O estudo sobre a cidadania pode ser norteado através de diferentes sistematizações. Conforme Marshall apud Carvalho (1991, p.1173), os direitos do cidadão podem ser subdivididos em três categorias:
[...] direito civil (direitos do indivíduo no seio da sociedade civil, incluindo os direitos de liberdade religiosa, associativa e de propriedade. A propriedade privada representa o fator de liberdade por excelência); direito político (direitos através dos quais o indivíduo participa do exercício do poder, elegendo representantes para a formulação de políticas e leis); direito social (direito de usufruir das políticas sociais, cujo maior objetivo é reduzir as desigualdades sociais).
Estas categorias supramencionadas representam a visão liberal de cidadania. Outra visão sobre a cidadania é a do "Welfare State", desenvolvido através de uma releitura do que até então se entendia por “liberdade, igualdade e propriedade”, cuja prática se concretiza nos países mais desenvolvidos economicamente. Neste tipo de prática de cidadania, entende-se o êxito material (emprego, renda, consumo, liberdades democráticas, direitos sociais) como o verdadeiro exercício da cidadania (ROSENFELD. 1995, p. 195).
Existe uma terceira visão, a qual afirma que a sociedade seria dividida em duas classes distintas: a dominante e a tutelada. À primeira, incumbe encaminhar os processos de desenvolvimento da sociedade, e à segunda, caberia seguir os ditames estabelecidos pela primeira. Um dos processos a serem conduzidos pela classe dominante é o de cidadania. Este processo se dá através de políticas assistencialistas que reforçam a condição de dependência dos sujeitos, sendo esta uma visão mais conservadora de cidadania (CARVALHO. 1991, p. 1173 – 1179).
Desta maneira, pode-se considerar que a cidadania é o conjunto de direitos e deveres do indivíduo no contexto social. Para Demo[1] :
[...] cidadania é o processo histórico de conquistas populares, através das quais a sociedade adquire progressivamente, condições de tornar-se sujeito histórico consciente e organizado, com capacidade de conceber é efetivar um projeto próprio de desenvolvimento social. O contrário significa a condição de massa de manobra, de periferia de marginalização.
Assim, infere-se, em teoria, que a base do conceito de cidadania se apóia na idéia da igualdade de todos perante a lei, bem como no reconhecimento de que toda pessoa e a sociedade são detentoras de direitos e deveres, sendo estes inalienáveis.
Falar em cidadania é pensar na intrínseca relação desta com a igualdade social e a liberdade política, ou seja, é refletir sobre democracia. Porém, no Brasil o discurso e a prática dos direitos do cidadão estão em sentidos diametralmente opostos. Conforme entendimento de Costa (1988, p. 7), esta situação "[...] é fundamental situar o Estado autoritário que, no período de 1930 a 1945, na busca de legitimação consagrou e/ou doou as leis sociais aos trabalhadores, numa tentativa de suprimir os conflitos sociais da época”.
Apesar das políticas sociais, no Brasil, terem florescido em plena era autoritarista os direitos civis e políticos foram suprimidos, assim resultou-se uma dissociação entre cidadania política e cidadania civil. O resultado desta dissociação pode ser melhor compreendido quando analisados os índices sociais do Brasil. A sociedade brasileira desenvolveu uma das maiores concentrações de renda do mundo. Conforme Jaguaribe apud por Covre (1986, p.165);
[...] numa comparação entre 32 países capitalistas, sobre a participação das famílias mais ricas na renda nacional, observamos que no Brasil isto se dá no valor de 50,6%. Somos a oitava potência do mundo em produção de riquezas, e a 188º, em distribuição com níveis de desnutrição, doenças, analfabetismo, desalojamentos e violências insuportáveis, tendo enfim 70% da população afundados na miséria e iniqüidade.
Ainda nesta seara, Rodrigues (1991, p. 40) faz um exame dos dados apresentados no “Relatório sobre o desenvolvimento humano”, publicado pela Organização das Nações Unidas, em maio de 1990. Conforme esta autora:
[...] a esperança de vida é, sem dúvida, um indicador básico das condições sociais de uma população. Assim, tem-se que no Brasil este índice cresceu nos últimos 50 anos. Entretanto, a região nordeste apresenta um índice de limite médio de vida em torno de 55 anos, o que a aproxima dos baixos níveis da Nova Guiné, Zâmbia, Namíbia e Índia. O nível de alfabetização de adultos reflete a condição mais elementar de respeito aos direitos do cidadão. A Fundação IBGE considera alfabetizadas as pessoas que sabem ler e escrever pelo menos um bilhete simples. Assim, tem-se que, no Brasil o nível de alfabetização de adultos encontra-se entre 80 e 87%. No entanto, na Região Nordeste pouco mais da metade dos adultos (60%) sabe ler e escrever; este percentual é semelhante aos países africanos, como a Quênia (60%), Camarões (61%) e Gabão (62%).
Considera-se neste contexto social, que os movimentos sociais populares constituem concretude e legitimidade para a conquista e alargamento dos direitos decorrente da cidadania. Em suas lutas, utilizando vários tipos de protestos e pressões, os sujeitos criam uma identidade social coletiva e passam da noção de carência crônica para a afirmação e busca dos direitos do cidadão. Assim, passam a reivindicar, saneamento básico, habitação, educação, assistência médica, segurança pública e salários com um mínimo de respeito pela pessoa (Rodrigues. 1991, p. 41).
