RESUMO: A Ação Civil Pública (ACP) é um instrumento fundamental para a proteção de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos no ordenamento jurídico brasileiro, desempenhando também um papel relevante no controle de constitucionalidade. Este artigo analisou a Ação Civil Pública como mecanismo de controle difuso, destacando sua capacidade de garantir a supremacia da Constituição Federal ao permitir que qualquer juiz ou tribunal declare a inconstitucionalidade de normas no contexto de casos concretos. Embora o controle difuso na ACP apresente limitações, como o alcance restrito de seus efeitos inter partes, a interação com o controle concentrado e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ampliam sua eficácia e promovem a uniformidade das decisões. As considerações finais ressaltam a importância da ACP na democratização do acesso à justiça, na proteção de direitos fundamentais e na manutenção da ordem constitucional, destacando a necessidade de harmonização normativa e evolução jurisprudencial para fortalecer este instrumento.
Palavras-chave: Ação Civil Pública, Controle de Constitucionalidade, Direitos Coletivos, Sistema Jurídico Brasileiro.
Sumário: Resumo; Introdução; 1. Histórico do Controle de Constitucionalidade no Brasil; 2. Espécies de Controle de Constitucionalidade; 3. Ação Civil Pública; 4. Legitimados Ativos para Ajuizar a ACP; 5. Efeitos da Coisa Julgada na Ação Civil Pública; 6. O Controle Difuso de Constitucionalidade na Ação Civil Pública; Conclusão; Bibliografia
INTRODUÇÃO
A ação civil pública (ACP) ocupa papel central no sistema jurídico brasileiro, destacando-se como um instrumento fundamental para a defesa de direitos transindividuais, especialmente os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Criada pela Lei nº 7.347/1985, a ACP integra o microssistema de tutela coletiva, uma estrutura normativa que busca articular mecanismos processuais destinados à proteção de direitos de maior amplitude social. Esse microssistema inclui, além da própria ACP, instrumentos como o Mandado de Segurança Coletivo (Lei nº 12.016/2009), a Ação Popular (Lei nº 4.717/65) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), todos concebidos para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais e o equilíbrio das relações sociais.
No âmbito do controle de constitucionalidade, a ação civil pública apresenta-se como ferramenta relevante, permitindo a análise incidental da compatibilidade de normas infraconstitucionais com a Constituição Federal. Por meio desse controle difuso, a ACP contribui para a concretização dos princípios constitucionais e para a proteção de direitos fundamentais, especialmente no que tange à preservação do meio ambiente, do patrimônio público e cultural, da ordem econômica e de outros bens jurídicos tutelados coletivamente.
A relevância da ACP no cenário jurídico brasileiro é amplamente reconhecida na doutrina. Segundo Fazzio Júnior (2019), “a ação civil pública constitui um dos mais relevantes avanços no processo civil brasileiro, destacando-se pela sua eficácia na proteção de interesses difusos”. Complementarmente, Mancuso (2021) destaca que “o microssistema de tutela coletiva representa um avanço significativo no acesso à justiça, proporcionando uma via processual adequada à proteção de direitos de alta relevância social”.
1.HISTÓRICO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL
O controle de constitucionalidade no Brasil é um mecanismo jurídico que visa garantir a supremacia da Constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico. Desde o início de sua história constitucional, o Brasil incorporou esse instrumento com características peculiares, que evoluíram ao longo do tempo, refletindo influências externas, adaptações internas e a consolidação de princípios democráticos e republicanos.
O Brasil iniciou sua trajetória constitucional com a Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I. Nesse período, não havia previsão de controle de constitucionalidade, pois o modelo monárquico centralizador atribuía ao Poder Moderador, exercido pelo imperador, a função de solucionar conflitos entre os poderes. A Constituição de 1824 conferia ao Legislativo e ao Executivo uma supremacia que dificultava a autonomia do Judiciário para revisar a conformidade das leis com a Constituição (CARVALHO, 2018).
A Constituição de 1891 trouxe a primeira previsão explícita de controle de constitucionalidade, adotando o modelo difuso, inspirado na experiência dos Estados Unidos. Nesse modelo, qualquer juiz ou tribunal poderia declarar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo no caso concreto submetido a julgamento. Essa inovação marcou o início da participação ativa do Judiciário no equilíbrio institucional brasileiro (MENDES; COELHO; BRANCO, 2021).
