O presente artigo tem por objeto a análise da prescindibilidade do inquérito civil ou procedimento administrativo prévio para o ajuizamento de ação civil pública, de acordo com o que dispõem os arts. 14 e 22 da Lei de Improbidade Administrativa.
De acordo com o disposto no art. 22 da Lei de Improbidade Administrativa entendemos que o mesmo prevê uma faculdade ao Ministério Público, que poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo para colheita de provas que possam consubstanciar o pedido da ação civil pública. É o que textualmente dispõe o art. 22, da Lei 8249/92, in litteris:
“Art. 22. Para apurar qualquer ilícito previsto nesta Lei, o Ministério Público, de ofício, a requerimento de autoridade administrativa ou mediante representação formulada de acordo com o disposto no artigo 14, poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo”.
Também dispõe o parágrafo primeiro do artigo 8º. da Lei 7.347/85: “o Ministério Público ‘poderá’ instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismos públicos ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis”.
Vislumbra-se ainda, fundamento para a facultatividade da instauração do inquérito civil na própria redação do artigo 8º, parágrafo 1º, da Lei 7.347/85, pois tal dispositivo legal, empregou o verbo poderá, não deixando margem a dúvidas acerca de seu caráter facultativo.
Nesse sentido, Wallace Paiva Martins Júnior (MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa, São Paulo: Saraiva, 2001) entende não se tratar de obrigação, mas sim de mera faculdade:
"A prerrogativa instituída é mera faculdade conferida ao Ministério Público, pois a lei saliente que o órgão ‘poderá requisitar’. Assim, o Ministério Público recebendo ou conhecendo notícia de improbidade administrativa poderá optar pela solução que lhe for mais conveniente para a apuração do ato de improbidade administrativa e promoção de futura ação civil pública".
O professor Wallace mantém o entendimento acrescentando:
"Entretanto, frise-se que o inquérito civil, o inquérito policial e o procedimento administrativo são meras faculdades, dispensáveis e prescindíveis, se o Ministério Público possuir elementos probatórios da convicção da prática de improbidade administrativa, como depoimentos, documentos, laudos, enfim, provas lícitas. A ação civil pública de improbidade administrativa de modo algum subordina-se à prévia conclusão ou instauração de inquérito civil, policial ou procedimento administrativo". (Grifamos)
No mesmo sentido, Marino Pazzaglini Filho (PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal: legislação e jurisprudência atualizadas, São Paulo: Atlas, 2002) preceitua:
"Importante, inicialmente, enfatizar que a instauração de inquérito civil é facultativa, pois, além de não se constituir em pressuposto ao aforamento de ação civil pública ou de improbidade administrativa, pode ser desnecessária quando o Ministério Público já dispuser de elementos de convicção suficientes para instruir a petição inicial da ação civil, em especial quanto a autoria, ao fato, aos fundamentos jurídicos do pedido, com suas especificações (art. 282, II, III e IV do CPC), tais como pecas de informações remetidas por autoridades judiciárias, administrativas e legislativas extraídas de processos civis e criminais".(Grifo nosso)
Ainda na mesma esteira Rogério Pacheco Alves (GARCIA, Emerson, PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade Administrativa, 1. ed. 2. tir., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002.):
"Por derradeiro, é preciso esclarecer que não se deve extrair do princípio da obrigatoriedade a conclusão, equivocada, de que a instauração do inquérito civil é indispensável à propositura da ação civil pública. Obrigatória será para o Ministério Público a apuração dos supostos atos de improbidade, servindo-se para tanto, ordinariamente, do instrumento aqui analisado, pois, como acentuado por Mazzilli, existe para a Instituição antes o dever que o direito de agir. No entanto, já dispondo de elementos suficientes à formatação de sua opinio, evidentemente não há que se exigir, sob pena de exacerbado formalismo, que instaure o inquérito civil no qual, afinal, somente seriam reproduzidos os elementos já existentes. Tem-se, desse modo, que meras peças de informação (representações, relatórios do Tribunal de Contas e de CPI’s etc.) já se mostrarão aptas a embasar a ação civil pública ou qualquer outro tipo de ação no campo da improbidade, não se podendo conceber a instauração do inquérito civil, assim, dada a sua prescindibilidade, como uma condição de procedibilidade". (Negrito nosso)
Ainda pela dispensabilidade, João Batista de Almeida (ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da ação civil pública: doutrina e jurisprudência, prefácio J. P. Sepúlveda Pertence, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001):
"O Ministério Público, no entanto, poderá ajuizar ação civil pública mesmo sem a instauração prévia do inquérito civil, desde que possua elementos de convicção necessários a tal desiderato. Poderá ainda ajuizar a aludida no curso do inquérito civil. Em suma, o órgão ministerial não está obrigado a instaurar ou a concluir inquérito civil como condição para a propositura da respectiva ação". (Negrito nosso)
Assim, a realização do inquérito civil não é condição indispensável para a propositura de toda e qualquer ação civil pública, nem tampouco constitui pressuposto de desenvolvimento válido e regular do porcesso e/ou condição da ação. Quando houver elementos de informações consistentes da provável ocorrência de determinado dano a interesse supra-individual (coletivo ou difuso), admiti-se a deflagração da referida ação judicial.
