RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise de alguns dos princípios constitucionais aplicáveis ao Tribunal do Júri, assim como de sua função constitucional de direito e garantia individual, por conceder ao povo o poder de julgar seus semelhantes, de acordo com sua íntima convicção, consolidando, por fim, a relevância desse instituto para a sociedade e para a concretização da Justiça Social.
PALAVRAS CHAVE: Constituição;Júri;Princípios;Função.
1. Introdução
Teoricamente, o Tribunal do Júri é a possibilidade legal dada aos integrantes da sociedade para que julguem de acordo com os valores constitutivos da consciência de determinada coletividade, na apreciação de crimes de maior potencial ofensivo, sob a presidência de um Juiz de Direito.
Oportuno se torna dizer que o júri é um órgão que exerce função jurisdicional sem ser composto por juízes de carreira, ou mesmo, por especialistas em direito, uma prerrogativa democrática do cidadão, uma fórmula do próprio povo distribuir Justiça sem recorrer às normas jurídicas, que, por sua grande generalidade e abstração, não conseguem prever todos os aspectos que envolvem a prática do ato criminoso. E só a Justiça do caso concreto pode contornar essa falha da norma jurídica (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 2001:230).
No dizer sempre expressivo de Fernando da Costa Tourinho Filho:
O Júri, entre nós, é um tribunal formado de um Juiz togado, que o preside, e de 21 jurados, que se sortearão dentre os alistados, dos quais 7 constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento. É um órgão especial de primeiro grau da Justiça Comum Estadual e Federal, colegiado, heterogêneo e temporário. Heterogêneo, porque constituído de pessoas das mais diversas camadas da sociedade, sendo presidido por um Juiz togado; temporário, porque pode não se reunir todos os dias ou todos os meses. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 2002:596)
Indubitável é que a categoria de crimes dolosos contra a vida: homicídio, infanticídio, aborto e instigação ao suicídio não obedecem à regra geral de julgamento por juízes togados, sendo os autores de tais crimes submetidos ao Júri Popular e julgados por membros da comunidade, entendendo-se que, por serem crimes extremamente graves e, muitas vezes, resultantes de situações peculiares, devem ter tratamento especial (ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus.2003:119).
Posto isso, a possibilidade de entregar a leigos o poder de julgamento e, principalmente, de deliberação sobre a liberdade do criminoso é, indubitavelmente, de difícil compreensão em um Estado Democrático de Direito, em que o poder de julgamento pertence, em regra, ao Estado. Entretanto, o legislador constituinte entendeu que assim seria alcançada a verdadeira Justiça, configurando-se, portanto, uma exceção aberta pela lei.
2. Princípios Constitucionais
O Tribunal do Júri, como visto, é uma instituição reconhecida pela Constituição Federal de 1988, que delegou a disciplina sobre sua organização ao Código de Processo Penal, assegurando-lhe, porém, preceitos de observância obrigatória, quais sejam: a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Por conseguinte, o júri envolve diversos direitos, princípios e garantias constitucionais de grande importância, como os direitos à vida, à liberdade, os princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da publicidade, da fundamentação e da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.
O direito à vida é assegurado no art. 5°, caput da Constituição Federal, constituindo a fonte primária para a existência e o exercício de todos os demais direitos, sendo que a ninguém é dado o direito de dispor da vida de outrem. Logo, como a vida humana é o bem jurídico mais importante, recebe uma valoração maior por parte do Estado, que estabelece punição mais rigorosa para os crimes cometidos contra referido direito, submetendo os sujeitos ativos de tais delitos ao julgamento popular.
Também, o direito à liberdade é garantido pelo art. 5°, caput da Constituição Federal, porém esta prevê, em caráter excepcional, hipóteses de supressão de tal direito, como nos casos de flagrante delito e de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Ademais, as normas penais restringem a liberdade do indivíduo, sendo fundamentais para a convivência harmoniosa entre os membros da sociedade e, no julgamento do Tribunal Popular, incumbe aos jurados, ou seja, a pessoas leigas, o poder de deliberar sobre a liberdade do criminoso.
O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se no art. 1°, III da Constituição Federal, de tal sorte que o processo não pode ser um instrumento de opressão do indivíduo, o que é proibido pelo Estado Democrático de Direito.
Mister se faz ressaltar o que dispõe Alexandre de Moraes acerca desse princípio:
[…] O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria […] (MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 1997:60/61)
Segundo o princípio da isonomia, consignado no art. 5°, caput da Constituição Federal, deve ser conferido às partes um tratamento processual isonômico, vedando-se a concessão de privilégios a uma das partes, em detrimento da outra, e as discriminações arbitrárias, posto que o tratamento desigual dos desiguais, na medida em que se desigualam, é decorrente do próprio preceito constitucional, para que se possa alcançar a Justiça.
