1. INTRODUÇÃO
O exercício do poder no Estado democrático de direito deve ser acompanhado de intensa fiscalização com o objetivo de se evitar abusos, excessos, desvio de finalidade pelas autoridades públicas constituídas. É neste contexto que se falará, brevemente, sobre o Tribunal de Contas enquanto órgão com atribuição constitucional para verificar se o direito de representação popular pelos agentes políticos é efetivado dentro dos limites da lei magna, no tocante a indicação dos membros da instituição. Neste diapasão e ante a importância da Corte irá se refletir sobre os critérios adotados para a composição do tribunal bem como acerca da possibilidade de revisão do ato de nomeação do seu respectivo membro.
2. DESENVOLVIMENTO
O exercício do poder numa República democrática[1] na qual o poder soberano pertence ao povo deve ser cada vez mais controlado e fiscalizado a fim de se coibir abusos, excessos, desvios de finalidade, os quais em nada se harmonizam com os princípios constitucionais, em especial o da proporcionalidade e da razoabilidade.
Com base no corolário jurídico-liberal de que o Estado deveria ser o controlador dos seus próprios atos é que tal teoria fora sistematizada. Neste contexto oportuna se faz uma breve reflexão sobre o papel do Tribunal de Contas na fiscalização do exercício do poder, em especial do procedimento da composição dos seus membros e ulterior revisão do respectivo ato.
Em que pese discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza jurídica dos seus atos[2] e se o mesmo integra ou não o “Poder legislativo”(e digo poder, dentre aspas, pois sabe-se que o poder é uno, adjetivado principalmente para fins didáticos), indiscutível é a importância institucional do Tribunal de Contas, como garantidor dos interesses dos cidadão.
Tal “Corte de Contas” fora idealizada pelo imemorável jurista Rui Barbosa na exposição de motivos que fez ao então presidente Deodoro da Fonseca da qual decorreu o Decreto n.966/1890 que criou a instituição com a finalidade de exame, revisão e julgamento dos atos relativos à receita e despesa da República à época[3].
Importante instituição, destacada e valorizada pela Constituição cidadã de 1988, o Tribunal de Contas mostra-se como verdadeiro instrumento de controle do abuso do direito de representação político-constitucional por parte dos gestores da coisa pública, verdadeiro guardião dos interesses do cidadão, único senhor, titular do poder e destinatário de todo agir Estatal.
Com a realização do sufrágio universal e efetivação da titularidade ativa eleitoral, direito fundamental, os cidadãos eleitos e legitimados pelo certame popular, adquirem o direito subjetivo constitucional à representação dos interesses coletivos, seja na sede da função legislativa típica, seja na função administrativa (atípica no caso do legislativo).
O Poder Legislativo possui, também, ao lado da legiferante, a função típica de controlar, de forma externa, os atos administrativos do Poder Executivo, a fim de assegurar o cumprimento de preceitos da própria Constituição. Tal múnus é desempenhado com a imprescindível colaboração da “Corte de Contas”, órgão técnico, com garantias (a exemplo do § 3º do art.73 da CF/88) e poderes jurídicos- constitucionais idôneos ao alcance da prevalência dos interesses reconhecidos pela Carta Magna (súmula 347 do STF).
A Constituição da República, ao dispor sobre o Tribunal de Contas da União, modelo este a ser adotado pelos Estados-Membros, nos moldes do princípio da simetria- fundamentado na manutenção do sistema federativo de poder (clausula pétrea), estabelece que a sua composição conta com a participação de integrantes dos órgãos ligados ao Executivo e legislativo.
O art.73,§ 1º da Carta Magna estabelece que os membros do Tribunal de Contas (Ministros), no caso da União, serão escolhidos, e nomeados dentre brasileiros com mais 35 e menos de 65 anos de idade que gozem de idoneidade moral e de reputação ilibada, possuam notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros[4] ou (rectius: “e”, numa interpretação sistemática, espécie que é muito valorizada pela doutrina, a exemplo da Maximiliano ao comentar sobre o trabalho exegético dos norte-americanos [5]) de administração pública.
A mesma Carta Política, de igual sorte, institui que a escolha será feita pelo Presidente da República, na proporção de um terço, com a sabatina do senado, sendo que dentre estes, 02(dois) serão ou auditores ou membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice a ser por ele formada, segundo os critérios de antiguidade e merecimento. Já 2/3(dois terços) serão eleitos pelo Congresso Nacional.
