SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. FUNDAMENTOS PARA A INTRODUÇÃO DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL NO ORDENAMENTO PÁTRIO. 3. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O PROJETO DE LEI Nº 4605/09 4. REPERCUSSÃO DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL PERANTE TERCEIROS. 5. CONCLUSÃO
RESUMO
O presente trabalho tem por objeto o estudo da responsabilidade patrimonial do empresário individual pelas obrigações da respectiva firma no direito brasileiro, tendo em vista a eminente promulgação do projeto de lei nº 4605/09, enquanto elemento propulsor de inovação na disciplina jurídica do tema. Não há o propósito de esgotar a matéria, mas realizar uma análise a respeito da forma como o ordenamento brasileiro atualmente trata do tema, valendo-se de um estudo comparativo entre os fundamentos favoráveis e os desfavoráveis a uma reformulação. Ressalte-se que o presente trabalho apenas constata a necessidade de limitação da responsabilidade - ao contrapor os argumentos - sem a preocupação de eleger a melhor forma de promovê-la.
PALAVRAS-CHAVE
Empresário individual – Responsabilidade patrimonial limitada – Projeto de Lei nº 4605/09-CD.
Ao nos depararmos com o conceito de empresário, retirado do artigo 966 do diploma civil, observamos que a caracterização de uma atividade como empresa exige o atendimento de alguns requisitos legais fazendo-se possível defini-la como atividade econômica organizada e habitual de produção ou circulação de bens ou serviços, com o precípuo objetivo de lucro.
Desse modo, não é difícil concluir que o exercício de empresa pressupõe a existência de uma complexa cadeia de relações jurídicas por meio das quais se constata o seu regular desempenho, com a consumação da produção e circulação dos bens e serviços.
Nesse contexto, inserem-se na órbita das relações empresariais as questões relativas à teoria geral das obrigações, posto que se houver negócio jurídico[1], verificar-se-á a existência de credores, devedores, bem como de uma prestação devida (objeto do contrato).
Formada a relação obrigacional, verifica-se a formação de vínculo entre credor e devedor que se biparte em débito e responsabilidade.
Nesta altura, mostra-se oportuna a seguinte lição de Sílvio Venosa sobre o tema:
(...) cria-se, dessa forma, uma relação de subordinação jurídica, devendo o devedor praticar ou deixar de praticar algo em favor do credor. Em contrário, existe o poder atribuído ao credor de exigir a prestação. Não conseguida espontaneamente a prática da prestação, o credor possui meios coercíveis, postos pelo Estado, para consegui-la, ressaltando-se aí a responsabilidade. (VENOSA; 2006; P.23)
Com efeito, surge a necessidade de se definir quem responderá pelos contratos realizados em prol da atividade, ou seja, definir a responsabilização patrimonial, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Não seria possível, pois, aos exercentes da atividade, a concretização dos negócios se não estivesse bem determinado quem será responsável pelas obrigações assumidas.
Nesse sentido, é válido trazer à colação respeitada lição de Said Yussef Cahali que bem define a situação jurídica instituída:
A ciência jurídica moderna sublimou o conceito de obrigação como sendo um vínculo jurídico, em virtude do qual, uma pessoa pode exigir de outra, uma prestação economicamente apreciável; dá-se uma vinculação entre uma pessoa e outra pessoa, com repercussão no patrimônio do devedor, onde, aliás, repousa a idéia de garantia, ou de a garantia de poder conseguir. Em caso de inadimplemento, satisfação coativa pelos meios executivos. (CAHALI; 1989; P. 17)
Observa-se, portanto, que a responsabilidade patrimonial constitui uma garantia à satisfação creditícia[2], ou seja, está essencialmente vinculada à relação obrigacional em que seu titular figure como devedor.