A Constituição de 1934 trouxe avanços significativos ao instituir o controle concentrado de constitucionalidade por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sob competência do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse modelo concentrado foi influenciado pela doutrina austríaca de Hans Kelsen, que previa a existência de um tribunal constitucional como guardião da Constituição. Contudo, esse sistema sofreu alterações durante o Estado Novo (1937-1945), quando a Constituição de 1937 retirou muitas das garantias democráticas e reduziu o papel do STF (MORAES, 2022).
Com a redemocratização e as Constituições de 1946 e 1967, houve esforços para fortalecer o controle de constitucionalidade, embora o regime militar (1964-1985) tenha imposto severas restrições à atuação do Judiciário. A Emenda Constitucional n.º 1 de 1969 ampliou instrumentos como a ADI, mas manteve limitações políticas ao Judiciário (BARROSO, 2019).
A Constituição Federal de 1988 trouxe um marco histórico ao consolidar um sistema híbrido de controle de constitucionalidade, combinando os modelos difuso e concentrado. Entre os principais avanços, destacam-se:
a) A ampliação do controle concentrado: A Constituição ampliou a legitimidade para a propositura de ADIs e criou novos instrumentos, como a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), fortalecendo a atuação do STF (MENDES; COELHO; BRANCO, 2021).
b) O fortalecimento do controle difuso: Manteve-se o modelo difuso, permitindo que qualquer juiz declarasse a inconstitucionalidade de uma norma no caso concreto, mas introduziu o mecanismo da “repercussão geral” para conferir maior eficiência ao STF (BARROSO, 2019).
c) Participação democrática: O modelo de 1988 reforçou a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade ao ampliar os legitimados para propor ações e ao garantir maior transparência e participação social nos julgamentos (MORAES, 2022).
2.ESPÉCIES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
O controle de constitucionalidade é um mecanismo jurídico que assegura a supremacia da Constituição, atuando como um sistema de verificação da compatibilidade entre atos normativos ou administrativos e o texto constitucional. No Brasil, ele se desenvolveu em um sistema híbrido, combinando elementos de controle difuso e concentrado.
O controle de constitucionalidade pode ser classificado, quanto ao momento de sua realização, em preventivo ou repressivo.
O controle preventivo ocorre antes da edição da norma, buscando evitar que atos normativos sejam elaborados em desconformidade com a Constituição. No Brasil, é exercido, principalmente, pelo Legislativo e pelo Executivo. Por exemplo, os parlamentares podem discutir a constitucionalidade de um projeto de lei durante o processo legislativo, e o Presidente da República pode vetar projetos inconstitucionais, com base no art. 66, §1.º, da Constituição Federal de 1988 (MENDES; COELHO; BRANCO, 2021).
O controle repressivo é realizado após a norma entrar em vigor, busca sanar vícios de inconstitucionalidade. É o modelo predominante no Brasil e pode ser exercido tanto pelo Poder Judiciário quanto por órgãos administrativos em algumas situações. O objetivo é retirar do ordenamento jurídico normas incompatíveis com a Constituição (BARROSO, 2019).
Outra classificação importante é quanto ao órgão que realiza o controle, sendo dividido em controle difuso e concentrado.
No controle difuso, qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma em um caso concreto, desde que provocado por uma das partes. Esse modelo, tem origem no modelo norte-americano, consolidado a partir do caso Marbury v. Madison (1803), foi introduzido no Brasil pela Constituição de 1891. No controle difuso, a decisão possui efeitos inter partes, ou seja, aplica-se apenas às partes envolvidas no processo (MANCUSO, 2018).
Um exemplo é quando um cidadão questiona, em juízo, a aplicação de uma norma que acredita ser inconstitucional, e o juiz decide afastar sua aplicação no caso específico. Contudo, a decisão pode alcançar efeito erga omnes se for objeto de posterior análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sede de recurso extraordinário, com repercussão geral.
O controle concentrado ocorre exclusivamente no STF, ou, em alguns casos, nos Tribunais de Justiça dos Estados (no âmbito das Constituições Estaduais). Esse modelo foi adotado pela primeira vez na Constituição de 1934 e consolidado pela Constituição de 1988. Ele é exercido por meio de ações específicas, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO).
As decisões em sede de controle concentrado têm efeito vinculante e erga omnes, ou seja, aplicam-se a todos e vinculam os órgãos do Poder Público (MORAES, 2022).
A classificação formal e material do controle de constitucionalidade refere-se ao objeto da análise.
