Janaína Penalva
Adriene Domingues Costa
([1])
I – INTRODUÇÃO:
Em 06 de março de 2009, o novo Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça foi publicado. Fruto de um debate intenso que se iniciou dois anos atrás, no momento da formação da composição 2007/2009, o novo texto normativo espelha o aprendizado e a experiência adquirida pelo CNJ no decorrer desses quase quatro anos de atividades.
As alterações foram não só importantes como numerosas, parte significativa do texto antigo teve sua redação aprimorada e outra parte sofreu mudanças de sentido normativo. O Pedido de Esclarecimentos, recurso semelhante aos Embargos de Declaração, foi suprimido no novo Regimento Interno. Novas classes processuais foram criadas, a Consulta, por exemplo, agora tem previsão regimental, com cabimento específico para casos de repercussão e interesse geral. Criou-se a classe Reclamação para Garantia de Decisão, inovação interessante que aponta para as mudanças de fundo que permearam a reforma. O novo Regimento estabeleceu também que os atos normativos do Conselho Nacional de Justiça só serão editados por maioria absoluta do Plenário, medida que fortalece a legitimidade das normas instituídas para a regulação do Poder Judiciário.
Embora, o sentido das novas disposições regimentais só se complete no momento de sua aplicação concreta, uma análise preliminar do novo Regimento Interno, demonstra o quanto a atuação firme e combativa da primeira composição (2005/2007), somada à postura interventiva e criativa da segunda composição (2007/2009), conforma as decisões sobre o futuro.
O novo Regimento Interno traz duas alterações de fundo que merecem nota. A primeira é a preocupação com o cumprimento e a efetivação das decisões e normas estabelecidas pelo Plenário do CNJ. E a segunda é a criação de novos instrumentos de garantia da participação popular na elaboração de políticas judiciárias no âmbito dos Tribunais brasileiros.
II – CUMPRIMENTO DAS DECISÕES ADMINISTRATIVAS:
Após quatro anos, o exercício das atribuições constitucionais deixou uma lição para o Conselho Nacional de Justiça: é preciso construir mecanismos eficientes que garantam a autoridade e o cumprimento das decisões do Conselho Nacional de Justiça. Não basta que as decisões e atos normativos sejam impositivos, é preciso que o sistema controle e garanta o atendimento concreto ao que foi determinado, com a imposição de sanção em casos de descumprimento.
A efetivação das decisões mereceu mesmo novo capítulo no Regimento Interno. O controle da execução das decisões permanece sendo atribuição da Presidência do Conselho Nacional de Justiça[2], mas o texto reformado instituiu órgão específico[3], subordinado à Secretaria Geral para gerir a atividade com previsão, inclusive, de criação de sistema de acompanhamento[4] pelo cidadão. Será disponibilizado na rede mundial de computadores planilha atualizada mensalmente indicando o cumprimento ou não, pelos Tribunais, dos atos normativos e das decisões do CNJ.
As decisões de maior impacto e nível de abrangência tomadas pelo Plenário desde a criação do Conselho Nacional de Justiça sofreram, na maioria dos casos, resistências no cumprimento. Até a consolidação da legitimidade do Conselho Nacional de Justiça, resistências de toda ordem são desafios constantes a serem enfrentados.
A percepção concreta desse movimento de resistência e da necessidade de se formular mecanismos eficientes para prevenção e solução desses impasses resultou nesse novo direcionamento da questão presente no Regimento aprovado. Decisões importantes a respeito da delegação de serventias extrajudiciais, sobre a prática de nepotismo, regulações a respeito de promoções e remoções, teto remuneratório, dentre outras disposições normativas, em muitos casos, não foram devidamente cumpridas pelos órgãos de origem.
Subterfúgios foram criados para se evitar o cumprimento do acórdão. Decisões plenárias do CNJ foram desconsideradas pelos órgãos de origem, a partir de um movimento perigoso de inversão de autoridades, na qual o Tribunal requerido em procedimento perante o CNJ desconstituía, ainda que de forma indireta, a decisão do Plenário na instância jurisdicional. As partes ingressavam com ações judiciais nos Tribunais de origem e, ao decidir, o próprio Tribunal - parte requerida no procedimento perante o CNJ - afastava judicialmente a decisão do Conselho.
