Sumário: 1- Considerações iniciais. 2- Interpretação conforme a Constituição. 3- Conexões entre princípios constitucionais. 4- A aplicabilidade prática da interpretação conforme a Constituição. 5- Limites impostos à interpretação conforme a Constituição. 6- Conclusão. 7- Referências bibliográficas.
1- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo científico está focado em um tema que ultimamente é bastante discutido por estudantes, doutrinadores e aplicadores do direito. O assunto a ser abordado é a hermenêutica constitucional.
O aplicador do direito costumeiramente e, porque não dizer, rotineiramente, vem se deparando com situações em que há um confronto entre normas jurídicas, seja ela constitucional ou infraconstitucional. Confronto este ocasionado devido à imensa gama de interpretações que um mesmo texto de lei pode vir a ter.
E ao se verificar um conflito de normas ou interpretações, qual a melhor solução a ser tomada? Qual norma deve prevalecer? Qual o método de interpretação que devemos utilizar?
A resposta para essas perguntas é simples, devemos utilizar uma interpretação conforme a Constituição, fazendo com que a norma constitucional prevaleça sobre qualquer outra, tendo em vista que a CF/88 é o alicerce de todo o nosso direito.
Como diria o nobre advogado, Antonio Henrique Suxberguer(2000), “...a interpretação conforme a Constituição caracteriza-se como uma forma flexível de concretização e aplicação das normas constitucionais. Na medida em que renuncia ao formalismo jurídico, torna mais próximos os ideais de preponderância da justiça, em sua acepção material, e de segurança jurídica.”
Para entendermos melhor, vamos a partir de agora adentrar no que vem a ser pormenorizadamente a interpretação em conformidade com a Constituição.
2- A Interpretação conforme a Constituição
A hermenêutica jurídica e a constitucional apresentam alguns métodos interpretativos já conhecidos, tais como a interpretação autêntica, a científica, a lógica, a literal e a sistemática. Um novo método hermenêutico é o de interpretação conforme a Constituição Federal. Novo é maneira de dizer, pois é sabido que esse método é bastante utilizado no Tribunal Constitucional Alemão e na Europa como um todo. Essa técnica interpretativa é utilizada para a resolução de antinomias existentes entre leis.
A interpretação conforme a Constituição consiste num mecanismo controlador, pois seu principal e primordial objetivo é garantir um mínimo possível de constitucionalidade de um texto de lei.
Em outras palavras, interpretar conforme a constituição consiste no fato de o operador do direito buscar uma interpretação da norma legal que seja compatível com a Lei Maior. Ou seja, dentre várias interpretações que uma norma jurídica possa apresentar, o intérprete deve buscar aquela que condiga com o que determina a Constituição.
Quando o operador do direito se deparar com normas que aparentemente contradigam ao que está determinado na Constituição, ou que apresente várias interpretações, ele deve priorizar aquela que mais se enquadre com os princípios constitucionais.
Contudo, já dizia o advogado Antonio Suxberger (2000) “interpretar conforme a Constituição não significa alterar o conteúdo da lei. Até mesmo porque, se assim fosse, tratar-se-ia de uma intervenção extremadamente drástica na esfera de competência do legislador – mais drástica do que a própria declaração de nulidade desta mesma lei. Tal hipótese permitiria ao ente legiferante a possibilidade de uma nova conformação da matéria, traindo, portanto, a eminente natureza de sua matéria primitiva.”
A ocorrência da interpretação conforme a Constituição está condicionada à existência de alguma disposição legal que abra um leque de possibilidades de interpretações, podendo algumas delas serem discordantes com as normas constitucionais.
No Brasil, o protetor da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, ele é que determina o que é constitucional ou não. É o STF que julga as controvérsias criadas pelas normas tentando adequá-las de alguma forma à vontade do legislador constitucional. Mantendo-se com isso a supremacia das normas constitucionais. Conforme entendimento do próprio Supremo, a técnica da interpretação conforme a constituição, “só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco.” [1]
De acordo com entendimento extraído da obra do doutrinador Alexandre de Moraes (2003), o intérprete pode se valer de alguns métodos ao analisar uma norma jurídica e extrair o seu conteúdo. Poderá ele declarar a inconstitucionalidade de determinada expressão do texto legal, ou seja, condenar parcialmente o texto da lei, chamando isso de interpretação conforme a constituição com redução de texto. Outra opção a cargo do intérprete é o mesmo conceder ou excluir da norma impugnada determinada interpretação, com o intuito de adequá-la ao texto constitucional, denominando-se este ato de interpretação conforme a constituição sem redução de texto.
3- Conexões entre princípios Constitucionais
O princípio da interpretação conforme a constituição está entrelaçado a outros princípios básicos do direito. São eles: o princípio da unidade da ordem jurídica, o princípio da presunção de constitucionalidade e por último o principio da conservação das normas.