O controle formal analisa a observância das regras constitucionais relacionadas ao processo legislativo. Um exemplo é a verificação de se uma lei foi elaborada respeitando as etapas e competências previstas na Constituição. Por sua vez, o controle material verifica o conteúdo da norma, analisando se este é compatível com os princípios e regras constitucionais. Por exemplo, uma lei que ofenda a dignidade da pessoa humana pode ser declarada inconstitucional por afronta ao art. 1.º, inciso III, da Constituição Federal.
As decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade podem produzir efeitos distintos.
No controle difuso, os efeitos geralmente se limitam às partes envolvidas (inter partes). No controle concentrado, os efeitos atingem todos os destinatários da norma (erga omnes). O STF pode, com base no art. 27 da Lei n.º 9.868/1999, modular os efeitos de uma decisão, fixando um marco temporal para a eficácia da declaração de inconstitucionalidade.
3.AÇÃO CIVIL PÚBLICA
A ação civil pública é um instrumento essencial para a tutela de direitos transindividuais no Brasil, promovendo o acesso à justiça em questões de interesse coletivo, difuso e individual homogêneo. Sua criação, fundamentação teórica e previsão legal refletem a evolução do ordenamento jurídico brasileiro em sintonia com as "ondas renovatórias do acesso à justiça", conforme proposto por Mauro Cappelletti e Bryan Garth (CAPPELLETTI, GARTH. 1988).
A ação civil pública foi introduzida no Brasil pela Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985, destinada inicialmente à defesa do meio ambiente, do consumidor e do patrimônio cultural. Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve uma ampliação expressiva do seu campo de aplicação, passando a tutelar qualquer interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo, conforme disposto nos artigos 127, 129, inciso III, e 5.º, inciso LXXIII, da Constituição Federal. Trata-se, portanto, de uma ação de conhecimento, de cunho eminentemente constitucional.
A lei estabeleceu um sistema processual inovador ao permitir que entidades públicas e privadas, como o Ministério Público, associações civis e outros legitimados, pudessem propor ações para defesa de interesses que transcendem o indivíduo. Essa inovação foi um marco na promoção da justiça coletiva no Brasil (MANCUSO, 2018).
Ronaldo Lima dos Santos (SANTOS,2024) define ação civil pública trabalhista como
(...) o instrumento processual, de cunho constitucional, assegurado a determinados autores ideológicos com legitimação prevista em lei (Ministério Público, Defensoria Pública, entes estatais, autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista e associações, entre as quais incluem as entidades sindicais), para a tutela preventiva, inibitória, repressiva ou reparatória de danos de qualquer ordem, imateriais ou materiais, morais ou patrimoniais, aos interesses transindividuais – difusos, coletivos e individuais homogêneos – afetos, direta ou indiretamente, às relações de trabalho e aos interesses individuais indisponíveis.
A ação civil pública desempenha um papel crucial na proteção de direitos fundamentais e na concretização do Estado Democrático de Direito. Sua importância reside em três aspectos principais:
a) Tutela de interesses coletivos: Permite a proteção de direitos de grupos vulneráveis ou de toda a coletividade, como no caso de desastres ambientais, violações ao direito do consumidor e práticas discriminatórias.
b) Eficiência processual: Ao concentrar em um único processo a defesa de interesses de múltiplos sujeitos, evita a multiplicação de ações judiciais individuais e promove decisões uniformes e mais eficazes.
c) Fortalecimento do Ministério Público: A legislação conferiu ao Ministério Público um papel central na defesa de direitos transindividuais, consolidando sua atuação como defensor da ordem jurídica e dos direitos sociais (THEODORO JÚNIOR, 2022).
A ação civil pública é um exemplo emblemático da aplicação prática da terceira onda renovatória do acesso à justiça de Cappelletti. Ao reunir em um único processo a tutela de interesses que afetam um grande número de pessoas, ela não apenas viabiliza o acesso à justiça, mas também consolida a função social do processo, permitindo que o Judiciário atue como um instrumento de transformação social (WATANABE, 2020).
4.LEGITIMADOS ATIVOS PARA AJUIZAR A ACP
Para garantir a efetividade desse mecanismo, o legislador delimitou no art. 5º da Lei nº 7347/85 um rol específico de legitimados que podem propor a ação civil pública, conferindo-lhes a atribuição de representar a sociedade na proteção desses direitos.
O Ministério Público é reconhecido como o principal legitimado para a propositura da ação civil pública. Sua atuação está vinculada à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis, conforme disposto no artigo 127 da Constituição Federal de 1988. Segundo Theodoro Júnior (2020), "o protagonismo do Ministério Público na ACP está relacionado à sua função de fiscal da lei e defensor dos interesses metaindividuais".
