1. INTRODUÇÃO
A Constituição é a norma fundamental do Estado, reguladora de todo ordenamento jurídico (MARQUES, 1993, p. 13), devendo ser entendida como reflexo da vontade da sociedade, pois é ela quem vai estabelecer como o Estado deverá se portar frente aos anseios do povo, garantindo o livre exercício de seus direitos. Tudo isto, claro, tomando por base uma Constituição Democrática, onde, efetivamente, se teve a participação da sociedade em sua elaboração através de um Poder Constituinte Originário.
Segundo José Afonso da Silva a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, adotando uma “nova idéia de direito”, pretende um Estado Democrático de Direito e uma Sociedade livre, justa e solidária. Isto se deve ao fato do nosso constituinte ter optado por uma Constituição abrangente, assumindo características de uma constituição-dirigente, definindo fins e programas de ações futuras, tendo sido minuciosa em vários aspectos, preservando conquistas liberais sem, contudo, abandonar um plano de evolução política de conteúdo social. Assim, está aberta a transformações futuras na medida em que seja cumprida (SILVA, 2006, p.5-6).
É através desta Constituição que as alterações ocorridas na vida social serão introduzidas dentro do ordenamento jurídico de um Estado, através de mecanismos criados neste intuito, como é o caso dos mecanismos formais, previstos expressamente no corpo constitucional, a exemplo do procedimento de elaboração das emendas constitucionais, podendo ocorrer, também, através de mecanismos informais de alteração, ou seja, aqueles que não estão expressos na Constituição, mas por ela permitida, como é o caso da mutação constitucional.
2. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
A realidade constitucional demonstra que mesmo as Constituições escritas e rígidas sofrem outros tipos de mudanças não advindas de mecanismos qualificados e mais dificultosos de alteração, tais como os mecanismos de reforma constitucional. Em muitos casos, sem qualquer alteração no texto, as Constituições assumem significados novos, advindos da evolução dos hábitos, costumes e valores da sociedade dinâmica, inovações tecnológicas, práticas políticas e atuação de grupos de pressão, os quais possibilitam contínuas e paulatinas alterações de sentido, significado e alcance da norma constitucional.
Sensível a este fenômeno, Karl Loewenstein (1965, p. 216) fala em mudanças imperceptíveis sofridas pela norma por influência do ambiente político ou dos costumes. Esta alteração das normas constitucionais distinta dos mecanismos de reforma constitucional também foi identificada por J.H. Meirelles Teixeira (1991, p. 72), o qual afirma ser equivocada, e até mesmo ingênua, a idéia de que as Constituições rígidas somente poderiam ser alteradas pelos procedimentos expressos e previamente estabelecidos no próprio texto constitucional.
Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 57) define mutação constitucional como um processo informal de mudança da Constituição que atribui às normas constitucionais, através das diversas modalidades e técnicas de interpretação, sentidos ou conteúdos ainda não ressaltados à letra da Lei Maior.
Carmem Lúcia Antunes Rocha (s.d., p. 164) entende por mutações constitucionais as mudanças informais introduzidas no sistema normativo fundamental e cujo aperfeiçoamento não é obra da competência reformadora formal prevista no texto constitucional, considerando as mutações constitucionais como permanentes e informais, ao passo em que as reformas são tidas como intermitentes e formais.
As mutações constitucionais foram identificadas primeiramente pelos autores alemães do final do século XIX, sendo depois estudado nos demais países da Europa, tais como Espanha e Portugal, e também nos países da América Latina, em especial o México, a Venezuela e o Brasil (KUBLISCKAS, 2009, p. 70).
Autores como George Jellinek, o chinês Hsü-Dau-Lin e Karl Loewenstein (apud Kublisckas, 2009, p. 70-72) em muito contribuíram no estudo do fenômeno mutacional. Estes autores adotavam um conceito amplo e genérico de mutação constitucional, descrevendo-a como uma situação de discrepância entre a Constituição e a realidade constitucional. Referindo-se a tal conceituação, Susana Sbrogio’galia (2007, p. 93), afirma que:
As mutações constitucionais são conceituadas como a contraposição produzida, nas Constituições escritas, em relação à situação real. Incongruência entre as normas constitucionais e a realidade constitucional. O fundamento deste fenômeno repousa na natureza vital e dinâmica do Estado, que faz com que as normas constitucionais se demonstrem incompletas.