Quando, porém, as informações forem insuficientes para indicar a ocorrência de determinado dano ou de sua autoria, é de rigor a instauração de inquérito civil, evitando-se o ajuizamento de uma ação temerária.
A instauração do inquérito civil é justificadamente dispensável quando a existência de elementos probatórios indiquem, com segurança e firmeza, a efetiva ocorrência de atos deletérios a interesses difusos ou coletivos, assim como de sua autoria, permitindo o exercício responsável do poder/dever de promover a ação civil pública.
Assim, vislumbra-se fora de propósito um inquérito civil quando já existem elementos concretos e sólidos e fundamentação adequada para a propositura da ação civil pública com vistas a assegurar a efetiva punição dos causadores de danos a interesses difusos e coletivos.
A título de ilustração, assim já decidiu este Egrégio Tribunal de Justiça:
Constitucional - Administrativo - Agravo de Instrumento - Ação Civil Pública - Desnecessidade de Inquérito Civil Prévio - Improbidade Administrativa - Legitimidade do Ministério Público - Quebra de sigilo bancário e fiscal - Indisponibilidade de bens - Medidas necessárias - Não aplicação do princípio da proporcionalidade - Possibilidade de terceiro não agente público responder por atos de improbidade - Recurso improvido I - O inquérito civil prévio é desnecessário para a impetração de ação civil pública quando houver elementos probatórios suficientes; II - O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública para apuração de casos de improbidade administrativa; III - A quebra de sigilo bancário e fiscal, bem como a indisponibilidade de bens, são medidas necessárias liminarmente diante dos elementos probatórios existentes nos autos; IV- Não se pode aplicar o princípio da proporcionalidade quanto à indisponibilidade de bens dos agravantes, devendo-se garantir o ressarcimento aos cofres públicos, caso haja condenação; V - Terceiro que não é agente público pode responder por atos de improbidade administrativa, conforme dicção do art. 3º da Lei nº 8.429/92; VI - Recurso que se conhece, para lhe negar provimento.(AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0360/2000, CRISTINÁPOLIS, Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, Relator: DESA. MARILZA MAYNARD SALGADO DE CARVALHO, Julgado em 22/04/2003)
Essa também foi a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, senão, veja-se:
Processual Civil. Ação Civil Pública. Ministério Público. Desnecessidade de Prévio Inquérito Civil. Honorários Advocatícios Indevidos. Lei nº 7.347/85 (arts. 8º, 9º e 17). Súmula 7/STJ. 1. Compete ao Ministério Público facultativamente promover, ou não, o inquérito civil (§ 1º, art. 8º, Lei 7.347/85), procedimento administrativo e de caráter pré-processual, com atos e procedimentos extrajudiciais. Não é, pois, cogente ou impositivo, dependendo a sua necessidade, ou não, das provas ou quaisquer elementos informativos precedentemente coligidos. Existindo prévia demonstração hábil para o exercício responsável da Ação Civil Pública, o alvitre do seu ajuizamento, ou não, é do Ministério Público, uma vez que o inquérito não é imprescindível, nem condição de procedibilidade. A decisão sobre a dispensa, ou não, está reservada ao Ministério Público, por óbvio, interditada a possibilidade de lide temerária ou com o sinete da má-fé. 2. Existente fundamentação razoável, vivificados os objetivos e funções do órgão ministerial, cuja participação é reputada de excepcional significância, tanto que, se não aparecer como autor, obrigatoriamente, deverá intervir como custos legis (§ 1º, art. 5º, ref.), não se compatibiliza com o espírito da lei de regência, no caso da improcedência da Ação Civil Pública, atribuir-lhe a litigância de má-fé (art. 17, Lei ant., c/c o art. 115, Lei nº 8.078/90), com a condenação em honorários advocatícios. Demais, no caso, a pretensão não se mostra infundada, não revela propósito inadvertido ou clavado pelo sentimento pessoal de causar dano à parte ré ou que a ação resultante de manifestação sombreada por censurável iniciativa. Grampea-se que a litigância de má-fé sempre reclama convincente demonstração. 3. Recurso parcialmente conhecido e provido para derruir a condenação nos honorários advocatícios.(REsp 152447 /MG RECURSO ESPECIAL1997/0075340-9 – Relator: Min. Milton Luiz Pereira- Primeira Turma- Julgamento:28/08/2001- DJ:25/02/2002)
Dessa maneira, resta claro a facultatividade da instauração do inquérito civil, não sendo o mesmo condição nem pressuposto processual a legitimar o manejo da ação civil pública.
