Intenta-se no presente capítulo, como dito anteriormente, esboçar-se uma noção geral acerca da atuação do Estado na composição dos conflitos de interesses que eclodem na sociedade, cada vez mais numerosos e complexos.
No entanto, para entendermos o funcionamento da atual estrutura estatal, no exercício exclusivo da prestação jurisdicional, necessário se mostra uma análise pregressa deste ente social sob a ótica desta prestação, bem como das mais diversas fontes alternativas de composição das lides sociais.
Já em um momento avançado, discutir-se-á sobre o acesso à Justiça, bem como sobre os princípios que regem o procedimento das discussões em juízo, sempre fazendo prevalecer a melhor forma de administração da Justiça, oferecendo à população um Poder Judiciário justo e eqüitativo equitativo.
Destarte, atingir-se-á uma idéia clara a respeito dos motivos históricos e sociais que levaram ao surgimento dos provimentos antecipatórios de mérito, dentre eles, a tutela antecipada, temática principal deste artigo. Senão vejamos.
Dos elementos coligidos acerca dos elementos formadores do Estado, elementos aqueles essenciais ou acessórios, bem como de suas principais entidades e características próprias; pode-se perceber que, por maior que seja a gama de definições sobre o ente estatal e seus elementos essenciais, o Direito, enquanto ordem jurídica, sempre se fez presente.
Realmente, por mais primitivo que seja o agrupamento humano analisado, ou mais longínqua a sociedade política em que esteja organizado, o homem sempre consagrou o Direito como uma necessidade imperiosa para regular e pacificar a convivência social.
Fundamento para tal fenômeno antropológico não se encontra em outra razão, senão, na própria natureza ordenadora do direito, ou seja, em sua peculiar função de organizar os interesses que eclodem na vida social, norteando a atividade coletiva rumo à composição dos conflitos de interesses e ao bem comum.
No dizer dos eminentes mestres processualistas, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco: “a tarefa da ordem jurídica é exatamente a de harmonizar as relações sociais intersubjetivas, a fim de ensejar a máxima realização dos valores humanos com o mínimo de sacrifício e de desgaste”[1][1]. Complementam os autores dizendo que o critério orientador dessa harmonização deve ser o do justo e do eqüitativo.
Nessa vertente, afirma-se que o Direito possui um aspecto sociológico, na medida em que se apresenta como o conjunto de regras e princípios, intentando-se sempre fazer prevalecer a justiça no seio social, compondo-se os conflitos de interesses e resguardando-se os bens individuais e coletivos. A essa função, dá-se o nome do “controle social”.
Como exposto acima, em face do aumento populacional experimentado pela sociedade humana ao longo da história e, em contrapartida, da escassez progressiva dos bens disponíveis para atender as respectivas necessidades, eis que surge o cenário perfeito a configuração dos conflitos de interesses na sociedade.
Duas são as razões que não permitem tenha o indivíduo acesso àqueles bens para satisfação de suas necessidades próprias, a saber: a) seja porque aquele que poderia satisfazer a necessidade de seu semelhante, assim não atua; b) seja porque a própria ordem jurídica estabelecida naquele agrupamento social, não permite a satisfação voluntária da pretensão pelo indivíduo.
Em verdade, afirma-se que tanto em uma, como em outra situação, há o fenômeno psicológico da insatisfação que encontra guarida no íntimo do indivíduo. Ora, lição clara que a própria História nos conta, é o manifesto prejuízo social, experimentado por toda a coletividade, quando espécies psicológicas daquela monta crescem no íntimo do indivíduo. O sentimento de revolta e inconformismo do ser humano, estimulado pela má condição de subsistência, deve ser imediatamente remediado, seja por medidas jurídicas e coercitivas, ou mediante esforços sociais no sentido de atender ao clamor do particular.
Outrossim, a história nos ensina que as lides encontravam solução ou através do esforço individual ou conjunto dos conflitantes; ou por intervenção de terceiro. Na primeira hipótese, verifica-se que há um consentimento no sacrifício total ou parcial do interesse próprio (autocomposição) ou imposição de que o outro o faça (autodefesa ou autotutela). Na segunda hipótese, na intervenção de terceiro, há a atuação de árbitro ou do próprio Estado na composição do conflito de interesses.