Por tais razões, sobredito princípio está presente no Tribunal do Júri, uma vez que, como a Constituição brasileira proíbe todas as formas de preconceito, quer seja de raça, de origem, de sexo, de cor, de idade, de religião, a lista de jurados deverá ser composta por representantes de todos os segmentos da população, não sendo admitido qualquer tipo de discriminação, havendo apenas uma única exigência legal para ser jurado, que é a notória idoneidade. Além disso, verifica-se tal princípio, ainda, no período de tempo para a sustentação oral em plenário do júri.
Quanto ao princípio do devido processo legal (art. 5°, LIV CF), consiste no direito de a pessoa não ser privada da liberdade e de seus bens, sem que, antes, haja o trâmite de um processo que seja útil e observe os ditames da lei. Esse princípio tem como corolários o contraditório e a ampla defesa, constituindo-se garantias constitucionais destinadas a todos os litigantes, inclusive, nos processos do júri.
O princípio do contraditório (art. 5°, LV CF) é o direito dado ao réu de, conhecendo a acusação imputada a ele, insurgir-se contra ela, pronunciando-se sobre tudo o que for produzido pela parte contrária em juízo, sendo esse princípio respeitado pelo júri, onde a acusação e a defesa dispõem de um momento para defender suas teses, com base nas quais os jurados formarão seu convencimento.
Já, o princípio da ampla defesa (art. 5°, LV CF) é a utilização por parte do réu de todos os meios e recursos necessários ao esclarecimento da verdade. Assim, como exemplificação, no interrogatório do réu, em julgamento no plenário do júri, a versão dos fatos dada pelo acusado deve ser incluída na defesa técnica, que será apresentada por seu advogado, sob pena de o Juiz Presidente considerá-lo indefeso e dissolver o Conselho de Sentença.
Cumpre observar o entendimento de Alexandre de Moraes:
A tutela judicial efetiva supõe o estrito cumprimento pelo órgãos judiciários dos princípios processuais previstos no ordenamento jurídico, em especial o contraditório e a ampla defesa, pois não são mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão (MORAES, Alexandre. Op. Cit. p. 250).
Pelo princípio da publicidade (arts. 5°, LV e 93, IX CF), todos os atos processuais são públicos. Apesar disso, esse princípio não pode ser interpretado de forma absoluta, pois sofre limitação, quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. No júri, embora seja público o processo, há a imposição de alguns limites, tendo em vista que, para proferir o veredicto, o julgamento é realizado por votação secreta, a portas fechadas e em sala secreta, não podendo ser acompanhado por quaisquer cidadãos interessados.
Há, também, nos processos do Tribunal do Júri, o princípio da fundamentação (art. 93, IX CF), pelo qual os juízes devem fundamentar suas decisões, sob pena de invalidade, expondo os motivos jurídicos pelos quais adotou determinado posicionamento, com o objetivo de o cidadão poder aferir sua legalidade, regularidade processual e Justiça, impugnando-as, quando cabível. Todavia, não é exigida dos jurados a fundamentação de suas decisões, que são expressão de seu íntimo convencimento. Esse princípio está contido no Código de Processo penal nos seguintes artigos:
Art. 413 - O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação.
§ 1o A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena;
§ 2oSe o crime for afiançável, o juiz arbitrará o valor da fiança para a concessão ou manutenção da liberdade provisória;
§ 3oO juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I deste Código.
Art. 414 - Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)
Parágrafo Único - Enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia ou queixa se houver prova nova. (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)
Art. 415 - O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:
I – provada a inexistência do fato;
II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;
III – o fato não constituir infração penal;
IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
E, finalmente, segundo o princípio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos (art. 5°, LVI CF), aplicável, destarte, no júri, toda e qualquer prova ilicitamente obtida, tanto em desrespeito à Constituição, quanto em desobediência ao direito material ou processual, não será admitida em juízo. Entretanto, admite-se a utilização de tais provas nos processo penal, desde que tragam benefícios à defesa.
Outrossim, o Direito brasileiro adota a teoria mista quanto à referida matéria, por meio da qual, somente em casos excepcionais, podem-se obter provas ilícitas, quando este for o único meio de prova. Além disso, a proibição estende-se às provas ilícitas por derivação, aquelas que, apesar de colhidas legalmente, para descobri-la, a autoridade utilizou-se de meios ilícitos. Esta teoria é chamada pelos americanos de fruits of the poisonous tree, ou seja, frutos da árvore envenenada.