Hugo Nigro Mazzilli sustenta que ‘o inquérito civil pode e até mesmo deve ser dispensado quando o Promotor de Justiça já tenha em mãos todos os elementos necessários para propor a ação principal ou cautelar. Da mesma forma, em caso de urgência, será possível dispensar o prévio inquérito civil (como no requerimento de medida cautelar)’. (MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público: análise da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, aprovada pela Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1995).
Ressalte-se que o art. 39, §5°, do Código de Processo Penal, estabelece a disponibilidade do inquérito policial quando existir elementos que habilitem o Ministério Público à propositura da ação penal.
Desta forma, se para a propositura da ação penal o inquérito policial é perfeitamente dispensável diante da existência de outras provas, com mais razão ser prescindível o inquérito civil para o ajuizamento de ação civil pública quando já se dispõe de lastro probatório suficiente.
Assim, a exemplo do que ocorre com o inquérito policial, o inquérito civil é dispensável, desde que por outros meios de convicção já se tenha coligido elementos suficientes para a propositura da ação civil pública.
Ademais, o regime adotado pelo Brasil para controle dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos foi o Sistema da Unidade da Jurisdição ou Sistema do Monopólio de Jurisdição ou Sistema Inglês, cujo fundamento é o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, disposto no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal:
“Art. 5°, XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
O Sistema da Jurisdição Única consiste na possibilidade de ser levado à apreciação e à decisão do Judiciário todos os litígios, independentemente de exaurimento da esfera administrativa, isto porque, embora a Administração possa controlar e rever os seus atos, a decisão administrativa é sempre passível de revisão pelo Poder Jurisdicional, único capaz de proferir decisões com status de coisa julgada, ou seja, com caráter de definitividade.
Neste sentido, veja-se o magistério de José dos Santos Carvalho Filho, “a Administração Pública em nenhum momento exerce função jurisdicional, de forma que seus atos sempre poderão ser reapreciados no Judiciário”.(Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo- 23. ed. Rev., ampl. e atualizada até 31/12/2009- Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010).
Ademais, ensina Dirley da Cunha Júnior que a garantia da inafastabilidade da jurisdição proíbe qualquer lei ou ato limitar o acesso ao Judiciário, não podendo a lei condicionar o ingresso em juízo à prévia exaustão das vias administrativas (Cunha Júnior, Dirley da. Curso de Direito Constitucional-4°. ed. Rev., ampl. E atualizada até janeiro de 2010- Salvador: Editora JusPodivm. p.699.)
Nesse sentido, decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal, a ADI 1074 (Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 28/03/07, DJ de 25/05/07), entendendo pela inconstitucionalidade de dispositivo que impõe condição à propositura de ações, consubstanciando barreira ao acesso ao Poder Judiciário.
Seguindo o mesmo entendimento, o voto da Min. Ellen Gracie no MS 23789 (Julgamento em 30/06/05, DJ de 23/09/05): “Quanto à alegada preclusão, o prévio uso da via administrativa, no caso, não é pressuposto essencial ao exercício do direito de interposição do mandado de segurança. Condicionar a possibilidade do acesso ao Judiciário ao percurso administrativo, equivaleria a excluir da apreciação do Judiciário uma possível lesão a direito individual, em ostensivo gravame à garantia do art. 5°, XXXV, da Constituição Federal” (Grifos Nossos)
Em virtude de tais argumentos e para corroborar ainda mais o entendimento defendido no presente artigo, o ilustre mestre Dirley encerra a discussão dispondo que “o controle judicial, portanto, deve ser visto com maior amplitude para compreender todas aquelas situações nas quais houve uma lesão ou ameaça a direito de alguém. Até as decisões discricionárias do Estado, que por muito tempo ficaram imunes ao controle do Poder Judiciário, não escapam mais à fiscalização judicial, sempre que se verifique uma ofensa a direito”.
Assim, a exigência de prévio procedimento administrativo como pressuposto para o manejo de ação civil pública, quando já existe lastro probatório suficiente para tanto, consiste em flagrante violação ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, castrando o acesso à Justiça diante de lesão a direito. E admitir tal entendimento, seria um retrocesso.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da ação civil pública: doutrina e jurisprudência, prefácio J. P. Sepúlveda Pertence, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo- 23. ed. Rev., ampl. e atualizada até 31/12/2009- Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional-4°. ed. Rev., ampl. E atualizada até janeiro de 2010- Salvador: Editora JusPodivm. p.699
GARCIA, Emerson, PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade Administrativa, 1. ed. 2. tir., Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002.
MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa, São Paulo: Saraiva, 2001
MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público: análise da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, aprovada pela Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1995
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal: legislação e jurisprudência atualizadas, São Paulo: Atlas, 2002
Servidora pública estadual no estado de Sergipe, com atribuições junto ao Ministério Público Estadual, lotada na 1° Promotoria Cível da Comarca de Itabaiana.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cibelle Machado de. Dispensabilidade do Inquérito Civil prévio para o ajuizamento de Ação Civil Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2010, 08:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21444/dispensabilidade-do-inquerito-civil-previo-para-o-ajuizamento-de-acao-civil-publica. Acesso em: 23 dez 2024.
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