Consagrando tal idéia, Mendonça Lima defende, em sua obra “comentários ao Código de Processo Civil” que
Ao constituir-se a obrigação, o credor tranqüiliza-se, porque, incontinenti, obteve o direito de, se necessário, tornar os bens do devedor responsáveis, satisfazendo-se do dano sofrido; e, conseqüentemente, o devedor passou a arcar com o ônus de seus bens responderem pela sua violação ao compromisso assumido ou pelo ato ilícito praticado (...) (LIMA apud CAHALI; 1979; p. 20)
Diante da tal situação em que se constata o relevante risco econômico que acompanha a atividade[3], é que se insere a discussão acerca do tema da responsabilidade patrimonial dos titulares da empresa, já que seu patrimônio é a única garantia oferecida aos credores diante de uma eventual insolvência, conforme se pode inferir do artigo 391 do diploma civil, quando dispõe da seguinte forma: “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”[4].
No caso das pessoas jurídicas (P.J.), constituídas em conformidade com o direito pátrio, hábeis ao exercício da empresa, tais como a sociedade anônima e a limitada, constata-se que a responsabilidade patrimonial dos sócios se reduz ao capital integralizado ou ao valor das ações ou cotas respectivamente, salvo nos casos expressamente previstos em lei de uso abusivo da personalidade jurídica.
Em contrapartida, as pessoas físicas que exercem a empresa não gozam de tal benefício, ou seja, respondem ilimitadamente pelas obrigações adquiridas em virtude da atividade. Sendo assim, os credores da firma individual têm como objeto de uma eventual execução, em caso de falência, a totalidade dos bens componentes do patrimônio do titular da empresa falida.
Confirmando o exposto, mostra-se válido trazer o seguinte julgado da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – FIRMA INDIVIDUAL – COMERCIANTE – PENHORA – CITAÇÃO – RECURSO PROVIDO – "Para os efeitos da responsabilidade civil ou comercial, tratando-se de empresa individual, o comerciante responderá ilimitadamente, com todos os seus bens, pelos atos que praticar, atinentes ao comércio, inexistindo distinção entre dívida contraída pelo comerciante singular e aquela a que está obrigada a pessoa física, de modo que os seus bens respondem pelas obrigações assumidas, qualquer que seja sua natureza" (AI nº 3.014, Des. Xavier Vieira, JC 49/288). Citado o comerciante, tem-se também como citada a pessoa física, sendo dispensável que se repita o ato para viabilizar a penhora de seus bens particulares. (TJSC – AI 97.004765- 7 – 2ª C.C. – Rel. Des. Newton Trisotto – J. 21.08.1997)[5]
Ainda neste sentido, João Paulo de Oliveira[6] em trabalho sobre a responsabilidade do empresário individual traçou os seguintes comentários:
A pessoa natural titular da firma individual responde com todos seus bens pelos débitos contraídos na atividade empresarial, não havendo qualquer preferência quanto a penhorabilidade daqueles afetados ao estabelecimento. O exercício de atividade empresarial não restringe a responsabilidade patrimonial dos titulares das firmas individuais pelas dívidas tributárias.(OLIVEIRA, 2006)
Tal distinção encontra seu cerne na existência ou inexistência de separação patrimonial entre a empresa e o seu titular. As sociedades são dotadas de personalidade jurídica do que resulta a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações de forma autônoma em relação aos seus sócios, tendo, como conseqüência, o surgimento de esfera própria de direitos e obrigações, o que forçosamente gera a separação patrimonial.
A firma individual, por sua vez, não se encontra no rol do art. 44 do diploma civil[7], não possui, portanto, segundo a concepção vigente no ordenamento pátrio, a capacidade aludida para as sociedades. Entende-se que, por não haver o conflito de interesses existente no contrato social ou no estatuto, a empresa se sujeita a único interesse, que é o do seu titular. De tal raciocínio chega-se à conclusão de que o titular utiliza a empresa como “coisa própria’, devendo, portanto, arcar com todos os ônus da atividade, já que é o único beneficiário das vantagens (lucros) oferecidas pela empresa.
Reforçando tal entendimento, defende-se que a empresa individual não reúne as condições necessárias para ser contemplada pela separação patrimonial, diante da clássica teoria contratualista adotada pela legislação brasileira.