Esta conceituação ampla sofreu diversas críticas por parte da doutrina. Ana Victória Sánchez Urrutia afirma que tal definição “não permite estabelecer diferenças entre o desenvolvimento constitucional, a mudança informal da Constituição e a transgressão e negação da Constituição” (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 76), sendo incompatível com as Constituições rígidas, haja vista que estas são colocadas “num estado de eventual flexibilidade para se adaptar sem deformações maliciosas e sem subversões traumatizantes às mutações da vida dos povos”, debilitando o sentido normativo da Constituição porquanto destrói sua função racionalizadora, estabilizadora e limitadora do poder assumido pela Constituição rígida (SILVA, 2007, p. 284).
Insta ressaltar que o conceito amplo de mutação constitucional foi construído pela doutrina tradicional quando ainda não havia a consolidação plena, na Europa continental, dos mecanismos de controle de constitucionalidade capazes de assegurar a supremacia e a normatividade da Constituição. Assim, com o fortalecimento destes mecanismos, a doutrina, seguindo os ensinamentos de Konrad Hesse e Friedrich Müller, passou a adotar um conceito restrito de mutação constitucional.
O conceito restrito de mutação constitucional permite entendê-la como um fenômeno legítimo de evolução constitucional desde que realizado dentro de determinados limites impostos pela ordem constitucional, conforme salienta Ana Victoria Sánchez Urrutia (apud KUBLISCKAS, 2009, p. 77):
A mutação constitucional é uma forma de evolução das Constituições que deve se ater a certos limites. A mutação constitucional é um fenômeno resultante do caráter elástico das Constituições e deve ser considerado como um componente do moderno conceito de Constituição, sempre limitado pela ordem constitucional como um todo. Uma modificação informal da Constituição nunca pode destruir as bases sobre as quais se assenta o Estado constitucional [...].
Neste sentido, entendemos as normas constitucionais como resultado da combinação entre o programa normativo (o texto da norma), de significado fixo, e o âmbito normativo (a realidade que se pretende normatizar), sempre em evolução, surgem, a depender do caso concreto, alternativas de aplicação da norma constitucional. Quando estas alternativas são comportadas pelo programa normativo, são constitucionais; quando não comportadas, são inconstitucionais. As mutações constitucionais seriam as alterações ocorridas no âmbito normativo, gerando uma nova alternativa de aplicação da norma, e comportadas pelo programa normativo (KUBLISCKAS, 2009, p. 72).
José Afonso da Silva (2007, p. 283), fazendo referência ao princípio da vinculação da Constituição, o qual sujeita todos às suas normas, afirma que só se pode aceitar validamente o fenômeno das mutações constitucionais com base em seu conceito restrito. Segundo o autor, somente podem ser consideradas válidas as mutações que, direta ou implicitamente, sejam acolhidas pela Lei Maior. Do contrário, se uma conduta ou prática política não coincide com a Constituição, estando à margem de suas normas, não se trata de forma de mutação constitucional, mas de uma forma de desrespeito ou de fraude à Constituição.
Anna Cândida da Cunha Ferraz (1989, p. 10-11), escrevendo sobre o assunto, também adota o conceito restrito na medida em que entende por mutação constitucional todos os processos não formalmente previstos que alterem ou modifiquem o sentido, o significado e o alcance da Constituição sem contrariá-la.
No mesmo entendimento, Uadi Lammêgo Bulos (2000, p. 22) descreve mutação constitucional como sendo:
O processo informal de mudança da constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da constituição, quer através da interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção (construction), bem como dos usos e dos costumes constitucionais.
3. CONCLUSÃO
Desta forma, temos por mutação constitucional o fenômeno por meio do qual se operam alterações de sentido, significado e alcance das normas constitucionais decorrentes de um procedimento diverso daquele formalmente previsto, por meio da interpretação e obedecendo aos princípios e regras constitucionais, ou seja, atrelado aos limites impostos pela constituição.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
______. Constituição Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad, 1986.
______. Mutação, reforma e revisão das normas constitucionais. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: revista dos Tribunais, ano 2, nº 5, out./dez. 1993.
KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da constituição federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo G. Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1965.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Mudança: limites ao exercício do poder de reforma constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, nº 120. p. 164.
SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações constitucionais e direitos fundamentais. Porto Alegre? Livraria do Advogado, 2007.
SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular. 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe - UFS. Pós-graduando em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Social da Bahia. Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMOR, Athos Brito do. A mutação constitucional como processo informal de alteração da Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2010, 09:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21862/a-mutacao-constitucional-como-processo-informal-de-alteracao-da-constituicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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