir expressamente no ordenamento jurídico do país, tratados e convenções internacionais, passando o art. 75, inciso 22 da Constituição Nacional a dispor que determinadas declarações, tratados e convenções possuem hierarquia constitucional e devem ser entendidos como complementares aos direitos e garantias reconhecidos na Constituição. Desta forma, a partir da reforma constitucional de 1994 a proteção ao direito à saúde na Argentina passou a ser analisada tendo como base tratados internacionais de direitos humanos (DAMSKY, s/ ano). Como conseqüência desse processo de internacionalização do ordenamento argentino e do reconhecimento de uma ordem pública americana, foi declarada a competência da Corte Interamericana para conhecer dos casos acerca da interpretação e aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Deste modo, o reconhecimento de convenções e tratados internacionais como detentores de força constitucional tirou do Estado argentino o poder discricionário de tomar as decisões sobre as ações relativas aos direitos humanos, fazendo com que ele assumisse, em consonância com o direito internacional – especialmente o interamericano-, inúmeros deveres de hierarquia constitucional que foram aos poucos se consolidando, perseguindo e sancionando qualquer violação a estes direitos.
No texto constitucional originário da Argentina, que vigorou entre os anos de 1853 a 1860, o direito à saúde era resguardado apenas de forma implícita. Doutrinariamente, era feita uma interpretação sistemática que entendia a existência do dever do Estado preservar a saúde, principalmente de acordo com o preâmbulo da Constituição, relacionando-a com o direito à vida.
Após a reforma de 1994, no entanto, tal direito passou a ser protegido pela ordem constitucional, englobando os tratados internacionais, tendo sido explicitamente disposto pelo art. 42, primeiro parágrafo, que aduz:
“Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses econômicos; a uma información adecuada y veraz; a la liberdad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno”.
Cumpre destacar, ainda, o art. 75, inciso 23 da Constituição Nacional, que enuncia o dever do Congresso Nacional legislar e promover medidas de ação positiva que garantam a igualdade de oportunidades e o pleno gozo e exercício dos direitos reconhecidos pela Constituição e tratados internacionais sobre direitos humanos.
A Suprema Corte de Justiça da Argentina, criada em 15 de janeiro de 1863, tem reconhecido, conforme a Corte interamericana, o dever do Estado de se organizar de maneira a salvaguardar os direitos humanos, confirmando, em diversas decisões, a obrigação da autoridade pública de garantir o direito à saúde através de ações positivas, como o fornecimento de medicamentos necessários ao tratamento de enfermidades (DAMSKY, s/ ano).
A decisão objeto de análise deste artigo é conhecida como “Caso da Associação Benghalensis” e foi proferida pela Suprema Corte de Justiça da Argentina no dia 1º de junho de 2000, servindo como referência em inúmeros outros julgados. Nela, a Associação Benghalensis e outras entidades governamentais que desenvolvem atividades de combate à AIDS buscaram que o judiciário obrigasse o Estado nacional, representado pelo Ministério de Saúde e Ação Social da Nação, a prestar auxílio na assistência, tratamento e reabilitação dos doentes, especialmente através do fornecimento dos medicamentos necessários de forma contínua.
Para tanto, as Associações Governamentais alegaram que a Lei Nacional 23.798 declarou a luta contra à AIDS e estabeleceu o Ministério de Saúde e Ação Social como responsável pela disponibilização dos medicamentos (Art. 3º), e que a interrupção do tratamento retira a efetividade da droga, com sérias conseqüências aos enfermos.
O Estado contestou o pedido declarando que havia cumprido as determinações da Lei 23.798 que, na sua interpretação, apenas o obrigaria a administrar um programa central, de onde se subdividiriam outros em âmbito local. Além disso, a parte ré se manifestou pela ilegitimidade dos autores, uma vez que não foi invocada lesão a um direito concreto e que não seria o Ministério da Saúde o único responsável pela distribuição de medicamentos.
Em sede de primeira instância, a juíza condenou o Ministério da Saúde e Ação Social a cumprir a obrigação de assistência, tratamento e provimento dos medicamentos, julgando procedente o pedido e estabelecendo que o este Ministério não poderia transferir essa responsabilidade a outros órgãos, colocando em risco toda a comunidade.
A sentença foi confirmada na Câmara Nacional de Apelações, entendendo seus componentes que autores estavam legitimados para propor a ação de amparo, que poderia ser interposta por qualquer pessoa afetada, pelo defensor do povo e pelas associações que se disponham a este fim. Foi dito, ainda, que em decorrência da previsão constitucional de proteção à vida e à saúde (Arts. 14, 18, 19 e 33) e da Lei 23.798, o Estado tem obrigação específica de combater à AIDS, através de programas que busquem diagnosticá-la, preveni-la e tratá-la. O fornecimento dos medicamentos necessários a este tratamento, portanto, seria uma medida de direitos humanos reconhecidos na Constituição Nacional.