Como as decisões administrativas do Conselho Nacional de Justiça - embora atinjam quantidade significativa de membros e servidores – são determinações direcionadas aos Tribunais e que precisam ser cumpridas naquele âmbito, o foco em um acompanhamento cuidadoso tornou-se essencial para a garantia de autoridade das decisões.
Em um movimento que indica maturidade, o novo Regimento Interno absorve essa necessidade, criando vários mecanismos de garantia da autoridade do Conselho Nacional de Justiça.
Assim, o art. 105 do novo Regimento prevê que, comprovada a resistência ao cumprimento da decisão proferida, o Plenário, o Presidente ou o Corregedor Nacional de Justiça, adotará as providências que entenderem cabíveis à sua imediata efetivação, sem prejuízo da instauração do competente procedimento disciplinar contra a autoridade recalcitrante e, quando for o caso, do envio de cópias ao Ministério Público para a adoção das providências pertinentes.
Note-se que após o período em que o foco foi a consolidação do CNJ como instância legítima de exercício dos poderes regulamentar e disciplinar, o momento é de garantir a realização e o cumprimento uniforme de suas normas e decisões pelos Tribunais.
Outra medida que demonstra essa tendência foi a instituição de um novo procedimento denominado Reclamação para Garantia de decisões[5]. A medida, inspirada nas Reclamações previstas nos regimentos dos Tribunais Superiores[6] para a preservação da sua competência e garantia da autoridade de seus julgados, não tem a mesma configuração do ponto de vista formal, mas tem a mesma função de preservação da autoridade das decisões do CNJ.
A Reclamação é mecanismo de grande valia nessa nova fase do CNJ; como instrumento de provocação do Conselho para casos de descumprimento de suas decisões, os reclamantes funcionarão como aliados no cumprimento dos julgados do Plenário.
Esse mecanismo é fruto vivo da experiência acumulada. Como fator de incremento do sistema jurídico, a criação do Conselho Nacional de Justiça agregou complexidade sistêmica. Um novo órgão com previsão constitucional certamente resolveu impasses e dificuldades, mas, da mesma forma, criou novos problemas e desafios a serem enfrentados.
Como instância inovadora de formulação de políticas judiciárias, assim como espaço mais efetivo de controle disciplinar, o CNJ a todo tempo provoca reformulações nas estruturas internas do Judiciário. Neste aspecto, talvez a questão mais difícil que o CNJ tenha trazido ao sistema jurídico seja exatamente sua relação com o Supremo Tribunal Federal.
A atribuição de competência ao Supremo Tribunal Federal para apreciação dos recursos contra decisões do Conselho Nacional de Justiça é um bom exemplo de como o incremento de complexidade traz novos desafios.
Além da perspectiva meramente pragmática, ou seja, de que tal definição constitucional aumentou a quantidade de processos em curso no Supremo Tribunal Federal, há uma questão de harmonia entre esses dois órgãos que merece análise. Ao decidir os procedimentos administrativos ou instituir normas, o CNJ impõe obrigações de caráter geral aos Tribunais, órgãos do Poder Judiciário submetidos ao Conselho. As partes indiretamente atingidas pelo cumprimento da decisão pelos Tribunais muitas vezes dirigem-se ao Supremo Tribunal Federal para impugnar essas decisões.
Nesse movimento, o Supremo Tribunal Federal termina por apreciar, ainda que liminarmente, casos concretos que não foram decididos de forma individualizada pelo CNJ, que apenas instituiu obrigações aos Tribunais do País. Como fruto da atribuição de controlar a legalidade dos atos administrativos, são os Tribunais que compõem o pólo passivo dos procedimentos administrativos do CNJ. A apreciação de questões específicas e exceções ficam a cargo desses órgãos, no momento do cumprimento da decisão.
Esse impasse, aliás, já foi discutido no âmbito do STF[7] e deu ensejo a alteração da forma de intimação dos interessados no procedimento administrativo, prevista no novo artigo 94 do Regimento Interno do CNJ.
III – PARTICIPAÇÃO POPULAR:
Alteração igualmente importante e que sinaliza para consolidação de uma identidade com contornos próprios do Conselho é o espaço que a participação popular na administração da Justiça ganhou no novo Regimento.
