Co autora: DANIELLE COSTA MENDONCA: Servidora Pública Estadual. Graduada Pela Universidade Tiradentes. Pós Graduada em Direito Privado e Ciências Criminais pela Universidade Gama Filho/RJ.
RESUMO: Examina a consonância do regime disciplinar diferenciado, instituído pela Lei 10.792/03, com o princípio da humanização das penas, previsto na Constituição Federal de 1988 e nos mais diversos pactos e tratados universais sobre direitos humanos que o Brasil é signatário. Conclui que a postura imediatista de nossos legisladores ao elaborar leis, penas e execuções demasiadamente severas, além da construção de presídios com disciplina degradantes fere a dignidade humana e principalmente o princípio da humanidade das penas, sendo necessária a declaração da inconstitucionalidade da Lei 10.792/03 face ao confronto com a Constituição Federal.
ABSTRACT: It examines the accord of the regimen to discipline differentiated, instituted for Law 10,792/03, with the principle of the humanization of the penalties, foreseen in the Federal Constitution of 1988 and the most diverse universal treated pacts and on human rights that Brazil is signatory. It concludes that the immediate position of our legislators when elaborating so much severe laws, penalties and executions, beyond penitentiaries with degrating discipline wounds the dignity mainly human being and the constitutional principle of the humanity of the penalties, being necessary the declaration of the unconstitutionality of 10,792/03 Law face to the confrontation with the Federal Constitution.
PALAVRAS-CHAVE: humanização; pena; crueldade.
INTRODUÇÃO
O Regime Disciplinar Diferenciado desde a sua edição em 2003 vem causando polêmica quanto a sua constitucionalidade. Entender que tal regime está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana é ignorar o conteúdo do direito penal brasileiro.
Criou-se um novo instituto como tentativa desesperada de conter a criminalidade na sociedade como um todo, contudo, esta visão de totalidade não foi considerada quando da violação dos direitos de alguns visando à harmonia de outros.
Este estudo dedica-se a reflexão do art. 53, V da Lei de Execução Penal e sua coerência com o princípio da humanidade das penas pregado por nossa Carta Magna em seu art. 5º, inciso XLIX.
Visa esclarecer e tornar acessível aos estudantes e aplicadores do direito a incompatibilidade existente entre o RDD e o direito civil e constitucional de ser tratado humanamente quando da perda do status libertatis.
Apresenta relevância por demonstrar o quanto a ausência de respeito aos presos, de tratamentos médicos adequados, de atividades produtivas dentro dos presídios e a superlotação desencadeiam processos irreversíveis de vingança naqueles que estão temporariamente privados de alguns direitos elementares.
Inicialmente, definimos pena como a resposta estatal fornecida pelo Poder Judiciário ao autor de uma infração penal, levando-se em consideração o devido processo legal. Sempre que o indivíduo comete um fato considerado pela Lei Penal como típico, antijurídico e culpável, cabe ao Estado utilizar-se do seu direito de punir. René Ariel Dotti (2003, p.433) enfatiza ainda: “A pena criminal é sanção imposta pelo Estado e consistente na perda ou restrição de bens jurídicos do autor da infração, em retribuição à sua conduta e para prevenir novos ilícitos”.
De acordo com o nosso Código Penal, no artigo 59, as penas devem ser necessárias e suficientes para a reprovação e prevenção do crime, isto significa que toda e qualquer sanção deve possuir uma dupla finalidade, qual seja, a prevenção, que caracteriza-se pela coação psicológica, ou seja, a sociedade fica intimidada com a ameaça de imposição ou execução de uma pena, e pela intimidação daquele que já delinqüiu para que não torne a fazê-lo.
No que tange a segunda finalidade, a reprovação encontra sentido no caráter retributivo da pena, que nada mais é do que punir o mal com o mal, através dela, o delinqüente é punido com um castigo proporcional ao delito que cometeu. Esta é a função da pena que mais satisfaz a sociedade, principalmente quando a pena é privativa de liberdade, pois o senso comum não acredita que houve justiça quando o criminoso recebe uma sanção de multa, por exemplo.
A prisão objetiva não só castigar, mas também recuperar o criminoso até que este seja devolvido ao convívio social, contudo, a ressocialização tornou-se quase uma utopia em face da crise que passa os presídios e delegacias deste país. O descompasso encontra-se no fato que os valores que um condenado convive diariamente são opostos aos que ele deverá respeitar ao cumprir sua pena e voltar para o seio da sociedade.
Baseado no fato que mesmo depois de encarcerados nos grandes e médios presídios, os chefões do tráfico e das grandes organizações criminosas, como por exemplo, Fernandinho Beira-Mar, continuavam a controlar a distribuição de drogas, encomendar chacinas e dirigir favelas e com a morte de dois juízes no mês de março de 2003, foi que o Governo, em 1º de dezembro de 2003, criou a lei federal nº 10.792.
