A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LV, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Diante este dispositivo, urge a indagação: Porque esse direito constitucional não é utilizado em sede de inquérito policial?
É inquestionável a força deste dispositivo constitucional, fruto da inteligência do mundo pós guerra e resposta às violações aos direitos humanos. Constitui-se em expoente de uma nova ordem constitucional, sendo aplicada por inúmeros operadores jurídicos como princípio do inquérito policial.
Com já observado na doutrina, a persecução criminal é composta de duas etapas distintas, todavia, complementares. A primeira é o inquérito Policial, peça não obrigatória, onde se busca informações sobre a materialidade do delito e sua autoria. A segunda é a ação penal, realizada em juízo, em que se procura oferecer provas ao juiz de que o réu é o autor de determinada infração penal e deve ser considerado culpado.
O inquérito policial seria, então, um bloco de diligências (procedimento administrativo) realizado pela Policia Civil com o fito de oferecer ao órgão acusador elementos sobre a infração penal e sua autoria.
Através da Lei nº 10.792/03 fora adicionado no ordenamento jurídico substanciais mudanças no que tange ao regime jurídico do Interrogatório Judicial do Acusado, as quais deverão ser aplicadas, também, em sede de inquérito policial, por força determinante do disposto do art. 6º, inciso V, do Código de Processo Penal. Esta nova legislação impõe a presença do advogado, constituído ou nomeado, para o indiciamento do investigado, especialmente quando preso em flagrante delito.
A atuação do advogado nesta fase, é nada menos que o reconhecimento do contraditório neste procedimento administrativo, tendo em vista que fora assegurado ao indiciado, conhecimento das provas produzidas na investigação preliminar, o direito de contrariá-las, arrolar testemunhas, bem como o direito de não ser indiciado com base em provas ilícitas.
A presença deste contraditório, no indiciamento, não desnatura o êxito das investigações,como pensam alguns, muito pelo contrário, abaliza e dar maior legitimidade às conclusões da investigação. A adoção deste princípio remete a esta fase processual outra natureza, não de mera peça informativa, mas de valor de prova na instrução.
Isso tem por finalidade potencializar e inserir definitivamente a prevalência dos direitos fundamentais dentro do ordenamento vigente, afirmando-se a justiça dentro do Estado democrático de direito, assegurando o direito a dignidade da pessoa humana.
É de conhecimento comum, que cerca de noventa por cento, das ações penais em cursos são precedidas de investigação criminal, repetindo-se praticamente todas as provas obtidas no inquérito policial, com exceção dos exames periciais, entres outros irrepetíveis na ação penal. Pode-se assim, concluir, que o inquérito só é informativo nas nuances doutrinárias, uma vez que na prática é ele, de fato, a alma da ação penal.
Diante disso, a doutrina brasileira, tem divergido a respeito da aplicabilidade dos princípios do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, com predominância das posturas que refutam tal possibilidade.
No que diz respeito a ampla defesa, esta é perfeitamente exercitável no inquérito policial. Além de logicamente com ele compatível, tem sua aplicação no inquérito indicada pelos incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal. O seu exercício, nesta fase, contudo, não tem o caráter obrigatório, estando diante de mera faculdade, colocada ao alcance do indivíduo envolvido, podendo ou não ser por este exercida.
A atuação defensiva, ao logo do inquérito policial, inclui um amplo espectro de possibilidades, que vai muito além das medidas normalmente apresentadas pela doutrina(em especial, pedido de fiança, liberdade provisória, relaxamento de flagrante). Em diversas situações será possível, inclusive, o recurso ao habeas corpus e ao mandado de segurança.[1]
A plenitude da ação defensiva ao longo deste não compromete a eficiência da persecução penal, além do que serve à importantíssima proteção aos direitos fundamenteis do homem.
De forma diversa, contudo, grande parte da doutrina não da espaço ao contraditório, nesta fase preliminar da persecução criminal.
Marcelo Fortes Barbosa e Rogério Lauria Tucci, não aceitando tal pensamento, entende, em dissertação de mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie intitulada “Garantias Constitucionais de Direito Penal de Processo Penal na Constituição de 1988”, que o texto constitucional quando menciona as expressões “acusado” e “processo administrativo”, engloba toda pessoa e situação passível de restrição de direitos individuais. Para estes, o contraditório seria aplicado aos “acusados em geral”, o qual engloba o indiciado, que é considerado um tipo de acusado.
A esse respeito Rogério Lauria Tucci descreve, ainda, que:
“ (...) à evidência que se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação de ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento, desde a fase pré-processual da investigação criminal, até o final do processo de conhecimento, ou da execução, seja absolutório ou condenatória a sentença proferida naquele[2].”
Deste modo, para este professor, a defesa ampla e o contraditório devem estar presentes em todo e qualquer tipo de acusação, mesmo que não formal.
Na verdade, certas peculiaridades desautorizam o ponto de vista dos que acham que o inquérito tem caráter meramente informativo. Tal argumento não tem nenhum sentido quando se trata de prisão em flagrante, de decretação de custódia preventiva e prisão temporária. É que, para examinar a legalidade destas, o juiz terá que se valer de prova pré-constituída, sendo certo que na colheita das mesmas, deverá a autoridade policial garantir o princípio do contraditório, com efetiva intervenção de advogado, a quem se deverá, obrigatoriamente, ser propiciado a oportunidade para contraditar testemunhas e fazer reperguntas. Isso porque, a prisão afeta o status libertatis do indivíduo, que não pode ocorrer sem o devido processo legal.
