O Promotor de Justiça denunciou a este Juízo Argentina R. M., qualificada nos autos, como incursa nas penas do art. 331 do Código Penal, por ter desacatado o guarda de trânsito José G. D. Morais, chamando-o de “guardinha”, segundo as circunstâncias descritas na peça de fls. 2.
A Defesa, na pessoa do advogado, Dr. Emanoel Santos Câmara, em audiência, pediu a absolvição da acusada afirmando que o fato teve como provocadora a própria vítima, que extrapolou no cumprimento de seu dever funcional. Descreve, minuciosamente, a cena do fato, mencionando que o carro da acusada sofreu o que se chama de afogamento, e com isso interrompeu o trânsito nas imediações do Palácio Anchieta. Diz o advogado que o guarda de trânsito lavrou 6 (seis) infrações contra a acusada, o que desencadeou a revolta, natural, da incriminada.
A sentença primitiva, que este juiz prolatou, foi anulada pelo Tribunal de Justiça
“para que outra se veja proferida sem as nulidades reconhecidas neste julgamento” (fls. ...).
Como a sentença foi exarada, em audiência, dentro do procedimento sumário – circunstância em decorrência da qual os nomes das partes, a exposição da acusação e da defesa (art. 381, incisos I e II, do Código de Processo Penal) já constam do próprio termo, que é uno –, entendeu este Juiz dispensável repetir esses dados, no corpo da decisão. Ainda mais que o ato foi praticado na trepidação de um expediente da 3ª Vara Criminal de Vitória, sendo que, nesse dia, este Julgador presidiu a três audiências e sentenciou em três processos.
Curva-se, porém, ao princípio hierárquico das jurisdições superpostas, axioma básico do sistema judiciário.
Assim, através dos parágrafos iniciais desta nova decisão, atende literalmente o art. 381, incisos I e II, do Código de Processo Penal Brasileiro.
Passo a dar os motivos de fato e de direito em que fundo a decisão (art. 381, inciso III, do Código de Processo Penal).
Carlos Cossio, o célebre jurista argentino, operou autêntica revolução copernicana no campo do Direito. O Direito é conduta, e não norma, afirma a Teoria Egológica. Em consequência, não se pode conceber uma hermenêutica jurídica, senão do objeto jurídico – a conduta. Dentro dessa postura, o indivíduo julgado é integralmente substituído por sua fatalidade, ou contingência.
Sublinhou, com acerto, dentro dessa linha, Moura Bittencourt, em “O Juiz”, p. 186,
“a necessidade do conhecimento pelo juiz criminal do homem submetido a seu julgamento, muito mais do que o conhecimento dos autos.”
Complementando essa visão do Direito, afirma o grande magistrado paulista:
“O legislador prevê os casos gerais, e é esse o destino da norma. Se o caso especialíssimo, não previsto, deve ser afastado da regra, cabe a palavra ao aplicador, que tem consigo a tarefa da vivificação do texto” (p. 282).
Não é diversa a advertência luminosa de Alípio Silveira (Os Institutos Penais e o Juízo das Execuções, p. 354):
“O aplicador não deve encerrar-se no domínio da rígida lógica formal e não deve dar valor maior às inferências. Nosso legislador quis afastar o aplicador do apego a tais métodos, ao determinar-lhe que atenda aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.”
Não discrepa o ensino clássico de Carnelutti:
“O legislador tem as insígnias da soberania; mas o juiz possui as suas chaves.”
Triepel disse certa feita:
“A lei não é sagrada; só o Direito é sagrado.”
De Manzini colhemos a afirmação de que o interesse de manter a chamada segurança jurídica não pode prevalecer sobre o interesse de fazer triunfar a Justiça substancial sobre a Justiça meramente formal.
Não se pode reduzir o juiz a mero porta-voz da lei, como queria Montesquieu.
O Direito não se esgota na lei. Esta revela, quando revela, uma de suas faces. Direito é fato social, vivo e palpitante, como afirmei a fls. ..., destes autos.
Muito mais que um matemático ou um geômetra, creio que o juiz seja um artista e um pedagogo. Um artista, que usa a lei como argila, para construir poemas: poemas de vida, da vida pulsante que geme, chora e sua e que ecoa no pretório. Pedagogo porque educa, encaminha, aconselha, ama.
Não são apenas petições que vêm aos juízes: são lágrimas, são faces, é gente como a gente, mais sofrida quase sempre.
O autorizado Pontes de Miranda colocou a antinomia “direito dos juristas e direito do povo” (Sistema de Ciência Positiva do Direito, vol. II, p. 492). Não é um “subversivo” da ordem jurídica que nega o monopólio da lei como instrumento normativo da conduta, mas um douto, acatadíssimo, que, aqui mesmo no Espírito Santo, recebeu o “Prêmio Muniz Freire”, concedido pela nossa Associação dos Magistrados. Está no “direito do povo” que ser criminalmente processado é, inquestionavelmente, uma pena, no sentido de que aflige. Sintomático é constar dos termos de interrogatório que o acusado “nunca foi preso e nem processado”.
A orientação da presente sentença tem precedente assinalável. O então Juiz Dr. Homero Mafra, absolveu dois jovens universitários, acusados de possuir e fumar maconha, embora reconhecendo expressamente a configuração do crime, para manter neles viva a esperança na misericórdia humana. (“A Gazeta”, edição de 8 de maio de 1973).
É dentro dessa visão do Direito que entendo deva Argentina R. M. ser absolvida. Não me parece socialmente justo retirar dessa jovem de 24 anos, aluna do Curso de Ciências Biológicas da UFES, a condição de primária, pelos fatos que o processo relata. Mesmo simplesmente multada, ela passa à condição de criminosa, ou seja, autora de um crime. Muitas portas lhe serão fechadas na vida, por ter criminalmente condenada, e esta consequência é desproporcional aos fatos narrados pelo processo.
Se se quer fazer da sentença um silogismo, se se quer fundar a jurisdição na lógica matemática, a acusada deve ser condenada.
Mas o juiz não é um aplicador mecânico da lei.
“A letra mata; o espírito vivifica”, disse o Apóstolo Paulo.
Toda norma penal contém uma advertência genérica, de disciplina social, que opera pela sua simples existência.
A aplicação da norma abstrata aos casos concretos é entregue a homens, os juízes.
Creio que o simples processo é, para Argentina R. M., aqui presente, advertência suficiente, além das multas de trânsito que lhe foram impostas.
Não me parece que a vítima, o guarda de trânsito José G. D. Morais, apelidado o “Guarda-Sorriso”, só possa ter reparação moral com o apenamento criminal da moça.
A sentença anulada já proclamara o seu mérito e esta nova o reafirma. Era preciso que houvesse muitos guardas-sorriso, muitos homens-sorriso, muitas crianças-sorriso, para tornar menos agreste este mundo tão tenso, tão competitivo, tão cruel.
Com fundamento no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que invoco expressamente (art. 381, inciso IV, do Código de Processo Penal), lei, como é sabido, extensível a todas as esferas do Direito – dispositivo que permite ao juiz realizar amplamente a interpretação teológica de todo e qualquer preceito legal – ABSOLVO Argentina R. M. da imputação que lhe foi feita.
(Sentença profereda pelo Juiz João Baptista Herkenhoff. Extraída do livro Uma Porta para o Homem no Direito Criminal. Herkenhoff, João Baptistal Rio, Editora Forense, 2001, 4ª edição, p. 10 e seguintes. É livre a divulgação, pois o livro está esgotado.)
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