Assim sendo, ao observarmos a maneira com que é tratada a matéria no Brasil, percebemos que a atual situação jurídica do empresário individual, no que concerne à sua responsabilidade patrimonial em razão da atividade, apresenta-se de forma defasada e bastante desconfortável se comparada aos ordenamentos vigentes na Europa e, até mesmos em países vizinhos, na América Latina, como é o caso do Chile, que por meio da promulgação da Lei nº 19.857 de 11 de fevereiro de 2003, instituiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada.
A discussão acerca da limitação da responsabilidade no âmbito da atividade empresarial exercida de forma individual, em que pese toda a repercussão que ocasionou no cenário internacional, não tem obtido, até o presente momento, a devida relevância entre os juristas pátrios.
Observa-se que, enquanto em países participantes da União Européia já se verifica a existência de formas de limitação de responsabilidade[8], no Brasil ainda prevalece a discussão concernente à viabilidade de a referida limitação ser estendida aos empresários individuais.
Dessa forma, não se apresenta unânime a idéia ora apresentada, fazendo-se possível destacar alguns argumentos contrários a tal tese, tais como a proteção aos credores, a inexistência de separação de interesses entre o titular e a empresa, assim como a inexistência de separação patrimonial em virtude da despersonalização da empresa individual, em face da atual legislação pertinente, bem como em razão da possibilidade de fraudes em favorecimento do titular da atividade.
Tais argumentos são, porém, passiveis de discussão, posto que a confusão patrimonial pode gerar o efeito contrário do esperado, isto é, uma eventual concorrência entre credores particulares e credores da empresa pode resultar em prejuízos maiores do que o resultante da limitação da responsabilidade (separação patrimonial); de outro modo, a alegada impossibilidade de separação patrimonial pode ser rebatida já que existem dois interesses implícitos na atividade: o lucro e a manutenção da empresa, sendo somente o primeiro exclusivo do empresário e o último um interesse geral (empresário, empregados e destinatários da atividade); por derradeiro, entende-se que as fraudes podem ser coibidas pela utilização do princípio da obrigação de boa-fé (art. 422, CC/02), pela Ação Pauliana (art. 158, CC/02) e pela desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC/02).
Destaque-se que a separação patrimonial representa risco de confusão patrimonial, independentemente de que titular da empresa seja firma individual ou sociedade empresária. Deve-se, neste ponto atentar para o fato de que o escopo da separação é exclusivamente proporcionar segurança jurídica aos empresários diante das obrigações inerentes à atividade, fazendo-se necessária a sua desconfiguração nas hipóteses de desvio de finalidade ou utilização abusiva por parte dos titulares da empresa.
Por outro lado, ficou constatado que a situação econômica atual reclama pela urgente alteração da legislação brasileira regulamentadora de tal matéria.
Primeiro, pela óbvia necessidade de acompanhamento das alterações jurídico-econômicas externas, em decorrência do fenômeno denominado por José Eduardo Faria de Economia Globalizada[9], na qual estamos inseridos.
Nesse sentido, verifica-se pertinente lição de Luiz Olavo Baptista:
Há muito que se vem observando que “o princípio da responsabilidade patrimonial ilimitada, especialmente no caso das pessoas físicas, não se coaduna com os caracteres apontados há algumas décadas, acrescenta-se o da transnacionalização da economia; associado ao princípio de conflito de leis de que as sociedades regem-se pela lei do local de sua constituição, o fato de que em alguns países se admite a sociedade unipessoal, temos sociedades unipessoais atuando legitimamente dentro de outros países – não é preciso ir longe para buscar exemplos: o chamado “Projeto Jari” era controlado pelo Sr. Ludwig, através de uma sociedade unipessoal. (BAPTISTA; 1992;149)
Corroborando a idéia ora apresentada, ainda trazemos à colação os seguintes dizeres:
(...) As “linhas de produção” tornaram-se transnacionais. Esse fator é, também, de grande importância, inclusive por reduzir o poder dos Estados (sobre as empresas produtoras), onde se acham implantadas apenas partes, ou parcelas da atividade produtiva (...) (CAVALCANTI;1997; p. 69)
Em segundo lugar, pela verificação da existência de verdadeira incoerência lógica ao se adotar a responsabilização integral do empresário individual em face de preceitos constitucionais. Podemos destacar a dignidade da pessoa humana posto que a ‘blindagem’ patrimonial representaria a garantia de condições mínimas de sobrevivência; os valores sociais do trabalho da livre iniciativa, já que não se pode reputar livre uma atividade que vincula a totalidade de seu patrimônio; bem como o princípio da igualdade[10], uma vez que a distinção entre a sociedade empresária e o empresário individual não se mostra razoável (não otimiza a norma), além de ferir outros valores constitucionais. Alerte-se, ainda, para o fato de que as normas econômicas devem ser interpretadas à luz desses princípios fundamentais. Pode-se citar, também, a relevante questão da exigência constitucional de tratamento favorecido á empresa de pequeno porte.