Por conseguinte, se os elementos oferecidos ao juiz com vistas ao constitucional exame da legalidade não tiver sido objeto do contraditório, é óbvio que o magistrado não poderá, validamente, proferir uma decisão pela constrição da liberdade, porquanto o referido princípio, como dito, tem cabimento mesmo em atos do inquérito policial, que é espécie de procedimento administrativo.
Neste sentido, a observação de Marcelo Fortes Barbosa ao informar que :
"Não parece correto entender que a expressão "processo administrativo" esteja colocada na Constituição em sentido estrito, porque, com a alusão a "acusados em geral", tem-se por conseqüência a abrangência de todas as situações coativas, ainda que legais, a que se submetem os cidadãos diante de autoridades administrativas[3]"
A prisão de uma pessoa impõe a restrição a um dos princípios constitucionais fundamentais que é o direito à liberdade. Sendo assim, deve ser resguardado de todas as cautelas, ensejando-lhe amplo direito de defesa, mesmo estando diante da fase inquisitorial, com a garantia do contraditório.
Infelizmente, a inobservância deste princípio tem ocorrido com relativa frequência, tanto que, sobre o assunto, assim destacou Nagib Slaibi Filho: “Tal dispositivo tem sido, simplesmente, ignorado na prática pretoriana, o que representa grave violação dos direitos fundamentais e permite a manutenção de um processo diretivo e autoritário, o que só serve para denegrir a imagem da magistratura[4]"
A jurisprudência pátria ainda tendencia no sentido de não utilizar o contraditório no inquérito policial. Não obstante, é de fundamental importância, reproduzimos decisão que foge a esta regra. Uma delas, oriunda do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no MS 8790-5/1989, relator o juiz Arnaldo Lima, onde se afirma que cabe a aplicação do contraditório e da ampla defesa no inquérito policial, uma vez que este é espécie de processo administrativo.
A presença do contraditório, no indiciamento, não desnatura o êxito das investigações, pelo contrário, abaliza e dar maior legitimidade às conclusões da investigação. De outra parte, a Súmula Vinculante 14 sinaliza a corporificação do contraditório nos inquéritos policiais, ao mencionar que ao advogado deve ter amplo acesso aos elementos de prova. Desta forma, a referida súmula, impõe uma modificação de interpretação quanto ao alcance de prerrogativas constitucionais com relação aos inquéritos policiais.
Referidas medidas visam prestigiar e evidenciar a amplitude dos direitos e garantias fundamentais dentro do ordenamento pátrio. A utilização deste principio em sede de inquérito policial afirma a diretriz hermenêutica do principio da pessoa humana dentro do Estado democrático de Direito, assegurando o direito a dignidade da pessoa .
CONCLUSÃO
Observa-se, pelo que foi dito acima, que o tema em questão é muito questionado na doutrina. Majoritariamente, refuta-se a aplicação do contraditório no inquérito policial. Existem, todavia, posições contrarias a tal posicionamento, fundamentando seu entendimento no princípio do devido processo legal e proteção dos direitos fundamentais.
A Carta Maior de 1988 adota a concepção de Estado de Direito, fundamentado no principio da constitucionalidade, em que o respeito aos direitos fundamentais é o centro de gravidade da ordem jurídica.
É inquestionável que o ordenamento jurídico atual impõe ao ente estatal, como limite de sua atuação, não só principio da legalidade, mas sobretudo a dignidade da pessoa humana. Esta última, se firmando como núcleo central do constitucionalismo pátrio.
Diante deste expoente, a dignidade da pessoa humana deve irradiar seus fundamentos em todas as relações e institutos jurídicos, não sendo diferente no âmbito do inquérito policial. A presença do contraditório, no indiciamento, não desnatura o êxito das investigações, pelo contrário, abaliza e dar maior legitimidade às conclusões da investigação. A adoção deste princípio remete a um inquérito policial outra natureza, não de mera peça informativa, mas de valor de prova na instrução.
Tal postura tem por finalidade maior potencializar e inserir definitivamente a prevalência dos direitos fundamentais dentro do ordenamento vigente. A sua utilização no inquérito policial é a afirmação do principio da pessoa humana dentro do Estado Democrático de Direito.
A Ampla Defesa e o Contraditório não seriam generosidades, mas, sim, um interesse público. Para além de uma garantia constitucional de qualquer país, o direito de defender-se é essencial a todo e qualquer Estado que se pretenda minimamente democrático"
REFERÊNCIAS
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[1] AGUIAR, João Marcelo Brasileiro de. Contraditório e ampla defesa no inquérito policial . Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 43, jul. 2000. Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2009.
[2] TUCCI, R. L; Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro (Tese para o Concurso de Professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993).
[3] BARBOSA.Marcelo. Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo Penal, Malheiros, 1993, pág. 83.
[4] Dever constitucional do magistrado: a garantia do contraditório e da ampla defesa", in Seleções Jurídicas, COAD-ADV, Dezembro/90, pág. 21.
Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes; Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Lorena de Sá. Possibilidade de aplicação do princípio do contraditório no inquérito policial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 set 2010, 08:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21463/possibilidade-de-aplicacao-do-principio-do-contraditorio-no-inquerito-policial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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