Na atualidade, tem-se o privilégio de contar com a atitude organizada e impositiva do Estado na composição das lides que eclodem na sociedade. Com efeito, em havendo disputa de interesses entre particulares, ou entre estes e o Estado, há toda uma estrutura formal e sistematizada, pronta para atender os interesses individuais na solução daquele conflito. Conta o Estado com a atuação de seus órgãos capazes e competentes para resolver o desentendimento instaurado na sociedade, caracterizado pela pretensão de um particular e pela resistência do outro. Fala-se aqui na atuação do Estado-Juiz.
Contudo, nem sempre foi assim. Nos primórdios da civilização, onde imperava um primitivismo exacerbado nas relações sociais, diante da ausência de um sistema legal, ao lesionado em sua esfera particular, restava tão somente buscar, com as próprias forças, o respeito e a observância de seus interesses particulares.
Não havia a figura central do Estado, o regime de penas era fundamentalmente caracterizado pela vingança particular, sanguinária e dramática para os que conviviam naquela esfera social. A vontade do mais forte era a lei.
Até mesmo o Estado, quando avocou para si o poder de dizer o direito, o fazia de forma violenta e primitiva, aplicando parcial e arbitrariamente a lei de acordo com seus próprios interesses. As penas eram físicas, impessoais e dotadas de forte violência e crueldade.
A boa doutrina denomina este primitivo sistema legal de autotutela, onde se faz ausente a figura de um juiz, neutro e imparcial, prevalecendo somente a vontade do mais forte de forma discricionária.
Outro sistema havia para a composição dos conflitos sociais: a autocomposição. Trata-se do regime no qual uma das partes ou ambas, cedia total ou parcialmente ao direito pleiteado, chegando por si mesmas, à solução do conflito. Importante ressaltarmos que, ainda hoje tal sistema de composição se faz presente na sociedade moderna, conhecido sob três formas, a saber: a) desistência – caracterizada pela renúncia à pretensão inicial; b) submissão – onde há a renúncia à postura de resistência aquela pretensão inicial; c) transação – verifica-se aqui, as concessões recíprocas.
Entretanto, fosse com relação à autotutela ou à autocomposição, ambos os sistemas eram parciais, arbitrários e injustos, pois sempre o mais forte e astuto iria prevalecer sobre o mais fraco e tímido, onde nem sempre se concretizaria a Justiça.
Diante desse quadro, as pessoas convencionaram que seria melhor submeter os conflitos sociais a uma terceira pessoa, desinteressada e imparcial, para que pudesse, através de seu parecer, resolver a demanda instaurada. Sem dúvida, tal sistema seria mais amigável e justo, tendo-se em vista que o terceiro seria escolhido por comum acordo entre as partes, sendo, portanto, pessoa dotada de confiança daquelas.
Trata-se da figura do árbitro, cujo papel era quase sempre atribuído aos sacerdotes (por terem contato com a divindade, fazendo prevalecer a vontade dos deuses); ou aos anciãos (dotados de pleno conhecimento acerca dos costumes e tradições do grupo social onde o conflito de interesses havia eclodido), que após apreciação do caso apresentado, reconheciam ou não o direito pleiteado.
Aqui, interessante anotarmos, que a figura do juiz surge antes do legislador.
Conveniente citarmos os ensinamentos da supra citada autora, Ada Pellegrini Grinover, ao lecionar que:
Na autotutela, aquele que impõe ao adversário uma solução não cogita de apresentar ou pedir a declaração de existência ou inexistência do direito; satisfaz-se simplesmente pela força (ou seja, realiza a sua pretensão). A autocomposição e a arbitragem, ao contrário, limitam-se a fixar a existência ou inexistência do direito: o cumprimento da decisão, naqueles tempos iniciais, continuava dependendo da imposição de solução violenta e parcial (autotutela)[2][2].
Com o passar do tempo, o Estado foi adquirindo progressivamente força coercitiva no seio da sociedade, a ponto de fazer valer suas decisões acerca dos conflitos de interesses, tornando-as perfeitamente executáveis e exigíveis após a composição da lide. Afigura-se como uma verdadeira função de dizer o direito, impondo o sistema legal vigente à época e, conferindo executividade autônoma de suas respectivas decisões.
