A promulgação da Lei Maria da Penha foi fruto de um fato violento praticado contra uma mulher, fazendo emergir a necessidade de se regulamentar os crimes de violência perpetrados no seio doméstico ou familiar contra o gênero feminino.
Descendo a detalhes, o motivo que levou a Lei 11.340/06 a ser cognominada “Maria da Penha” remonta ao ano de de 1983, na cidade de Fortaleza, quando a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi alvejada pelo seu então marido, fato este que lhe rendeu lesões na coluna, tornando-a paraplégica.
A Lei tem como fim precípuo a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Insta salientar observação levada a efeito por Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, ad litteram:
“Não queremos deduzir, com isso, que apenas a mulher é potencial vítima de violência doméstica. Também o homem pode sê-lo, conforme se depreende da redação do §9º do art. 129 do CP, que não restringiu o sujeito passivo, abrangendo ambos os sexos. O que a lei em comento limita são as medidas de assistência e proteção, estas sim aplicáveis somente à ofendida (vítima mulher)”. (2008, p. 30).
Insta salientar que a proteção ao gênero feminino não reside, unicamente, em âmbito infraconstitucional. O princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III, da Carta Magna, resultou em uma mudança de perspectiva no Direito de Família, vislumbrando-se a entidade familiar como uma comunidade de entreajuda, e não estritamente com valor patrimonial.
De mais a mais, o § 8º do artigo 226 da Carta da República significou uma revolução jurídica no combate à violência familiar, in verbis: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Sucede que, antes de ser promulgada a Lei ora em comento, aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher incidia o procedimento previsto na Lei 9.099/95. E este diploma legislativa revelou-se, a toda evidência, incapaz de prevenir e punir os agressores nos casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
A maioria dos casos que chegavam aos Juizados Especiais eram resolvidos com o pagamento de cestas básicas a entidades beneficentes cadastradas nos Juizados, sem que se procedesse a um efetivo cumprimento dos verdadeiros objetivos da sanção penal, quais sejam, prevenção e repressão, nos termos do sistema adotado no Brasil.
A agravar a situação de impunidade estava o fato de aos crimes de menor potencial ofensivo não se submeter o infrator à prisão em flagrante ou à prisão preventiva, na trilha da inteligência do art. 69 da Lei 9.099/95.
Insta transcrever trecho do artigo publicado no Boletim da Agência Carta Maior, em 21/06/05, por Flávia Piovesan, que deixa clara a inadequação dos juizados para tratar da violência contra a mulher, quando salienta que:
"o grau de ineficácia da referida lei revela o paradoxo do Estado: romper com a clássica dicotomia público-privado, de forma a dar visibilidade a violações que ocorrem no domínio privado, para, então, devolvê-las a este mesmo domínio, sob o manto da banalização, em que o agressor é condenado a pagar à vítima uma cesta básica ou meio fogão ou meia geladeira...Os casos de violência contra a mulher ora são vistos como mera ‘querela doméstica’, ora como reflexo de ato de ‘vingança ou implicância da vítima’, ora decorrentes da culpabilidade da própria vítima, no perverso jogo de que a mulher teria merecido, por seu comportamento, a resposta violenta. Isto culmina com a conseqüente falta de credibilidade no
aparato da justiça. No Brasil, apenas 2% dos acusados em casos de violência contra a mulher são condenados" (Violência contramulher: um escândalo!).
Dessarte, inadequado o sistema adotado pela Lei 9.099/95, incapaz de punir o agressor e oferecer proteção e amparo à mulher vítima de violência doméstica ou familiar.
Faz-se necessário, ainda, delimitar o alcance da norma constante do artigo 41 da Lei Maria da Penha, assim previsto: "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995".
A expressão "não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995" deve cingir-se aos seus institutos despenalizadores, como composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. Há quem entenda, todavia, que a expressão abarca todas as normas plasmadas naquela lei, dentre elas, a que torna a ação pública dos crimes de lesão corporal leve condicionada à representação (artigo 88).
A segunda corrente, qual seja, ampliativa, preconiza que nenhum dispositivo da Lei 9.099/95 pode ser aplicado aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, valendo-se do método de interpretação literal.
O Superior Tribunal de Justiça filiou-se, inicialmente, à corrente ampliativa, vedando a aplicação, in integrum, da Lei 9.099 aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse sentido:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA.
1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, 42 criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República).
2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.
3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal.
4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006).
5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada.
6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima.