A Lei 10.792 de 2003 é fruto de experiência anterior, descende do RDD criado no âmbito da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, cuja ilegalidade e violação à Constituição Federal também era patente. O Governo Federal tentou aprovar o Regime Diferenciado através de Medida Provisória, no entanto, foi por meio de vastos debates parlamentares na Câmara dos Deputados e depois no Senado Federal que essa mancha constitucional foi aprovada e passou a ter força de lei.
A Lei 10.792 de 2003 introduziu uma alteração na Lei 7.210 de 1984, Lei de Execução Penal, e no Decreto-Lei nº 3.689 de 1941, Código de Processo Penal. A LEP já garantia a disciplina do preso que se encontrava em estabelecimento de segurança máxima ou média através do isolamento na própria cela, a critério do diretor do presídio. O art. 53. IV cuida de uma conseqüência penal severa ao que cometa o que hoje se denomina falta grave ou indisciplina. Como podemos ver: “Constituem sanções disciplinares: (...) IV - isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no Art. 88 desta Lei” (BRASIL, 1984).
O Regime instituído em 2003 através de Lei Federal 10.792 culminou na modificação do art. 52 da Lei de Execuções Penais que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplinas internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.
§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (BRASIL, 1984).
O rigor do novo regime é considerado até bárbaro por muitos, pois o RDD representa um endurecimento na forma de cumprimento de penas. O isolamento social, a falta de contato com outros presos ou de interação familiar e o desrespeito ao direito à informação não condizem com o Estado Democrático de Direito e com o respeito aos direitos inerentes a todo e qualquer ser humano. Conforme lição de Rogério Greco ao estudar a Constituição Federal de 1988:
Percebe-se, portanto, a preocupação do legislador constituinte em conceder um status normativo ao princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo-o como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (GRECO, In: Schmitt, 2007, p. 93).
O novo regime permite que o preso fique isolado de qualquer convívio por 22 horas dentro de uma unidade celular, ou seja, apenas tem acesso a banho de sol por duas horas, lembrando que alguns presídios criaram uma forma do detento receber a luz solar dentro da própria cela. Mesmo recebendo assistência psicológica e médica, a higidez mental de qualquer indivíduo que é separado do mundo fica comprometida.
Manter um indivíduo isolado em uma cela por 360 dias, 720 ou até um sexto da pena (no Brasil as penas podem chegar até 30 anos) não gera ressocialização. De um regime que limita o mundo físico de um sujeito de direitos a 3X2 metros podemos esperar apenas que o preso saia pior do que entrou, mais revoltado com a sociedade e em busca de vingança pelo mal que o Estado lhe causou.
As situações que justificam o RDD são três, a primeira ocorre quando o detento é acusado pela prática de fato definido como crime doloso, que também é considerado como falta grave, que ocasione a subversão da ordem ou disciplinas internas. A segunda hipótese se dá quando o preso apresenta alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento prisional e da própria sociedade e por último, quando houver fundadas suspeitas que o detento esteja envolvido ou participa, a qualquer título, de organização criminosa, quadrilha ou bando.
Das três hipóteses de decretação do RDD, a primeira trabalha com um critério objetivo que a primeira hipótese supracitada, contudo, dizer que o Regime Disciplinar Diferenciado pode ser decretado em desfavor do interno que apresente alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento prisional é não dizer significativamente nada. O critério utilizado é absolutamente aberto e sugere várias interpretações.
No mesmo contexto está a hipótese de haver fundada suspeita que o sentenciado pertença à organização criminosa, quadrilha ou bando. Qual o significado de fundada suspeita? Seria a delação de outro interno ou seria o olhar “clínico” da autoridade administrativa ou do diretor do presídio? Aqui, a violação ao princípio da legalidade é patente, basta analisarmos o inciso XXXIX, do art. 5º da Constituição Federal, ad litteram: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988) para percebemos que uma norma penal imprecisa foi criada e conseqüentemente a insegurança jurídica que gera injustiças está implantada no ordenamento.
Também pode ser considerada uma afronta ao princípio da legalidade as expressões “a qualquer título”, “organizações criminosas” e “autoridade administrativa”. Estaria incluída na participação da organização criminosa a mãe do detento que lhe leva alimentos? Organizações criminosas não são definidas em legislações nem a Lei 10.792 explica quem é a autoridade administrativa que pode requerer a inclusão no Regime Disciplinar. Poderíamos apontar um Secretário Municipal como autoridade administrativa? O RDD prima pela falta de técnica e por expressões amplas que geram falta de segurança jurídica.
Além de ir de encontro ao princípio da reserva legal, o RDD também afronta o princípio da individualização das penas, pois pode ser decretado em desfavor do autor do crime hediondo ou não, apenado com reclusão ou, em algumas situações excepcional crime apenado com detenção. O sujeito pode regredir da reclusão para a detenção e ter o RDD decretado em seu desfavor. A legislação visou punir o fato delitógeno e não o autor do delito.