O Estado Nacional, inconformado com a decisão, interpôs Recurso Extraordinário, considerando ter havido violação ao direito de propriedade e aos princípios de defesa judicial, de divisão de poderes e da supremacia das leis formais, discutindo, assim, interpretação de normas federais. Alegou que por se tratar de direito à saúde, não seria obrigado exclusivo pelo provimento dos medicamentos, dividindo a responsabilidade com os estados locais, tendo o sistema de saúde uma organização federal. Afirmou, ainda, que tal ato institucional não seria sujeito a controle judicial, de forma a defender o princípio da separação dos poderes.
Em sede de julgamento do Recurso Extraordinário, os ministros se manifestaram no sentido da legitimidade das associações para interpor a ação, em conformidade com o art. 43 da Constituição Nacional, segundo o qual possuem legitimidade sujeitos potencialmente diferentes dos afetados diretamente, entre eles as associações, por ação ou omissão que restrinja direito constitucionalmente previsto. A decisão afirmou que o Estado deve realizar prestações positivas a fim de evitar que os direitos individuais se tornem efetivos, comentando que a Lei 23.798 declarou o interesse nacional do combate à AIDS e, em seu art. 4º, impôs a obrigação de fazer ao Estado, desenvolvendo programas destinados a este fim. Como conseqüência, o Estado teria o dever de disponibilizar os medicamentos necessários para o diagnóstico e tratamento do vírus.
Quanto ao argumento do Estado Nacional de que não seria o único responsável, o Recurso Extraordinário apontou que o Estado Federal não delegou aos Estados locais a responsabilidade do cumprimento da luta contra a AIDS, de interesse declaradamente nacional. A responsabilidade do Estado Federal, assim, não se esgotaria com a entrega dos medicamentos, mas deveria velar pelo seu correto cumprimento, assegurando a regularidade e continuidade do tratamento médico. É para tanto que o art. 3º da Lei 23.798 determina que o Ministério da Saúde e da Ação Social poderá concorrer a qualquer parte do país para contribuir com o cumprimento da lei.
Baseado nesses argumentos, o recurso extraordinário confirmou a sentença recorrida, condenando o Estado nacional – Ministério da Saúde e Ação Social- a cumprir a obrigação de assistência, tratamento e fornecimento de medicamentos, de forma regular, aos portadores do vírus HIV.
Este caso se tornou referência quanto às efetivações positivas do direito à saúde na Argentina, consolidando a tendência jurisdicional da Suprema Corte de Justiça Nacional, dando plena aplicação à Lei 23.798 em seu caráter obrigacional do Estado, à luz dos compromissos internacionais de direitos humanos relativos ao direito à saúde, concretizando-se através do fornecimento de medicamentos para o diagnóstico e tratamento da AIDS. Sua importância é reconhecida, além disso, por ter confirmado a legitimidade ativa de organizações com fins sociais para dar início a ações que visem à proteção à saúde.
COMPARAÇÀO DA EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DE AIDS NO BRASIL E ARGENTINA
Cumpre inicialmente comentar que, em ambos os países membros do Mercosul, a questão concernente ao fornecimento de medicamentos e tratamento pelo Estado é extremamente recente e, portanto, desafiadora de maiores discussões e comentários sobre o tema. As diferenças quanto ao tratamento dispensado ao sistema de saúde desses países se devem a fatores políticos, sociais e culturais.
Ambos os países tiveram influência de legislação estrangeira, pactos e tratados, na formulação da proteção expressa ao direito à saúde em seus próprios ordenamentos, elencando-se o papel do Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC) no Brasil, e dos tratados internacionais de direitos humanos que em muito influenciaram o direito argentino acerca do tema, desenvolvido através de um processo, inclusive, de internacionalização da legislação.
O direito à saúde foi expressamente previsto na Constituição Argentina apenas em 1994, embora já tivesse aplicação prática, tendo sido incluído na Constituição Brasileira anteriormente, em 1988.