7. Ordem denegada.
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL LEVE PRATICADA COM VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A MULHER. INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 E, COM ISSO, DE SEU ART. 88, QUE DISPÕE SER CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO O REFERIDO CRIME. AUSÊNCIA DE NULIDADE NA NÃO-DESIGNAÇÃO DA AUDIÊNCIA PREVISTA NO ART. 16 DA LEI MARIA DA PENHA, CUJO ÚNICO PROPÓSITO É A RETRATAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO. PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.
1. Esta Corte, interpretando o art. 41 da Lei 11.340/06, que dispõe não serem aplicáveis aos crimes nela previstos a Lei dos Juizados Especiais, já resolveu que a averiguação da lesão corporal de natureza leve praticada com violência 43 doméstica e familiar contra a mulher independe de representação. Para esse delito, a Ação Penal é incondicionada (REsp. 1.050.276/DF, Rel. Min. JANE SILVA, DJU 24.11.08).
2. Se está na Lei 9.099/90, que regula os Juizados Especiais, a previsão de que dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais e lesões culposas (art. 88) e a Lei Maria da Penha afasta a incidência desse diploma despenalizante, inviável a pretensão de aplicação daquela regra aos crimes cometidos sob a égide desta Lei.
3. Ante a inexistência da representação como condição de procedibilidade da ação penal em que se apura lesão corporal de natureza leve, não há como cogitar qualquer nulidade decorrente da não realização da audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/06, cujo único propósito é a retratação.
4. Ordem denegada, em que pese o parecer ministerial em contrário.
Entretanto, o próprio Superior Tribunal de Justiça reviu sua posição em 5/3/2009 entendendo hígida a regra constante do artigo 88 da Lei 9.099/95 em relação aos crimes envolvendo violência doméstica ou familiar contra a mulher, cujos fundamentos serão objeto de estudo no tópico seguinte.
Não obstante, em órgãos fracionários de alguns Tribunais estaduais ainda remanesce a tese ampliativa, como ocorre nos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, dentre outros.
De outra banda, a primeira corrente mencionada, chamada restritiva, aviva que a limitação contida no artigo 41 da Lei 11.340/2006 refere-se, exclusivamente, aos institutos despenalizadores dessa lei.
Assim, os doutrinadores que se filiam à corrente restritiva, persevera, inclusive para os delitos perpetrados no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, a natureza da ação pública condicionada à representação os crimes de lesão corporal leve.
Infere-se, pois, e consoante propugnado pela doutrina majoritária, que essa corrente dá ênfase aos métodos sistemático, e teleológico, rechaçando o meramente literal adotado pelos adeptos da Teoria Ampliativa supracitada.
Ao revés do que perfilhado pela corrente ampliativa, a mens legis seria no sentido de afastar do âmbito de sua aplicação tão-somente o procedimento especial da Lei dos Juizados Especiais e a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo.
Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça enquadrou o seu entendimento ao perfilhado pela corrente restritiva, no sentido de vedar-se, puramente, a incidência dos institutos despenalizadores nos casos abarcados pela Lei 11.340/06, e confirmando a natureza da ação penal condicionada à representação, quando trata-se de casos de lesão leve.
Vide, pois, os seguintes informativos de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
REPETITIVO. LEI MARIA DA PENHA. Informativo 0424 de fevereiro de 2010
A Seção, ao julgar recurso sob o regime do art. 543-C do CPC c/c a Res. n. 8/2008-STJ, firmou, por maioria, o entendimento de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), pois se cuida de uma ação pública condicionada (…) . REsp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010.
LEI MARIA DA PENHA. REPRESENTAÇÃO. Informativo 0385 de março de 2009.
A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, mudando o entendimento quanto à representação prevista no art. 16 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Considerou que, se a vítima só pode retratar-se da representação perante o juiz, a ação penal é condicionada. Ademais, a dispensa de representação significa que a ação penal teria prosseguimento e impediria a reconciliação de muitos casais. HC 113.608-MG, Rel. originário Min. Og Fernandes, Rel. para acórdão Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 5/3/2009.
CONCLUSÃO:
Reputar como como incondicionada a ação penal relativa a violência leve contra a mulher, no âmbito doméstico, na esteira do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar.
Não há como prosseguir uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas. Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. São Paulo: RT, 2007.
FONSECA, Tiago Abud da; Souza, João Paulo de Aguiar Sampaio. A aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Boletim do IBBCCrim, n 168, nov.. 2006, p. 4.
SANCHES, Rogério Cunha; Pinto, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) Comentada artigo por artigo.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Daniela Protásio dos. A violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2010, 08:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21950/a-violencia-contra-a-mulher-e-a-lei-maria-da-penha. Acesso em: 23 dez 2024.
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