Além disso, a flagrante ineficácia da norma incidente no caso também acusa tal necessidade, uma vez que se verifica a existência de sociedades cuja criação se deu com o único objetivo de limitação patrimonial, de forma flagrantemente fraudulenta, utilizando-se de sócios inexpressivos, os denominados “homens de palha”, sem qualquer representatividade, relevância ou interferência no exercício da empresa. Percebe-se, desse modo, que o contrato ensejador deste tipo societário encontra-se eivado de vício material, pois o elemento volitivo que o constitui não repousa na figura do “afecctio societatis”, mas no simples desejo de limitar a responsabilidade e, conseqüentemente, o risco. Atente-se para o fato de que tal norma fere a lógica funcional normativa, já que proporciona maior onerosidade em seu cumprimento, em nítido favorecimento aos burladores. Assim, não há atendimento aos anseios sociais.
Outro argumento a ser levantado é o dos benefícios que a referida limitação poderia proporcionar à estipulação de preços, visto que a redução dos riscos, na atividade econômica, constantemente vem acompanhada da redução dos preços, das taxas de juros cobradas sobre as operações financeiras, tornando a atividade convidativa, aumentando as chances de obtenção de êxito da atividade.
Por derradeiro, faz-se mister salientar a importância da continuidade da empresa para a sociedade, tendo em vista a existência de instrumentos normativos criados com o escopo de recuperá-las, como é o caso da Lei 11.101 de fevereiro de 2005, cujo artigo 47 dispõe:
ART. 47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica
Nesse sentido, ainda temos lição do Deputado Osvaldo Biolchi[11] a calhar tal posicionamento:
Malgrado vivermos numa sociedade eminentemente capitalista, neoliberal e de forte economia globalizada por meio de blocos integrados, a empresa se constitui hoje, patrimônio de todos, com conotação social. Deste organismo multidisciplinar que traduz depende essencialmente o trabalhador; as regras de consumo se estabelecem, os impostos são recolhidos, a demanda e a oferta se regulam, o controle inflacionário é supervisionado e a sociedade marcha na direção do crescimento e do desenvolvimento. (TOLEDO, 2007, XXXVII)
Diante desse cenário, cresce a importância de limitação patrimonial como meio preventivo de manutenção da empresa, beneficiando de forma direta a sociedade em sua integralidade, já que é para ela que se direcionam os produtos das atividades empresariais.
Destarte, as circunstâncias econômicas externas e internas, os princípios constitucionais supracitados, a ineficácia das normas regulamentadoras e o interesse coletivo na manutenção da empresa convergem para um ponto comum: a necessidade de limitação da responsabilidade do empresário individual.
Não obstante as considerações acima, é de se observar que o atual tratamento jurídico dispensado pelo diploma civil à responsabilidade patrimonial do empresário individual, é regido pela disposição contida no art. 391 do diploma civil, segundo o qual o patrimônio do empresário individual responderá integralmente pelas obrigações assumidas em razão do exercício da atividade.
No entanto, constata-se a tramitação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei nº 4605/09, apresentado pelo Deputado Marcos Montes (DEM-MG)[12] consagrando os fundamentos supra defendidos com o objetivo de modificar a regulamentação da referida matéria, isto é, observando as diretrizes da evolução legislativa em nível global instituidora da limitação da responsabilidade do empresário individual diante das obrigações decorrentes do regular exercício da atividade de empresa.