O primeiro decorre do fato de que a Constituição é a base de todo o ordenamento jurídico, ela é a mãe de todas as leis, sendo assim todas as normas devem estar condizentes com o que ela preceitua. Como acentua J. J. Gomes Canotilho(1992): "O princípio da unidade da Constituição obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.”
O segundo é decorrência de que o legislador infraconstitucional sabendo da supremacia da Constituição jamais confeccionaria uma lei sem que a mesma não estivesse de acordo com o que determina a Lei Máxima. O legislador não teria a intenção de criar uma lei incompatível com a Constituição.
E por fim, o terceiro princípio discorre que a vontade do legislador infraconstitucional deve ser preservada sempre que a norma por ele criada puder ser interpretada de alguma forma que fique em consonância com a Constituição, pois muitos são os contratempos quando se declara a inconstitucionalidade de uma norma.
4- A Aplicabilidade prática da interpretação conforme a Constituição
A interpretação conforme a Constituição é bastante utilizada pelo nosso ordenamento jurídico. Inúmeras são as suas ocorrências em julgados dos tribunais de primeira instância, assim como pelos tribunais superiores.
Vejamos agora um exemplo da aplicação prática deste princípio pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região:
RELATOR : DESEMBARGADOR FEDERAL REIS FRIEDE
ARGUENTE : LIGHT - SERVICOS DE ELETRICIDADE S/A
ADVOGADO : FABIO AMORIM DA ROCHA E OUTROS
ARGUENTE : AGENCIA NACIONAL DE ENERGIA ELETRICA - ANEEL
PROCURADOR : RICARDO BRANDAO SILVA
ARGUIDO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 15A VARA-RJ
ORIGEM : DÉCIMA QUINTA VARA FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (200251010166460)
EMENTAdireito constitucional e direito administrativo. fornecimento de energia elétrica. poder público prestador de serviço público essencial como consumidor. inadimplência do poder público. impossibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica pela concessionária light. prevalência da regra prevista no art. 22 do código de defesa do consumidor, devidamente amparada pelo art. 1º, iii, art. 5º, xxxii e art. 170, v, todos da CRFB. caracterização, na hipótese, de violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação ao retrocesso social, da proteção ao consumidor e da continuidade do serviço público essencial.
I – Argüição de Inconstitucionalidade do art. 17 da Lei nº 9.427/96 e do art. 94 da Resolução nº 456/2000, da ANEEL, os quais, literalmente, autorizariam a suspensão de fornecimento de energia elétrica ao Poder Público inadimplente, até mesmo quando prestador de serviço público essencial, tais como transporte coletivo (SUPERVIA) e fornecimento de água (CEDAE).
II - A LIGHT e a ANEEL entendem que os dispositivos legais autorizadores, e aplicáveis ao caso sub examen, seriam, basicamente, o art. 17 da Lei nº 9.427/96 e o art. 6º, parágrafo 3º, inciso II, da Lei nº 8.987/95.
III – A interpretação procedida pela concessionária e pela Agência Reguladora rejeitam a incidência, in casu, do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual os serviços essenciais devem ser contínuos.
IV – No entanto, adequada interpretação revela que o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor está perfeitamente adequado aos ditames constitucionais, dentre eles o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o Princípio da Proteção ao Consumidor, o Princípio da Vedação ao Retrocesso Social, o Princípio da Continuidade do Serviço Público Essencial.
V – A edição dos dispositivos previstos no art. 17 da Lei nº 9.427/96, bem como no art. 94 da Resolução nº 456/2000, da ANEEL, ultrapassou as balizas constitucionalmente permitidas, violando, assim, a proteção conferida ao consumidor, notadamente através do art. 1º, inciso III; art. 5º, inciso XXXII e art. 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988.
VI - Deve ser conferida ao art. 17 da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, e ao art. 94 da Resolução nº 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL, interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a preservar o serviço público essencial, prestado direta ou indiretamente pelo Estado e, em última análise, o próprio interesse da coletividade, inadmitindo-se a sua suspensão ou, até mesmo, simples ameaça com tal objetivo.
ACÓRDÃO
Visto e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas.
Decidem os Membros do Tribunal Pleno, por unanimidade, adotar o voto do Relator no sentido de que a edição dos dispositivos previstos no art. 17 da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, bem como no art. 94 da Resolução nº 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL, ultrapassou as balizas constitucionais permitidas, devendo ser conferida aos referidos dispositivos interpretação conforme a Constituição Federal, de modo a preservar o serviço público essencial, prestado direta ou indiretamente pelo Estado, inadmitindo-se a sua suspensão ou, até mesmo, simples ameaça com tal objetivo, consoante os termos do voto do Relator constante dos autos, que fica fazendo parte integrante do presente julgado.