Além de ser legitimado ativo, o MP também atua como fiscal da ordem jurídica (custos legis) em ações civis públicas ajuizadas por outros legitimados. Nesse papel, o MP assegura que os interesses difusos e coletivos sejam adequadamente protegidos, mesmo quando não é o autor da ação.
A Defensoria Pública também possui legitimidade para propor ACP, especialmente em favor dos direitos fundamentais de grupos vulneráveis. A Lei Complementar nº 80/1994 reforça sua atuação na promoção do acesso à justiça e na defesa de interesses coletivos, o que foi amplamente consolidado com a Emenda Constitucional nº 80/2014.
Os entes públicos, incluindo União, Estados, Municípios, Distrito Federal e suas autarquias e fundações, podem ajuizar ACP quando os interesses coletivos ou difusos que pretendem proteger guardarem relação com suas finalidades institucionais. Essa legitimidade, no entanto, deve observar os limites de sua competência legal e constitucional.
As associações civis, desde que devidamente constituídas há pelo menos um ano e que tenham em seus estatutos a previsão de defesa de interesses relacionados ao objeto da ACP, também estão legitimadas. Esse requisito temporal visa evitar litígios temerários, mas pode ser dispensado em situações excepcionais, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
5.EFEITOS DA COISA JULGADA NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
A coisa julgada é a qualidade que torna imutável e indiscutível a decisão judicial que não admite mais recurso (art. 502 do Código de Processo Civil – CPC/2015). É um mecanismo que assegura a estabilidade das decisões judiciais e evita que questões já decididas sejam novamente discutidas no Judiciário (MARINONI; ARENHART, 2021).
Nas ações civis públicas, a coisa julgada apresenta peculiaridades, pois a tutela de interesses transindividuais exige um tratamento diferenciado, conforme disciplinado pela Lei n.º 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Na ACP, os efeitos da coisa julgada são regulados pelo art. 16 da Lei n.º 7.347/1985, com alterações promovidas pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 103 do CDC). Os efeitos variam conforme a natureza do direito tutelado:
Nos direitos difusos, que são indivisíveis e pertencem à coletividade de forma indeterminada, a coisa julgada possui efeito erga omnes, alcançando todos os membros da coletividade, nos limites da competência territorial do órgão julgador. Assim, uma decisão proferida em uma ACP que discuta danos ambientais em um estado, por exemplo, terá efeitos abrangentes naquele território (MANCUSO, 2018).
Os direitos coletivos, que dizem respeito a um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por uma relação jurídica base, também possuem efeito erga omnes, mas apenas para os integrantes do grupo, nos limites da competência territorial.
Nos direitos individuais homogêneos, que possuem origem comum e afetam indivíduos identificáveis, a coisa julgada vincula apenas os que se beneficiaram diretamente da decisão ou que posteriormente ajuízem ações individuais. Nesse caso, a decisão proferida na ACP não impede que os prejudicados busquem reparação específica, desde que respeitem os limites da coisa julgada (MORAES, 2022).
O art. 16 da Lei da Ação Civil Pública estabelece que os efeitos da coisa julgada sejam limitados ao território da competência do órgão prolator. Contudo, essa limitação tem sido objeto de controvérsia, especialmente em questões que envolvem interesses nacionais, como direitos do consumidor ou questões ambientais de grande impacto.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem debatido a constitucionalidade do art. 16 da Lei da ACP em diferentes ocasiões. Em casos recentes, o Tribunal tem se inclinado para reconhecer que, em situações de relevância nacional, os efeitos das decisões proferidas em ACPs podem ultrapassar os limites territoriais, especialmente em casos envolvendo direitos difusos e coletivos.
No julgamento da Reclamação Constitucional n.º 2.138/DF, por exemplo, o STF reconheceu que, em determinadas situações, a aplicação literal do art. 16 compromete a efetividade da proteção de direitos transindividuais e deve ser mitigada.
De fato, o artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição Federal assegura que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. A limitação territorial imposta pelo art. 16 contraria esse princípio ao restringir a eficácia de decisões judiciais em ACPs, especialmente quando se trata de direitos difusos que, por sua natureza, transcendem fronteiras territoriais.
A ACP é concebida como um mecanismo processual eficaz para a tutela de interesses coletivos, com o objetivo de evitar a multiplicação de ações individuais e promover decisões uniformes. A restrição territorial imposta pelo art. 16 fragmenta a eficácia desse instrumento e pode levar à multiplicidade de ações idênticas, aumentando a litigiosidade e sobrecarregando o Judiciário (MANCUSO, 2018).