Assim, o Projeto de Lei em comento tem o propósito de posicionar o sistema brasileiro em situação de consonância com a tendência jurídica global outrora analisada, conforme se verifica do seu inteiro teor[13]:
Art. 1º A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 985-A:
Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade.
§ 1º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
§ 2º A firma da empresa individual de responsabilidade limitada deverá ser formada pela inclusão da expressão "EIRL" após a razão social da empresa.
§ 3º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio pessoal do empresário, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda.
§ 4º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada os dispositivos relativos à sociedade limitada, previstos nos arts. 1.052 a 1.087 desta lei, naquilo que couber e não conflitar com a natureza jurídica desta modalidade empresarial)
Art. 2º Esta lei entra em vigor no prazo de 180 (cento e oitenta) dias de sua publicação oficial. (destacou-se)
É de se verificar que os Legisladores optaram por considerar a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada –EIRL – uma opção de organização empresarial cuja natureza jurídica muito se assemelha ao da sociedade quando expressamente determina a sua constituição por único sócio, bem como quando possibilita a sua formação a partir da concentração de quotas de outra modalidade num único sócio.
Em decorrência disso, há de se destacar uma importante inovação teórica do ordenamento pátrio ao relativizar a teoria contratualista, já que não obstante a nomenclatura adotada representar uma tendência conservadora, toda a regulamentação normativa refere-se a figura do sócio individual e não do empresário de responsabilidade limitada.
Registre-se, ainda, que na referida alteração normativa são apresentados, como justificação, os fundamentos acima defendidos, como se pode destacar em trecho do Projeto apresentado por Marcos Montes[14]:
Diante desse disciplinamento legal, que ora propomos, acreditamos que o Estado terá grandes ganhos no aumento da arrecadação e a economia como um todo evoluirá com a formalização e melhor organização de um segmento importante dos negócios, que responde por mais de 80% da geração de empregos neste país, conforme dados do próprio SEBRAE.
Diante de tal situação, verifica-se uma tendência modernizadora do sistema jurídico brasileiro no que concerne à delimitação da responsabilização patrimonial do empresário individual nas relações conexas à atividade de empresa. Esboça-se uma resposta do direito pátrio às questões fáticas e jurídicas decorrentes do descompasso cronológico entre os fatos do mundo real e as previsões normativas.
Nesse sentido, mostra-se oportuno trazer à colação as seguintes considerações feitas por Maria Antonieta Lynch acerca da importância da implementação da responsabilização patrimonial limitada no ordenamento brasileiro, em trabalho sobre o tema.
A disparidade latente existente entre o empresário individual que se encontra numa posição de desvantagem em relação ao empresário coletivo que, associado sob quaisquer das formas sociais com responsabilidade limitada, pode manter incólume seu patrimônio pessoal, não obstante, os riscos da atividade de ambos serem similares, é um justo e fundado argumento para a utilização de um mecanismo diferenciado por parte do empresário unipessoal. (MORAES, 2010, P. 72)
Trata-se de decisão acertada por parte dos legisladores pátrios tendo em vista a emergente necessidade de solução de problemas surgidos com tal situação, tais como a existência das sociedades fictícias, o defasagem evolutiva em relação aos ordenamentos estrangeiros, o ferimento a alguns princípios constitucionais e a incompatibilidade da situação jurídica do empresário individual frente ao moderno cenário jurídico-econômico, colocando-o em posição de inferioridade na acirrada concorrência com os demais exercentes da atividade econômica.
Conforme já exposto, a responsabilidade patrimonial representa a garantia do adimplemento da obrigação assumida pelo devedor perante o credor.
No caso em tela, a limitação patrimonial pode ser entendida como a separação na esfera obrigacional entre os patrimônios do titular da firma individual e os bens afetados ao exercício da atividade de empresa.
É de se afirmar que os efeitos dessa distinção de patrimônios nos negócios jurídicos realizados entre o empresário individual e terceiros, que tenham por objeto o exercício da atividade empresarial, serão percebidos na impossibilidade de utilização de bens particulares como garantia nas negociações empresariais, bem como na proibição da utilização dos bens afetos à empresa para servir de garantia em contratos de interesse particular do empresário individual. Em outras palavras, veda-se a confusão patrimonial entre a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada e o seu sócio único, ou titular.