O princípio da interpretação conforme a Constituição, ao reduzir a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo, garante, a partir de sua concreta incidência, a integridade do ato do Poder Público no sistema de direito positivo. Essa função conservadora da norma permite que se realize, sem redução do texto, o controle de sua constitucionalidade. (Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADI 581-DF)
Diante do caso supracitado, resta claro a importância da aplicação do princípio da interpretação conforme a Constituição para solucionar impasses decorrentes do conflito de algumas normas.
5- LIMITES IMPOSTOS À INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO
Ao se interpretar uma norma jurídica em conformidade com a Constituição, o aplicador do direito deve ater-se a alguns limites interpretativos. Isso ocorre devido ao fato de que a vontade do legislador infraconstitucional deve ser respeitada, se assim não o fosse, perderia o sentido da existência do mesmo e consequentemente o seu árduo trabalho seria completamente em vão.
De acordo com J.J. Canotilho, em sua obra Direito Constitucional(1992), ao se aplicar a interpretação conforme a Constituição deve-se respeitar um espaço de decisão, ou seja, não basta apenas haver interpretações em consonâncias com a CF/88, deve existir também interpretações discordantes. Ao passo que, somente dessa forma a interpretação teria validade.
Em outras palavras, se todas as possíveis interpretações forem contrárias ao texto constitucional, a norma legal deveria ser afastada do nosso ordenamento jurídico por macular os princípios gerais do direito. Todavia, mesmo se todas as interpretações forem condizentes com a Constituição, mas, porém, se afastarem da vontade do legislador que criou a norma, essa interpretação também deverá ser banida por violar a literalidade da lei, deturpando o sentido literal do texto e a intenção do legislador.
O aplicador do direito não pode inventar, nem tampouco criar sentidos para a lei quando fica claro que não é possível fazê-lo. Agindo desse modo estaria ferindo de morte a tripartição dos poderes. Estaria entrando numa seara que não é de sua competência, ou seja, extrapolando os limites da legalidade e da própria constitucionalidade.
Com relação ao que está sendo exposto, devemos fazer menção da emenda de Representação nº 1.417, da Revista Trimestral de Jurisprudência extraída do texto de Daniela Câmara Ferreira e de Guilherme Figueiredo, que diz: “Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo".
O Supremo Tribunal Federal em alguns de seus julgados entende que a interpretação conforme a Constituição Federal necessita de certos limites, haja vista que, ao se interpretar uma norma jurídica, deve-se primeiro tentar extrair a essência através da literalidade do texto e, por conseguinte, preservar a vontade do legislador.
Em suma, para poder interpretar uma lei de acordo com a nossa Carta Magna, não pode haver qualquer violação contra a expressão literal do texto e tampouco alterar seu significado normativo. Ao contrario, se estaria fazendo uma modificação na concepção do legislador infraconstitucional.
6- CONCLUSÃO
Diante do todo já explicitado, fica latente que ao fazer uma interpretação conforme a Constituição devemos chegar até a divisa que separa a constitucionalidade da inconstitucionalidade.
Esse caminho não é sempre harmonioso, visto que por muitas vezes encontramos forte resistência por parte dos opositores a esse método de interpretação, contudo, ao se tomar uma decisão, os aplicadores do direito devem resgatar um sentido que os conduza rumo à interpretação do texto de lei que seja compatível com a Carta Maior e seus princípios.
A interpretação de acordo com a Constituição tem outro importante significado, pois ela consiste em um meio para a efetivação de um controle de constitucionalidade da lei através de uma representação de constitucionalidade e isso ocorre porque dentre várias interpretações, o operador do direito tem que buscar aquela que mais se encaixe com os desejos e vontades do legislador constitucional, tendo assim que extrair a essência da norma garantindo-se, contudo, um respeito à nossa Constituição.
Por fim, a interpretação conforme a Constituição além de todos os benefícios à justiça já citados neste ensaio, garante a supremacia dos princípios basilares do nosso direito atingindo com isso o bem estar social.
7- ReferÊncias Bibliográficas
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. – São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 188-195.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 2. ed. – São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. p. 169-174.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora UnB, 6.ª ed., 1995.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5.ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992.
FERREIRA, Daniela Câmara. FIGUEREDO, Guilherme José Purvin de. Direito constitucional ao meio ambiente de trabalho seguro e saudável. Disponível no site www.pge.sp.gov.br, acesso em 25/04/2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 1996. p. 275.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13.ed. – São Paulo: Editora Atlas, 2003. p 45-47.
SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Interpretação conforme a Constituição. Disponível no site www.jusnavigandi.com.br, acesso em 30/04/2008.
[1] STF – Pleno – Adin nº 1344-1/ES – medida liminar – Rel. Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 19 abr . 1996, p. 12.212.
Técnico do Ministério Público do Estado de Sergipe,.Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes - UNIT, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Tiradentes - UNIT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Eloanderson Dantas. A hermenêutica constitucional: uma nova visão interpretativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 set 2010, 08:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21683/a-hermeneutica-constitucional-uma-nova-visao-interpretativa. Acesso em: 23 dez 2024.
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