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 103, estabelece que as decisões em ações coletivas que tratem de direitos difusos ou coletivos devem produzir efeitos erga omnes e ser aplicáveis em todo o território nacional. A interpretação restritiva do art. 16 da Lei da ACP contraria esse dispositivo, criando uma incoerência normativa no sistema de tutela coletiva (MORAES, 2022).
6.O CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
A ação civil pública, disciplinada pela Lei n.º 7.347/1985, é um instrumento processual voltado à defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Nesse contexto, o controle difuso de constitucionalidade pode ser exercido no julgamento de ACPs, especialmente em casos que envolvam a aplicação de normas potencialmente incompatíveis com a Constituição.
No âmbito da ACP, a inconstitucionalidade de uma norma pode ser arguida como questão incidental, quando sua aplicação comprometer a efetividade dos direitos coletivos. Por exemplo, em uma ACP que discuta a proteção ambiental, uma lei que flexibilize padrões ambientais pode ser questionada por inconstitucionalidade.
Ademais, o efeito da coisa julgada, de acordo com o Novo Código de Processo Civil de 2015 - NCPC, cerceia-se no dispositivo da sentença. Destarte, a decisão em controle difuso de constitucionalidade em ACP não tem o efeito vinculante, podendo ser rediscutida de uma nova maneira em outra ação coletiva. Ou seja, ainda que a questão de inconstitucionalidade, tanto numa ação coletiva quanto individual, é colocada como questão prejudicial, a ser enfrentada pelo juiz antes do julgamento da causa não faz coisa julgada, nem mesmo entre as partes (CONDÉ, 2023).
O juiz, ao analisar a questão, pode afastar a aplicação da norma no caso concreto, garantindo a proteção do direito coletivo em questão. Contudo, essa declaração não tem efeito erga omnes, mas apenas inter partes, aplicando-se às partes diretamente envolvidas na ACP (MANCUSO, 2018).
Uma das principais limitações do controle difuso na ACP é o alcance restrito de seus efeitos. Apesar de a ACP ser um instrumento coletivo, destinado a proteger interesses amplos, a decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade vincula apenas as partes envolvidas, o que pode reduzir a efetividade do instrumento para a proteção de direitos transindividuais.
Nos casos em que a questão constitucional analisada em uma ACP possui relevância geral, a decisão pode ser objeto de recurso extraordinário ao STF, com reconhecimento de repercussão geral. Nesse caso, a análise da inconstitucionalidade pode transcender os limites do controle difuso, produzindo efeitos mais amplos, como vinculação de outros casos similares (BARROSO, 2019).
A compatibilidade entre a ACP e o controle difuso é tema de debate na doutrina e na jurisprudência. Enquanto o controle difuso é individualizado e tem efeitos restritos, a ACP busca promover decisões coletivas e de amplo alcance. Essa aparente contradição é mitigada pelo sistema híbrido brasileiro, que permite a convergência entre os modelos de controle, conforme a natureza do direito tutelado e o impacto da decisão.
Apesar de suas limitações, o controle difuso de constitucionalidade na ACP é um mecanismo relevante para a proteção de direitos coletivos. Ele permite que normas potencialmente inconstitucionais sejam analisadas no curso do processo, garantindo uma resposta judicial célere e eficaz às demandas coletivas.
Além disso, a possibilidade de reconhecimento de repercussão geral ou a remessa ao STF contribuem para a harmonização do sistema de controle de constitucionalidade, ampliando os efeitos das decisões e promovendo a uniformidade do ordenamento jurídico.
O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que é cabível a Ação Civil Pública como instrumento de controle difuso de constitucionalidade quando a alegação de inconstitucionalidade integra a causa de pedir, e não o pedido.
PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SEGURIDADE SOCIAL. ASSISTÊNCIA SOCIAL. ART. 203, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ESTRANGEIROS E REFUGIADOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º DO DECRETO Nº 1.744/95. POSSIBILIDADE. CONTROLE DIFUSO. CAUSA DE PEDIR. RETORNOS DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO DA LIDE. 1. Recurso especial proveniente de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, com o objetivo de compelir a União e o INSS a concederem o benefício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal aos estrangeiros residentes no Brasil, bem como aos refugiados, desde que em situação regular. 2. O acórdão recorrido reformou a sentença de primeiro grau para dar provimento aos recursos da União e do INSS para reconhecer e declarar a carência da ação por incompetência do juízo para o julgamento da ação civil pública. 3. É firme o entendimento do STJ no sentido de que a inconstitucionalidade de determinada lei pode ser alegada em ação civil pública, desde que a título de causa de pedir – e não de pedido –, como no caso em análise, pois, nessa hipótese, o controle de constitucionalidade terá caráter incidental. Precedentes: REsp 1.326.437/MG, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 05/08/2013; REsp 1.207.799/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 03/05/2011. 4. Não há falar em carência da ação ou incompetência do órgão sentenciante, porquanto é cabível a ação civil pública como instrumento de controle difuso de constitucionalidade, conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Retorno dos autos à instância de origem para apreciação do mérito da demanda. Recurso especial provido - RECURSO ESPECIAL Nº 1.487.032 - SP (2014/0198449-3).
Desse modo, não se admite o manejo da ação civil pública ou de uma ação coletiva para atacar em caráter abstrato a constitucionalidade de uma norma, com efeitos erga omnes atuais e futuros, com usurpação pelo juízo da ação civil pública ou coletiva da competência constitucional dos tribunais, aos quais compete, com exclusividade, essa declaração de insconstitucionalidade.
Eventual pedido de declaração de inconstitucionalidade em sede de ACP acarreta a extinção do processo sem resolução do mérito, a teor do art. 330, III, CPC, por inadequação da via processual utilizada e, consequentemente, da falta de interesse processual do autor da demanda coletiva (SANTOS, 2024).
CONCLUSÃO
A Ação Civil Pública (ACP) consolida-se como um instrumento essencial para a proteção de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, desempenhando papel crucial na democratização do acesso à justiça. Além de seu objetivo primário de tutelar interesses transindividuais, a ACP também atua como um mecanismo eficaz de controle de constitucionalidade, contribuindo para a defesa da ordem constitucional e a garantia da supremacia da Constituição.
Embora o controle de constitucionalidade incidental, no modelo difuso, apresente limitações quanto ao alcance de seus efeitos, a interação entre a ACP e os princípios constitucionais reforça a capacidade do Judiciário de corrigir incompatibilidades normativas no âmbito de casos concretos. A possibilidade de análise de questões constitucionais em ACPs amplia a proteção de direitos fundamentais e contribui para o aprimoramento do ordenamento jurídico.
Ainda assim, a compatibilidade entre os instrumentos de controle de constitucionalidade e a ACP não está isenta de desafios. A restrição de efeitos inter partes, típica do controle difuso, pode gerar fragmentação da proteção jurídica em litígios que demandam uniformidade, especialmente em casos de relevância nacional. Nesse contexto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o reconhecimento de repercussão geral têm desempenhado papel fundamental para atenuar essas limitações, ampliando a eficácia das decisões e promovendo segurança jurídica.
Em suma, a ACP como instrumento de controle de constitucionalidade reafirma o compromisso do ordenamento jurídico brasileiro com a proteção de direitos fundamentais, a promoção da cidadania e a manutenção da ordem constitucional. Seu fortalecimento, aliado à evolução jurisprudencial e à harmonização normativa, representa um avanço significativo no exercício da jurisdição constitucional e na tutela coletiva, consolidando-se como um mecanismo indispensável para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
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Atua como Auditor-Fiscal do Trabalho desde 2007 na área de Segurança e Saúde do Trabalho. Foi Diretor do Departamento de Segurança e Saúde do Trabalho do Ministério do Trabalho (DSST) e Coordenador da Comissão Tripartite Paritária Permanente (CTPP) de 2018 e 2019. Atualmente é Chefe da Seção de Fiscalização de Segurança e Saúde do Trabalho da Superintendencia Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul. Possui a seguinte formação: Bacharel em Ciências Militares, AMAN/1997. Engenheiro Aeronáutico, ITA/2004. Engenheiro de Segurança do Trabalho, Logatti, 2008. Bacharel em Direito, UNIARA, 2012. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, UNIARA, 2014. Especialista em Processo Civil, DOM ALBERTO, 2020. Especialista em Direitos Humanos Internacionais, FACUMINAS, 2024. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos, FACUMINAS, 2024. Especialista em Direito Ambiental, FACUMINAS, 2024.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, KLEBER PEREIRA DE ARAÚJO E. A ação civil pública como instrumento de controle de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2025, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67565/a-ao-civil-pblica-como-instrumento-de-controle-de-constitucionalidade. Acesso em: 15 jan 2025.
Por: Erick Labanca Garcia
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