Percebe-se que a Carta Política assegura, na composição do Tribunal, a participação de representantes dos órgãos que se sujeitarão ou dele contarão com a sua colaboração, na sua atuação administrativa, sendo silente a mesma Carta Magna em relação à representantes do Poder Judiciário formado por órgãos que também estarão sujeitos à sua fiscalização.
Em que pese soar natural, a priori, tal omissão, a mesma deve ser analisada com cuidado tendo em vista a reconhecida função atípica administrativa dos órgãos do Poder Judiciário que praticarão, de igual sorte, atos administrativos os quais sofrerão a fiscalização da “Corte de Contas”, em auxílio do Poder Legislativo, com fulcro no art.71 da Constituição.
De igual maneira, a Constituição da República fora silente, ao menos de forma expressa, sobre a quem incumbiria à atribuição de verificar a ocorrência ou não dos requisitos constitucionais exigidos na escolha do nomeado para conselheiro ou ministro do Tribunal. Tal omissão, entretanto, não impede que a indicação do pretenso membro da “Corte de Contas”, seja revista pelo poder judiciário ou mesmo pelo próprio poder legislativo, quando de forma expressa o indicado não preencher os requisitos constitucionais para o desempenho de tal função tão importante na construção de uma ordem jurídica justa (art.3, I da CF/88).
Assim, resta analisar se a escolha efetivada por dito poder mostra-se imutável, ao ponto de alcançar sempre a tutela irrestrita do ato jurídico perfeito, na sua leitura absoluta, ou mesmo se aquela, excepcionalmente e à luz da analise do caso concreto (rectius: escolha), em cumprimento da isonomia na concepção de Ruy Barbosa[6] e da tutela de outros direitos Constitucionais, como a segurança jurídica, pode ser revista, tanto em âmbito judicial, à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição, quanto mesmo em sede política, em caso de notória ausência dos requisitos Constitucionais da nomeação.
Consagrado como direito fundamental, o princípio da Universalidade da jurisdição, disposto no art.5, inc.XXXV da CF/88, assegura a todos a garantia da tutela adequada do judiciário na defesa dos seus direitos violados ou ameaçados.
Em vista de tal princípio constitucional, compreensível entender-se plenamente cabível a revisão, pelo Judiciário, da escolha dos membros do Tribunal de Contas. Esta deve ser pautada, exclusivamente, em critérios jurídico-constitucionais (art.73, parágrafo primeiro da CF/88), sendo que em hipóteses na qual, claramente, não forem preenchidos tais requisitos, deve o Judiciário, como guardião dos interesses da sociedade, positivados no ordenamento jurídico, e em especial na Carta Magna, rever tal escolha.
Ademais, tal ato de escolha pode ser classificado como ato administrativo complexo, por ter a participação de órgãos ligados a esferas diversas de poder Estatal na sua formação, sendo também classificado como ato vinculado na medida em que os seus elementos estão delineados diretamente na CF. Assim, a errônea indicação do membro do tribunal qualifica-se como ilegalidade do ato administrativo, cuja revisão e invalidação está autorizada pela súmula 473 do STF
Ora, se tal jurisprudência, consolidada no Excelso Pretório, autoriza a invalidação do ato por ilegalidade, não menos razão, e numa interpretação teleológica, autorizada está a nulidade do ato por inconstitucionalidade. Ou seja, em hipótese de notória ausência dos requisitos Constitucionais para ser membro da “Corte de Contas”.
O dever de cumprir a Constituição vincula todos os membros do Estado, em todas as formas de manifestação do seu poder, seja normativo, jurisdicional ou de aplicação exofficio da lei. Assim, todos os “poderes” da República devem adotar medidas de cumprimento da Carta Magna. Se o legislativo, após a escolha do nome para integrar a Corte de Contas, ou mesmo durante, percebe o notório erro na indicação, deve o mesmo anular o ato administrativo respectivo, em homenagem a Ordem Jurídica, podendo o ato anulador ser revisto pelo Judiciário (art5, inc.XXXV da CF/88).
Em qualquer situação o saneamento do vício, com a decretação do ato viciado, por contrário aos requisitos constitucionais, deve ser feito em tempo hábil, sob pena de ofensa a segurança jurídica, e dos interesses tutelados pela instituição sendo esta verdadeira sentinela de probidade e correição da gestão da coisa pública.