A separação patrimonial também deverá ser percebida no momento em que se observar uma das duas hipóteses, a insolvência da pessoa física do empresário individual em relação aos credores civis ou a insuficiência de bens afetos à empresa para cumprimento das obrigações assumidas no seu exercício.
No que se refere à falência, o atual tratamento legislativo distingue-se do dispensado às sociedades no sentido de impor restrições à pessoa física do empresário individual no concernente ao direito de administrar e dispor dos seus bens. Nestes casos, falta-lhe capacidade para compra e venda de imóvel, celebração de contrato social, recebimento e quitação de dívidas, sem que haja a efetiva transferência de propriedade, já que esta somente ocorre no momento da liquidação. (COELHO; 2008; p. 444)
Um importante aspecto a ser questionado na atual regulamentação jurídica sobre a execução concursal é a situação dos credores empresariais em relação aos credores civis. Nesse sentido, mostra-se proveitoso trazer à colação lição de Fábio Ulhoa
(...) como o inventário é também concurso de credores e não há separação patrimonial no direito brasileiro, deve o processo sucessório ficar suspenso enquanto tramita a falência. Após o trânsito em julgado da sentença de encerramento, prossegue o inventário para se decidir sobre a sucessão relativa ao saldo remanescente do concurso falimentar. (COELHO; 2008; p. 445)
Tal tratamento mostra-se temerário na medida em que todos os bens pertencentes ao patrimônio do empresário individual (afetos ou não à atividade), exceto os bens impenhoráveis e os da meação do cônjuge, estão sujeitos à execução concursal. Percebe-se, assim, um certo risco de prejuízo para o adimplemento das obrigações particulares.
A nova regulamentação promovida pela inserção do art. 985-A apresenta uma tentativa de solucionar o conflito uma vez que distingue a falência da EIRL da insolvência do seu sócio. Impede, desta forma, que os credores particulares restem prejudicados no primeiro caso, assim como, protege os credores da EIRL, na segunda hipótese.
Impõe-se um regime de separação dos bens, em conformidade com a distinção patrimonial declarada junto à Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, do qual decorre a delimitação dos bens sujeitos à execução concursal, assim como dos bens executáveis pelos credores particulares.
A autonomia patrimonial mostra-se, neste ponto, favorável não só ao empresário, mas também aos seus credores, já que a impossibilidade de confusão patrimonial enseja uma exata determinação dos bens passíveis de execução, bem como daqueles que servirão de garantia nos negócios jurídicos firmados, impedindo um eventual prejuízo de um tipo de credor em relação ao outro.
Outro aspecto também relevante na discussão da matéria é a questão da possibilidade de fraudes dos sócios unitários em detrimento dos credores e consumidores.
Primeiramente, é de se argumentar que do fato de se limitar a responsabilidade patrimonial não se pode inferir necessariamente que haverá a sua utilização fraudulenta. A fusão patrimonial não parece ser a melhor via para impedir a fraude na responsabilização patrimonial. Percebe-se que a utilização das sociedades fictícias se mostra meio hábil para se atingir tal objetivo ao burlar os dispositivos legais, como já foi exposto. Entende-se, outrossim, que a consagração da separação patrimonial, desde que sejam devidamente aplicados os princípios e as normas da teoria geral das obrigações, pode ser um caminho idôneo para a harmonização dos interesses do empresário e de terceiros.
Nestes casos, mostra-se válida uma aplicação dos princípios gerais inerentes ao direito obrigacional, principalmente a utilização da noção de boa-fé como critério para a apuração de eventual vício no negócio jurídico, com a sua conseqüente anulação, sempre que se verificar lesão a terceiros pelo sócio único da EIRL.