Colocar uma pessoa no interior de uma cela sem nenhum contato com o mundo exterior, com banho de sol de apenas duas horas, sendo que muitas vezes não é necessário sair da cela para que isto ocorra, ferir a higidez mental do condenado é, no mínimo, desumano e fere inúmeros Tratados Internacionais, dentre eles o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, como se nota:
Art. 10 do Pacto, 1 – Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana; (...) 3 – O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros. Art. 5º da Convenção - Direito a integridade pessoal; 1 – Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moram (BRASIL, 1992).
O aspecto humano das penas pode ser apreciado em três oportunidades no art. 5º da Constituição Federal de 1988, inciso XLIX, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, na proibição no inciso XLVII de “penas de morte (salvo nos casos de guerra declarada nos termos do art. 84, XIX), de rigor perpétuo, penas de trabalhos forçados, de banimento e penas cruéis” e no inciso III, “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988).
Olhar o Direito Penal pela via humanitária significa que a pena imposta ao individuo é produto dos interesses humanos e seus destinatários são os próprios seres humanos. O princípio da humanidade repele a tortura, maus tratos, atrocidade, crueldade ou qualquer desvario punitivo que viole a dignidade da pessoa humana.
Cesare Beccaria (2003, p.51) em sua obra Dos Delitos e das Penas, tece uma consideração interessante, “[...] Nenhum tormento pode ir além do ultimo grau da força humana, limitada pela sensibilidade e a organização do corpo do homem. Ultrapassando esses limites, se parecem crimes mais hediondos”, Não podemos admitir um Direito que ignore barbáries e desproporções ao penalizar um homem que cometeu delitos contra a sociedade. Penas que desrespeitam o caráter humano, a vida e a dignidade violam a visão humanitária que devemos ter do Direito Penal.
Hoje, percebe-se uma preocupação por parte da maioria dos países com proteger a integridade física e mental dos encarcerados lhes garantido dignidade, contudo, o sistema de penas, não caminha no mesmo sentido. A punição com penas de morte, a superlotação dos presídios, espancamentos, obstáculos ao recebimento de visitas, isolamento e inexistência de programas de ressocialização são exemplos do desrespeito dos países que se dizem desenvolvidos e do Estado brasileiro com os condenados.
Não pregamos aqui a impunidade ou a injustiça, pelo contrario, o criminoso deve responder pelos seus ilícitos, porém, sem se distanciar do olhar humanitário do Direito Penal utilizando-se sempre que possível de multas, prestação social alternativa, restrição de liberdade, perda de bens, suspensão ou interdição de direitos, afim de que haja recuperação do individuo.
3 CONCLUSÃO
Concluiu-se que o regime aqui estudado retoma as antigas solitárias, os legisladores, ao elaborá-lo, não pensaram na importância da convivência familiar para a recuperação do preso, limitaram as visitas a apenas duas pessoas, fora as crianças, a cada sete dias.
No que tange a duração do RDD de 360 ou 720 dias ou um sexto da pena constata-se que não coaduna com o artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e” da Constituição Federal, que assegura a não-crueldade das penas, visto que, deixou-se de punir o condenado com a privação da liberdade para penalizá-lo com uma prisão extrema de desesperança e depressão.
Neste sentido, percebe-se que o RDD foi a forma que a Administração Pública encontrou para maquiar sua incapacidade de gerir o problema da violência e do crime organizado. Passou-se a violar o direito individual do preso de ser tratado humanamente e o direito difuso da sociedade de ver a atividade estatal direcionada ao atendimento dos anseios gerais da população.
Enfim, conclui-se que o Regime Disciplinar Diferenciado macula flagrantemente o direito básico de todo condenado de ser tratado humanamente quando do cumprimento da pena privativa de liberdade, seja pelo desrespeito as condições mínimas de vida nos estabelecimentos penais, seja através do desgaste físico e psicológico promovido nos presídios com unidades para cumprimento do regime.
Assim sendo, diante da problemática exposta, do confronto das normas estabelecidas na Constituição Federal com a regra instituída em 2003, pela Lei 10.792 relativa ao Regime Disciplinar Diferenciado, entende-se que este não pode ser considerado a panacéia para o fenômeno social crime, devendo ser declarado inconstitucional pelos Tribunais deste país.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2003
BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em: 01 de setembro de 2010.
BRASIL. Vade Mecum. Organização de PINTO Antonio Luiz de Toledo; WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos; CÉSPEDES, Livia. 6ª. ed., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.
DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. O Regime Disciplinar Diferenciado é Constitucional? O Legislador, o Judiciário e a Caixa de Pandora. Disponível em: . Acesso em 07 de setembro de 2010.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.
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