A capital federal da Argentina é a responsável pela proteção à saúde com relação às 23 províncias do país, tendo como características importantes do sistema de saúde a sua fragmentação em diversos setores, com diferentes fontes de recursos, além da maior atenção para os avanços da medicina e tecnologia, em detrimento da preocupação com a criação de programas de saúde de base. Busca-se, assim, uma gestão descentralizada com desenvolvimento de redes locais de complexidade crescente. No Brasil, no entanto, a gestão se apresenta de forma regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo, podendo haver formação de consórcios intermunicipais de saúde. Enquanto na Argentina o financiamento do sistema de saúde é feito por fontes orçamentárias e por contribuições dos trabalhadores, no Brasil foi criado o orçamento da Seguridade Social, sendo os recursos repassados entre União, estados e municípios. Tanto no Brasil como na Argentina, é mais comum que os indivíduos busquem a responsabilização do município ou do estado pelo fornecimento de medicamentos, uma vez que são os entes federativos mais próximos (SOUZA, 2008).
Em ambos os países, no entanto, apenas recentemente passaram a ser encontrados nos tribunais superiores causas relativas à prestação positiva do direito à saúde relacionado ao fornecimento de medicamentos ou tratamento médico, como nos casos de pacientes portadores do vírus HIV, abrindo espaço para discussões doutrinárias e análise jurisprudencial neste sentido. Após um período de maiores divergências acerca da solução desses casos, no Brasil e na Argentina houve um direcionamento maior das sentenças e decisões dos tribunais no sentido de considerar existente a obrigação do estado de arcar com o fornecimento de medicamentos, em respeito ao direito à saúde e à vida. No entanto, ainda podemos encontrar em ambos os países decisões que afirmam inexistir a possibilidade de interferência do poder judiciário na formatação das políticas públicas, o que se deve, principalmente, à atualidade do tema.
Assim, os tribunais superiores dessas duas nações tiveram – e ainda têm – grande importância na luta pela efetivação do direito à saúde como direito fundamental e constitucionalmente resguardado, tendo alcançado um papel ativo na busca da concretização das políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do exposto, vê-se a importância da discussão acerca da concretização dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, cabendo analisar sua efetivação através das políticas públicas elaboradas pelos Estados. Assim, embora os estados aleguem a falta de previsibilidade dos recursos financeiros a serem empregados para a proteção de determinados direitos sociais, o poder judiciário, em diversos países, tem interferido e declarado a obrigação de cumprimento do dever de salvaguardar a saúde.
Acerca do tema, destacou-se a relevância do debate sobre a efetivação do mínimo existencial, resguardando o direito de cada indivíduo ser tratado como igual e detentor de uma vida digna, assim como acerca da chamada reserva do possível, relativa às alegadas possibilidades financeiro-orçamentárias dos estados.
Considerando tais aspectos, os tribunais superiores de países como o Brasil e a Argentina têm decidido sobre a obrigatoriedade dos estados arcarem com o fornecimento de medicamentos e o tratamento necessário para os cidadãos enfermos, como os portadores do vírus da AIDS, conforme discutido neste trabalho. Quanto a isso, tem-se analisado os casos diante dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, decidindo-se a necessidade e possibilidade da causa. Desta forma, nesses países a legislação, principalmente de caráter constitucional, tal como a jurisprudência mais recente, adotaram uma postura de possibilitar uma real concretização dos mandamentos de proteção à saúde, defendendo o direito a uma vida saudável e digna.
Cumpre comentar, ainda, que o tema do fornecimento pelo estado de medicamentos e tratamento gratuito aos indivíduos merece maiores discussões, a fim de melhor avaliar a questão, principalmente com relação à distribuição de responsabilidades e encargos entre os entes estatais e buscando uma uniformização das decisões dos tribunais.
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[1] Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do PIBIC, integrante do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe.
[2] O presente artigo foi elaborado no âmbito do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais”, projeto de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora e Direitos Fundamentais Sociais : Uma Análise da Jurisprudência Nacional e Comparada ” da Universidade Federal de Sergipe.
[3] Consoante assinala Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 55) a expressão direitos naturais refere-se “àqueles inerentes à natureza do homem; direito inatos que cabem ao homem só pelo fato de ser homem”. Já direitos humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais, sendo terminologia pouco usada na doutrina, salvo para referir-se aos direitos civis ou liberdades civis. Os direitos públicos subjetivos constituem “um conceito técnico-jurídico do Estado Liberal, preso, como a concepção direitos individuais, à concepção individualista do homem (SILVA, 2005, p. 55). Liberdades fundamentais ou liberdades públicas são expressões ligadas à concepção dos direitos públicos subjetivos e direitos individuais”.
Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA. Autora dos livros: Máximas de Experiência no Processo Civil e Direito Constitucional do Trabalho. Site pessoal: www.flaviapessoa.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. AIDS e efetivação judicial de políticas públicas: uma análise comparada Brasil x Argentina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2010, 08:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19980/aids-e-efetivacao-judicial-de-politicas-publicas-uma-analise-comparada-brasil-x-argentina. Acesso em: 23 dez 2024.
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