Ademais, o art. 50 do diploma Civil brasileiro apresenta parâmetros para atuação do aplicador do direito nos casos de abuso de direito, desvio de finalidade, ou confusão patrimonial em virtude da separação patrimonial. Nestes casos, sempre que de tal conduta resulte dano ou prejuízo a terceiro, em que pese não se tratar de pessoa jurídica, o julgador deverá desconsiderar a referida separação e estender a execução aos bens que compõem o patrimônio particular, impedindo que a separação patrimonial seja utilizada como instrumento de locupletamento às custas de terceiros. Frise-se que o objetivo de instituto é a separação patrimonial a fim de tornar mais transparente a situação da firma individual, pressupondo-se sempre a sua regular utilização.
Conforme conclui José Barros Correia Júnior em sua dissertação de mestrado, a limitação da responsabilidade serve menos á garantia dos sócios que à finalidade precípua de aumentar os investimentos e o crescimento econômico, não devendo ser utilizada como escudo para atos fraudulentos ou abusivos. (CORREIA JÚNOIR; 2001; p. 42)
Neste último caso, faz-se mister ressaltar que a desconsideração da autonomia patrimonial deve ser considerada não de forma geral, mas apenas nos casos em que se utilizou a proteção concedida pela lei para desviar a “legitima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei”. (REQUIÃO; 1969)
Deste modo, observa-se que o ordenamento pátrio possui meios de coibir o abuso de direito e a má-fé por parte daqueles que vislumbrarem a utilização da EIRL para fins meramente fraudulentos, tendo em vista a proteção dos terceiros que celebrem negócios jurídicos com a EIRL.
Diante do estudo sobre a atual situação jurídica do empresário individual no ordenamento pátrio, considera-se que as prescrições normativas necessitam de alterações, isto é, verifica-se a emergente necessidade de limitação da sua responsabilidade patrimonial, tendo em vista os elementos acima defendidos.
A priori, devemos considerar a idéia de que a argumentação conservadora, isto é, contrária à limitação da responsabilidade esta sendo gradativamente enfraquecida, posto que as bases em que se fundamentam (proteção aos credores, impossibilidade sistemática da limitação pela inexistência de autonomia patrimonial da firma individual e possibilidade de fraudes contra credores) são passíveis de refutação.
De outro modo, as alterações econômicas provocadas pelo fenômeno da globalização forçam o sistema jurídico pátrio a acompanhar as modificações já ocorridas nos países com que o Brasil se relaciona, tais como os europeus e alguns países do MERCOSUL, onde já se constata a previsão legal da limitação da responsabilidade patrimonial para as firmas individuais.
Ademais, podemos verificar que há normas e princípios constitucionais legitimadores de uma regulamentação mais favorável para os empresários individuais, como no caso dos incisos III e IV do art. 1º da Carta Magna, que elegem como fundamentos da República dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa; além dos princípios da igualdade e do favorecimento das empresas de pequeno porte.
Outro fator considerado foi a questão da ineficácia das normas incidentes sobre a mencionada situação jurídica, o que gera uma realidade distinta daquela a que se propõe o direito, isto é, o desfavorecimento dos cumpridores da norma em relação aos burladores.
O último argumento defendido foi a importância da manutenção da empresa como instrumento propulsor do desenvolvimento econômico, tendo em vista todos os benefícios trazidos pelo exercício da mencionada atividade econômica em um determinado local. Desse modo, o exercício da empresa não causa benefícios exclusivamente para os empresários, mas também para toda a sociedade, diretamente quando fornece os bens e serviços necessários ao saneamento das necessidades sociais, ou indiretamente, com o surgimento de organismo sócio-econômico gerador de modificações de cunho econômico em determinada região.
Sendo assim, pode-se dizer que os fundamentos apresentados neste trabalho apontam para a necessidade de reflexão sobre o tratamento jurídico dispensado aos empresários individuais, tendo em vista se tratar de segmento economicamente mais frágil em relação às grandes sociedades. Necessita, portando, de proteção jurídica diante de um cenário econômico de acirrada concorrência.
Por outro lado, a implementação da EIRL formaliza e torna juridicamente possível uma prática freqüentemente realizada por muitos empresários individuais, que é a separação patrimonial. Posto que, como já mencionado, os empresários se valiam da constituição de sociedades fictícias com a única finalidade de proteger seus bens particulares da execução dos credores empresariais.