3. Função Constitucional
A Constituição de 1988 adotou como regime político a democracia, no qual todo o poder emana da vontade popular. Esta é exercida através da combinação de duas formas de democracia: a representativa e a direta, isto é, tanto há decisões tomadas por representantes, livremente escolhidos pelo povo, quanto alguns instrumentos de participação direta do povo na formação da vontade nacional.
Dentro desse contexto de Estado democrático de Direito, como expressão maior da democracia, o Tribunal Popular foi erigido à categoria constitucional de direito e garantia fundamental, manifestando o início da participação popular direta na distribuição da Justiça, na medida em que foi atribuído aos cidadãos, pela Carta Magna de 1988, o poder de julgar seus semelhantes, quando do cometimento dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados.
Nesse sentido, torna-se oportuno considerar que a instituição do júri, constitucionalmente, é uma garantia individual do cidadão, no sentido de garantia ao devido processo legal e, não, à liberdade, como entendem muitos doutrinadores, tendo em vista que não é concebível proteger-se o direito à liberdade do criminoso, em detrimento do direito à vida. Além disso, o júri constitui também um direito individual, por haver o reconhecimento de o acusado ser julgado por seus semelhantes.
Consequentemente, como, de acordo com o art. 60, § 4° CH, há expressa proibição de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais e a Lei Maior reconhece ao júri tais prerrogativas, este é uma cláusula pétrea, não podendo, portanto, sofrer modificações por emenda constitucional ou por lei ordinária, tendentes a aboli-lo ou restringi-lo.
Desse modo, a Constituição intentou, expressamente, limitar a possibilidade de o poder derivado reformar o Tribunal do Júri, para evitar sua extinção ao seu livre arbítrio, sendo que só poderá haver a exclusão dessa instituição, mediante a promulgação de uma nova Constituição. Porém, não há óbice algum para a ampliação do rol de crimes de competência desse instituto, uma vez que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma competência mínima, mas não o proibiu de julgar outros crimes.
Roborando o assunto, Aramis Nassif conceitua o Tribunal do Júri:
[…] como sendo a garantia constitucional do cidadão ser julgado pelo povo, quando acusado da prática de fatos criminosos definidos na própria Constituição ou em lei infraconstitucional […] (NASSIF, Aramis. Júri: instrumento da soberania popular. 1996: p.45).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Tribunal Popular é uma prerrogativa constitucionalmente deferida ao povo para que julgue seus semelhantes, segundo os ditames da sociedade, no caso de cometimento de delitos que, intencionalmente, violem a vida, bem jurídico mais importante. Trata-se, pois, de uma situação peculiar dentro do ordenamento jurídico brasileiro, onde o poder de julgar pertence, em regra, ao magistrado.
Posto isto, o júri envolve os direitos à vida e à liberdade e diversos princípios, previstos na Lei Maior, o que torna o instituto mais garantidor e respeitável no cenário jurídico nacional.
Assim, o júri adquiriu uma acepção nitidamente democrática na Carta Política de 1988, ao receber a função de direito e garantia individual, sendo elevado, inclusive, à categoria de cláusula pétrea. Em razão disso, tornam-se infundáveis as discussões a respeito de sua extinção, ou não, posto não poder ser retirado do ordenamento jurídico, não podendo, sequer, ser a proposta de emenda tendente a aboli-lo objeto de deliberação no Congresso Nacional.
Ante o exposto, o Tribunal do Júri é uma instituição essencial dentro do Estado Democrático de Direito, que tem como objetivo primordial a proteção aos direitos à vida e à liberdade. Em razão disso, foi erigido pela Constituição de 1988 à categoria constitucional de cláusula pétrea, não podendo, portanto, ser extinto.
Conclui-se, por fim, que a Carta Política de 1988, ao entregar a pessoas leigas o poder de julgar seus pares, através do Júri Popular, assegurando-lhe diversas garantias, assim procedeu com a finalidade de aproximar o povo do Direito.
REFERÊNCIAS
http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del3689.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. Atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.230.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 4. ed. rev. atual. aum. São Paulo: Saraiva, 2002, p.596.
ELUF, Luiza Nagib. A paixão no banco dos réus. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 119.
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. Teoria geral. Comentários aos arts. 1° a 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. v. 3. São Paulo: Atlas, 1997, p. 60-61.
NASSIF, Aramis. Júri: instrumento da soberania popular. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 45.
Servidora Pública.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Renata Santos. O Tribunal do Júri à luz da atual Constituição: princípios e função Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2010, 21:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21958/o-tribunal-do-juri-a-luz-da-atual-constituicao-principios-e-funcao. Acesso em: 23 dez 2024.
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