A democratização da administração da Justiça é uma dimensão essencial da consolidação de um Estado democrático. As reformas que se exige do Poder Judiciário não consistem apenas em alterações processuais ou legais, mas passam, necessariamente, pela reforma da organização judiciária que, na mesma medida, não poderá contribuir para a democratização da Justiça se ela mesma não foi internamente democrática.
Essa certeza trouxe a lume a possibilidade de designação de consultas públicas à população e audiências públicas. Como legitimados a esta iniciativa estão, não só o Relator[8] do procedimento administrativo, como também a Corregedoria Nacional de Justiça[9] e as Comissões[10].
A constituição da política judiciária deve ser incrementada com a maior participação possível do cidadão, em grupos organizados ou até individualmente. Inicialmente, parece que a imediata efetivação destas disposições se dará no âmbito da edição de atos normativos que, até em razão de seu caráter geral e abstrato, comportam discussões que merecem um debate ampliado.
A primeira Consulta Pública aberta após o novo Regimento Interno convoca todos a refletiram a respeito do concurso público para a carreira da magistratura. O impacto que essa espécie de instrumento traz para a divulgação e consolidação do CNJ como um espaço para reflexão de todos e como um órgão aberto ao controle é decisivo para a formação da identidade do órgão.
Importante ressaltar também é a instituição da Ouvidoria como órgão do Conselho Nacional de Justiça. A coordenação coube a um Conselheiro[11] e o Plenário deverá definir suas atribuições posteriormente.
O fortalecimento da Ouvidoria no âmbito do CNJ é, na realidade, comando constitucional. O § 7º do art. 103-A da Constituição Federal de 1988 estabelece a criação de Ouvidorias de Justiça pela União para o recebimento de denuncias de qualquer interessado contra membros ou órgão ou membros do Poder Judiciário.
A independência do Judiciário, atributo que se fortalece com a criação do Conselho Nacional de Justiça foi, por muito tempo, compreendida como independência em relação ao próprio cidadão. Esse equívoco levou ao enclausuramento do Judiciário, seu isolamento na estrutura dos Poderes constituídos. É chegada a hora de se buscar o equilíbrio desta equação. Não se pode admitir a sujeição do Poder Judiciário a qualquer forma de pressão ou manipulação, no entanto, são bem vindas as iniciativas legítimas e razoáveis de participação popular e, assim, a concretização do processo de abertura do Poder Judiciário.
É certo que tal iniciativa não poderá desconfigurar a atribuição de controle de legalidade dos atos administrativos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário. A abertura para a participação de todos tem sentido quando a questão refere-se a regulamentações de atividades, projetos, formulação de políticas, etc. Nas circunstâncias em que a decisão depender da aplicação do direito, de decisões que eventualmente possam contrariar a maioria, o Conselho Nacional de Justiça permanecerá firme no cumprimento de seu dever constitucional.
Ainda como parte desse movimento de abertura do Conselho Nacional de Justiça, tem-se a previsão regimental da conciliação entre as partes. Conquanto a questão seja a regularização de atos administrativos do Poder Judiciário, o instituto poderá ser de grande utilidade nos casos em que há omissão do Poder Judiciário quanto à concretização de obrigações constitucionalmente previstas, a exemplo da abertura de concursos públicos para o ingresso nas atividades notariais e de registro que vem sendo diuturnamente determinada aos Tribunais pátrios.
Trata-se da aplicação ao CNJ das diretrizes que ele mesmo divulga aos Tribunais e temática que inclusive molda campanhas como Conciliar é Legal, campanha que incentiva a utilização da conciliação como forma de resolução de conflitos.
IV – CONCLUSÃO:
Assim, observa-se que o novo Regimento Interno altera não só o texto, mas os rumos da instituição. Após o período de afirmação de legitimidade, é hora de expansão das políticas judiciárias e fortalecimento do poder vinculativo das decisões plenárias.
A partir desse novo texto, firma-se a posição do cidadão que é chamado a se tornar co-construtor da estrutura do Poder Judiciário, com a consolidação da abertura argumentativa, capaz de absorver várias vozes.
Há muito sabemos que texto algum é capaz de salvar o aplicador da difícil tarefa do julgador de aplicar o direito ao caso concreto. Uma nova norma, um novo regimento não tornará a atividade dos membros do Conselho Nacional de Justiça mais fácil ou menos árdua, ninguém estará a salvo do dever de avaliação da concretude da vida e dificuldades do Poder Judiciário. De toda sorte, um texto atualizado não apenas fornece melhores argumentos como enuncia sentidos mais adequados ao novo espírito da Instituição.