Arditi (1988, p.115) assevera que “social” e “sociedade” são categorias de análise que compreendem a questão-instituída e a instituinte. Conforme o citado autor:
[...] sociedade designa a conquista de um projeto ordenador, de uma vontade que articula o fático com o normativo para conformar um domínio codificado e governável. Social é o vasto território de fenômenos, identidades e “formas de vida” pouco institucionalizadas, “nômades” que ultrapassam, eludem ou desafiam os esforços desenvolvidos pela boa ordem para codificá-lo e submetê-los. O social é o cotidiano, a conversação continuamente interrompida e retomada entre os membros da sociedade
A sociedade seria portanto o espaço do instituído, ou seja, daquilo que o indivíduo condiciona como particularidades indispensáveis à sua sobrevivência política e cultural, enquanto que social é o espaço alternativo do instituinte. Assim, as ações humanas que visam à transformação da sociedade, se organizam em nível do instituinte e se conflitam com o instituído, à medida que, como ação transformadora traz elementos que questionarão esta sociedade. Estes espaços - sociedade e social - encontram-se e mesclam-se nos atos subjetivos e concretos do cotidiano (ARDITI, 1988, p.116).
Diante destas concepções, pode-se afirmar que os movimentos sociais populares são ações coletivas organizadas a nível do social, sempre visando à superação de alguma forma de abuso, atuando, assim, na produção de uma sociedade modificada. E o instituinte na prática de sua reprodução cotidiana.
Conforme leciona Hobsbawm (1978, p.22), a história dos movimentos sociais é tratada segundo duas distintas classificações. Primeiramente sobre os movimentos da Antiguidade e da Idade Média, conhecida como revoltas de escravos, seitas religiosas e heresias. Tais eventos foram tratados como uma série de eventos ocasionais da história da humanidade, cujos seus efeitos sobre as ocorrências modernas são inexistentes. Já com relação ao tempos modernos, os movimentos sociais foram considerados simplesmente como precursores ou remanescentes ocasionais. Por outro lado, os movimentos sociais modernos, isto é, ocorridos na Europa ocidental a partir de fins do século XVII e os ocorridos posteriormente em setores cada vez mais amplos do mundo, foram em geral “tratados de acordo com um esquema interpretativo há muito consolidado e de razoável lógica".
Ante esta análise, Hobsbawm ilustra uma realidade social, que traduz dois momentos: movimentos sociais na Antiguidade e na Idade Média e movimentos sociais a partir dos fins do século XVIII. Que elementos deveriam ser considerados numa análise sobre os movimentos sociais populares brasileiros?
Sobre movimentos sociais e realidade social brasileira deveria envolver uma análise do capitalismo no continente latino-americano, o processo de estruturação das classes sociais, o papel desempenhado pelo Estado em todo processo e posterior a estes, bem como a formação e atuação dos movimentos sociais populares. O que um grupo ou movimento social quer modificar na realidade social, entende-se por projeto político-ideológico[2].
Em exame aprofundado, Gohn (1987, p. 68) identifica dois grandes projetos político-ideológicos desenvolvendo-se no seio dos movimentos sociais populares mais dinâmicos. Um projeto seria aquele com grande participação das bases, lideranças e assessorias o qual é denominado de transformador. O outro, é aquele engendrado, a partir dos interesses das classes dominantes, partindo do Estado e também coexistindo entre certas parcelas do movimento popular o qual se denomina institucionalizador. O projeto transformador contempla a participação real das classes populares no processo de gestão das políticas sociais do Estado. É, na verdade uma proposta de auto-gestão. O projeto institucionalizador se constrói em um processo que revela a busca de mecanismos de controle e dominação do movimento popular pelo Estado.
Este tipo de projeto tenta impedir a constituição de uma verdadeira identidade popular, através da apropriação das organizações e práticas populares pelo Estado e a transformação das mesmas em "políticas sociais", que objetivam a condução do processo social pelos órgãos estatais.
Nesta movimentação que ocorre entre os movimentos sociais populares e o Estado, pode-se visualizar a luta pelos direitos do cidadão, ou seja, a implementação de um projeto de cidadania no Brasil. Assim, a cidadania dá ao cidadão, direitos e deveres. Do mesmo modo, a cidadania instaura outra polarização: igualdade e desigualdade, ou, como bem observa Ferreira (1993, p.137) "[...] cada cidadão traz em si a ambigüidade de querer ser igual, ao mesmo tempo, diferente dos demais".
BIBLIOGRAFIA
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5ª ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986.
_______________. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1991.
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
DEMO, Pedro. Cidadania menor; algumas indicações quantitativas da nossa pobreza política. Petrópolis: Vozes, 1992.
DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1994.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas S/A, 2003.
MOZZICAFREDO, Juan, Estado Providência e Cidadania em Portugal.
Lisboa: Celta, 1997, in: http://www.eselx.ipl.pt, acessado em 01/11/2005.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 2ª ed. São Paulo : Max Limonad, 1997.
[1] DEMO, Pedro. Cidadania menor; algumas indicações quantitativas da nossa pobreza política. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 17.
[2] Nesta mesma vertente ideológica Maria da Glória Gohn em “Movimentos Sociais Urbanos: produção, teórica e projetos”.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe, formada pela Universidade Tiradentes, Pós Graduada em Direito Civil, pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Marcia Rafaella Freire. Da sociedade como fenômeno inspirador da cidadania Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2010, 01:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21645/da-sociedade-como-fenomeno-inspirador-da-cidadania. Acesso em: 23 dez 2024.
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