Pode-se adotar como tempo hábil para invalidação do ato administrativo de nomeação o prazo de 5 anos na medida em que o postulado da legalidade deve ser ponderado com outros princípios constitucionais, notadamente a segurança jurídica, sendo o referido ato ampliativo de direitos, favorável ao seu destinatário. Neste sentido, o STF já se manifestou, in verbis:
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ART. 71, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. FISCALIZAÇÃO DE EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. IRRELEVÂNCIA DO FATO DE TEREM OU NÃO SIDO CRIADAS POR LEI. ART. 37, XIX, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. ASCENSÃO FUNCIONAL ANULADA PELO TCU APÓS DEZ ANOS. ATO COMPLEXO. INEXISTÊNCIA. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. ART. 54 DA LEI N. 9.784/99. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA BOA-FÉ. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, entidades integrantes da administração indireta, estão sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas, não obstante a aplicação do regime jurídico celetista aos seus funcionários. Precedente [MS n. 25.092, Relator o Ministro CARLOS VELLOSO, DJ de 17.3.06]. 2. A circunstância de a sociedade de economia mista não ter sido criada por lei não afasta a competência do Tribunal de Contas. São sociedades de economia mista, inclusive para os efeitos do art. 37, XIX, da CB/88, aquelas --- anônimas ou não --- sob o controle da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal ou dos Municípios, independentemente da circunstância de terem sido criadas por lei. Precedente [MS n. 24.249, de que fui Relator, DJ de 3.6.05]. 3. Não consubstancia ato administrativo complexo a anulação, pelo TCU, de atos relativos à administração de pessoal após dez anos da aprovação das contas da sociedade de economia mista pela mesma Corte de Contas. 4. A Administração decai do direito de anular atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários após cinco anos, contados da data em que foram praticados [art. 54 da Lei n. 9.784/99]. Precedente [MS n. 26.353, Relator o Ministro MARCO AURÉLIO, DJ de 6.3.08] 5. A anulação tardia de ato administrativo, após a consolidação de situação de fato e de direito, ofende o princípio da segurança jurídica. Precedentes [RE n. 85.179, Relator o Ministro BILAC PINTO, RTJ 83/921 (1978) e MS n. 22.357, Relator o Ministro GILMAR MENDES, DJ 5.11.04]. Ordem concedida.(MS 26117, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2009, DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-03 PP-00590 RIP v. 11, n. 58, 2009, p. 253-267-grifos nosso)
Neste sentido e para finalizar, em reforço à autonomia daquele Tribunal, poder-se-ia, talvez, cogitar a possibilidade de PEC que permitisse o ingresso na função de conselheiro ou Ministro mediante certame público (art.37 da CF/88) a qual se assegurasse a igualdade de acesso a todos que preenchessem os requisitos Constitucionais, constituindo verdadeira alternativa para a adequação concretização da finalidade da instituição e do bom desempenho da sua missão constitucional.
3. CONCLUSÕES
O Tribunal de Contas constitui-se em importante instrumento de fiscalização da probidade e correição na gestão da coisa pública. Assim, a correta indicação dos membros da instituição é essencial ao adequado funcionamento do órgão de fiscalização no desempenho da sua nobre missão constitucional.
O ato administrativo de indicação e de nomeação do membro do tribunal se qualifica como vinculado na medida em que seus elementos estão expressamente delimitados na Constituição Federal. Assim, a falha na indicação implica em ilegalidade e inconstitucionalidade que pode ser revista pelo poder judiciário ou pelo próprio poder legislativo na medida em a citada indicação é exercida na sua função atípica administrativa.
Entretanto, a citada revisão deve ser feita em tempo hábil na medida em que o postulado da legalidade deve ser ponderado com outros princípios constitucionais notadamente a segurança jurídica podendo ser adotado como marco temporal o prazo de 5 anos.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. São Paulo, Re,vista Arcádia, 1944
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação di Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional do Brasil. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2008.
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Editor Abril Cultural: São Paulo 1973.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed. Editora Atlas: São Paulo. 2005.
[1] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Editor Abril Cultural: São Paulo 1973. Pag.39.
[3] MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional do Brasil. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2008.p775.
[4] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed. Editora Atlas: São Paulo. 2005. Pag.394.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação di Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.33.
[6] BARBOSA, Rui. Oração aos moços. São Paulo, Re,vista Arcádia, 1944, p.11
Analista do MP/SE. Formado em Direito pela Universidade Tiradentes; Pós- graduado em Direito Público pela UNOPAR. Foi membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/SE. Palestrante.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Filipe Cortes de. Composição do Tribunal de Contas: reflexão jurídico constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2010, 09:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21985/composicao-do-tribunal-de-contas-reflexao-juridico-constitucional. Acesso em: 29 set 2024.
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