[1] Assessoras Jurídicas do Conselho Nacional de Justiça
[2] Art. 6º São atribuições do Presidente, que pode delegá-las, conforme a oportunidade ou conveniência, observadas as disposições legais:
XIV - executar e fazer executar as ordens e deliberações do CNJ;
[3] Art. 104. Cabe à Secretaria-Geral, mediante órgão específico, o acompanhamento do fiel cumprimento dos atos e decisões do CNJ, e à Secretaria da Corregedoria Nacional de Justiça, o das deliberações do Corregedor Nacional de Justiça.
§ 1º A Secretaria-Geral informará o Presidente e o Relator, conforme o caso, permanentemente, sobre os eventos e omissões relacionados com as deliberações do CNJ.
§ 2º A Secretaria-Geral disponibilizará ao público, através do sítio eletrônico do CNJ, planilha atualizada mensalmente indicando o cumprimento ou não, pelos tribunais, dos atos normativos e das decisões do CNJ, separadas por ato decisório e por tribunal.
[4] Art. 105. Comprovada a resistência ao cumprimento da decisão proferida pelo CNJ em mais de 30 dias além do prazo estabelecido, o Plenário, o Presidente ou o Corregedor Nacional de Justiça, de ofício ou por reclamação do interessado, adotará as providências que entenderem cabíveis à sua imediata efetivação, sem prejuízo da instauração do competente procedimento disciplinar contra a autoridade recalcitrante e, quando for o caso, do envio de cópias ao Ministério Público para a adoção das providências pertinentes.
[5] Art. 101. A reclamação para garantia das decisões ou atos normativos poderá ser instaurada de ofício ou mediante provocação, sendo submetida ao Presidente do CNJ.
Parágrafo único. O requerimento deverá ser instruído com cópia da decisão atacada e referência expressa ao ato ou decisão do Plenário cuja autoridade se deva preservar, sob pena de indeferimento liminar.
[6] A reclamação perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça possui previsão constitucional (artigos 102, I, “l” e 105, I, “f”, da CF), legal (artigos 13 a 18 da Lei n.º 8.038 de 28 de maio de 1990) e regimental (artigos156 a 162 do RISTF e 187 a 192 do RISTJ).
[7] MS 25962 Relator Ministro Marco Aurélio
[8] Art. 26. O Relator poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública ou designar audiência pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para o interessado.
§ 1º A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os autos, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas.
§ 2º [...]
[9] Art. 50. A inspeção será realizada independentemente de convocação ou comunicação prévia, com ou sem a presença das autoridades responsáveis pelos órgãos inspecionados, podendo colher-se a manifestação de interessados e outras autoridades que terão direito a prestar esclarecimentos e fazer observações que reputem de interesse para os fins da inspeção.
Parágrafo único. Sempre que as circunstâncias não recomendem o contrário, a realização da inspeção poderá contar com a realização de audiência pública comunicada à autoridade responsável pelo órgão com antecedência mínima de vinte e quatro (24) horas.
[10] Art. 28. As Comissões serão constituídas na forma e com as atribuições previstas no ato de que resultar a sua criação, cabendo-lhes, entre outras, as seguintes atribuições:
I [...]
II - realizar audiências públicas com órgãos públicos, entidades da sociedade civil ou especialistas;
[11] Art. 41. A Ouvidoria do CNJ será coordenada por um Conselheiro, eleito pela maioria do Plenário.
Criado em 31 de dezembro de 2004, o CNJ está situado no Anexo I do STF, e suas principais competências estão estabelecidas no artigo 103-B da Constituição, e regulamentadas em seu próprio regimento interno. São elas: 1) zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, expedindo atos normativos e recomendações; 2) Definir o planejamento estratégico, os planos de metas e os programas de avaliação institucional do Poder Judiciário; 3) Receber reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados; 4) Julgar processos disciplinares, assegurada ampla defesa, podendo determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, e aplicar outras sanções administrativas; 5) Elaborar e publicar semestralmente relatório estatístico sobre movimentação processual e outros indicadores pertinentes à atividade jurisdicional em todo o país. Home page: www.cnj.jus.br.<br>
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