Assim, entendemos que, ao contrário do defendido pelas teses mais conservadoras, a limitação da responsabilidade apresenta-se bem menos prejudicial aos credores do que a usual prática acima referida, já que está dotada de total transparência, pois os credores terão prévia ciência do patrimônio garantidor da obrigação; bem como, poderão utilizar os instrumentos jurídicos aplicáveis nos casos de vícios decorrentes de uma eventual fraude através da proteção jurídica em apreço.
Portanto, o projeto de lei nº 4605/09, ao introduzir o instituto da EIRL, representa um grande avanço do direito brasileiro, por consagrar os fundamentos tratados neste trabalho, atendendo às necessidades sócio-econômicas nacionais além de proporcionar condição mais favorável ao exercício da atividade para o micro e pequeno empresário, em consonância com as normas e princípio constitucionais e infraconstitucionais.
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[1] A negociação patrimonial é inerente à atividade empresarial.
[2] Deve-se ter em mente que a responsabilidade patrimonial e o dever de prestação são dois elementos da relação obrigacional autônomos entre si, já que é possível se vislumbrar existência de débito sem responsabilidade (obrigação natural), assim como o contrário, como nos casos da hipoteca e fiança. (CAHALI; 1989; p. 19)
[3] Após ultrapassarem-se todas as etapas negociais até se chegar aos destinatários finais, os resultados podem ser positivos (lucro) ou negativos, não obstante o empresário tenha empregado as melhores estratégias disponíveis.
[4] Registre-se que o princípio da responsabilização patrimonial representa uma grande conquista do direito privado, tendo em vista que, nos primórdios, os devedores respondiam com a restrição da liberdade ou até mesmo com a própria vida, ou seja, a responsabilização era pessoal. Essa idéia predominou até o advento da Lex poetelia papiria de nexi. (MORAES; 2005; p. 16)
[5] Disponível em: http://app.tjsc.jus.br/jurisprudencia/acpesquisa!pesquisar.action? Acesso em 13.07.2009 às 21:17h
[6] Disponível em: http://www.sinprofaz.org.br/arquivo_sinprofaz/Trabalhos_Juridicos/JoaoPauloOliveira.htm acesso em 13.07.2009 às 21:25h
[7] Conforme se verificará, o sistema brasileiro adotou a teoria contratualista como fundamentadora da formação das sociedades e, conseqüentemente, da separação patrimonial. Assim, somente através de contrato social é que se ensejará a separação entres os patrimônios destinados à empresa e os pertencentes aos empresários, bem como no caso das sociedades anônimas que se forma mediante estatuto aprovado em assembléia geral.
[8] A XII Diretiva Comunitária em matéria societária generalizou a sociedade unipessoal com responsabilidade no ambiente europeu, principalmente na Alemanha e na Bélgica, concomitantemente à existência de formas de limitação não-societárias, presentes em países como França e Portugal. (SALOMÃO FILHO, 1995, P. 10)
[9] Sobre o tema recomenda-se a leitura da seguinte obra do autor: “O Direito na economia globalizada”.
[10] A exceção somente é possível quando atendidos os seguintes requisitos: sujeitos indeterminados/indetermináveis, fundamentação lógica [otimização da norma], não supressão de valores constitucionais, conforme defende o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello. (BANDEIRA DE MELLO; 2001)
[11] Relator do projeto da Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005.
[12] http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=131502. (acessado em 06/03/2009; 18:34)
[13] http://www.camara.gov.br/sileg/integras/631421.pdf. (acessado em 06/03/2009:18:49)
[14] Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/631421.pdf. (acessado em 06/03/2009:19:00)
Graduado em Direito pela UFPE em dezembro de 2009. Serventuário de Justiça no TJPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Adson Diego Cruz de. Considerações acerca do projeto de Lei Nº 4605/09-CD: limitação patrimonial do empresário individual no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2011, 08:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23322/consideracoes-acerca-do-projeto-de-lei-no-4605-09-cd-limitacao-patrimonial-do-empresario-individual-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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