No Direito Romano, havia a figura do pretor, para quem os cidadãos recorriam a fim de verem resolvida a demanda particular. Exposto o problema, os particulares escolhiam o chamado árbitro, pessoa de confiança de ambos, o qual era incumbido pelo pretor de resolver definitivamente a causa. Assim, no direito processual civil romano, havia a figura do juiz-pretor e a do árbitro. Aponta-se, contudo, que nesse sistema ainda se tratava de uma arbitragem facultativa, fazendo-se presente em muitos casos, a autotutela ou a autocomposição.
Figura exponencial do aumento do Poder do Estado foi quando este avocou para si, obrigatória e definitivamente, o direito de aplicar a lei, instituindo o sistema da arbitragem obrigatória.
Nesse momento, surgem, no âmbito da sociedade, esforços no sentido de se estabelecer um sistema normativo justo, objetivo e vinculativo para tais soluções estatais. Surge aqui, a figura do legislador (Lei das XII Tábuas em 450 aC.).
No ápice do desenvolvimento de sistema judicial embrionário, percebe-se que a figura do juiz-pretor, passa a ter maior autonomia de poder de controle nos conflitos de interesses que lhe eram apresentados. Obviamente, acobertado pela anuência do Estado, o magistrado poderia agora solucionar, por si mesmo, as lides apresentadas, sem a necessidade de intervenção do árbitro – diga-se, sequer de sua nomeação – fazendo-se respeitar em suas decisões, conferindo-lhes, inclusive, eficácia executiva.
Eis que surge a figura do Poder Jurisdicional.
Aqui, entendido como o exercício do juiz (pretor, à época), no sentido de compor as lides sociais, decidindo por uma ou outra pretensão resistida, fazendo-se valer perante a coletividade, através do instrumento jurídico-formal do processo.
Ou, em outros termos, sob a luz dos ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover: “instrumento por meio do qual os órgãos juridicionais atuam para pacificar as pessoas conflitantes, eliminando os conflitos e fazendo cumprir o preceito jurídico pertinente a cada caso que lhes é apresentado em busca de solução”[3][3].
E continua a renomada processualista:
As considerações acima mostram que, antes de o Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso concreto e promover a sua realização prática (jurisdição), houve três fases distintas: a) autotutela; b) arbitragem facultativa; c) arbitragem obrigatória. A autocomposição, forma de solução parcial dos conflitos, é tão antiga quanto a autotutela. O processo surgiu com a arbitragem obrigatória. A jurisdição, só depois (no sentido em que a entendemos hoje).
Não podemos nos furtar, ainda que em título de uma breve exposição, em abordar as diferentes maneiras de se “dizer o direito”, presentes na atualidade, no cenário internacional.
Com efeito, extremamente interessante é o paralelo fixado entre as concepções primitivas do exercício do poder jurisdicional e as alternativas eleitas pelos Estados Internacionais, como meio de solução de eventuais conflitos de interesses no âmbito do direito internacional público.
Nessa vertente, tem-se que a autotutela se faz presente ainda hoje, através das invasões bélicas que alguns estados, mais abastados militar e economicamente, praticam contra outros, quando conflitantes ou ameaçadores de seus interesses financeiros e políticos; o fazem através das ocupações, invasões ou intervenções – ainda que meramente econômicas – de forma muitas vezes abusiva.
Há que se citar ainda, os julgamentos de personalidades inimigas por tribunais (diga-se, de exceção) constituídos pelos países vencedores. Ainda, não se faz anular a presença da autotutela em uma curiosa miscigenação com o sistema da autocomposição (através dos tratados internacionais), onde também se faz presente a arbitragem facultativa para a solução dos dissídios individuais.
[1][1] GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Malheiros, 2001. p. 19.
[2][2] GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Malheiros, 2001. p. 22.
[3][3] GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Malheiros, 2001. p. 23.
Advogado. Pós graduado pela UNIFMU em direito Civil "latu sensu", com licenciatura para o magistério, extensão extra curricular pela UNIFMU em direito condominial, membro e palestrante da comissão de cidadania pela OAB/SP tatuapé, membro da ABDFAM, defensor público conveniado com a OAB/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALEGARI, Luciano Robinson. O Estado na composição dos conflitos sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 out 2010, 10:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22028/o-estado-na-composicao-dos-conflitos-sociais. Acesso em: 23 dez 2024.
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