INTRODUÇÃO
Desde o século XIX o processo tem-se destacado como categoria jurídica autônoma dentro da ciência do direito, não sendo mais considerado como parte do direito material.
Essa autonomia surge no momento em que se põe em evidência a existência de uma relação jurídica diversa da de direito material.
A partir de então, vêm-se estudando as características dessa relação jurídica processual, dentre as quais se destacam os pressupostos processuais e os vícios capazes de fulminá-la, até mesmo com nulidade absoluta.
Em se tratando de uma relação distinta da de direito material, ela se mostra com requisitos próprios, necessários ou úteis à sua validade; porém, nãAo é só isso que a diferencia, deve-se levar em conta a instrumentalidade do processo como meio de realização do direito, como mecanismo de exercício da jurisdição, diante de princípios próprios que a orientam em busca de sua finalidade, a realização do direito.
À luz desses princípios é que neste trabalho se fará uma breve exposição acerca da origem, não histórica, mas jurídica, da relação processual, seus elementos e pressupostos, de existência e de validade, assim como dos vícios a que estão sujeitos os atos jurídicos processuais e a forma especial com que estes são tratados por essa ciência, que tem por fim maior a pacificação social.
I - A Relação Jurídica de direito processual
A relação jurídica processual foi, precisamente, a matéria que forneceu os princípios fundamentais para a autonomia da ciência processual, a qual surgiu com instituições próprias por meados do século XIX, conforme afirma o doutrinador gaúcho Ovídio Araújo Baptista da Silva[1].
E foi justamente a partir dessa concepção, introduzida por Oskar von Bülow, que o processo deixou de ser visto puramente como uma cadeia de atos (procedimento) e se lhe acrescentou a idéia de que havia uma relação jurídica, de caráter dinâmico, definidora do processo — e, inclusive, diferenciadora do conceito deste em face do de procedimento.
Assim, na doutrina moderna, tem-se estudado o processo em função desta relação jurídica, não de direito material, e sim processual, de caráter público.
No entanto, para que se possa tratar especificamente da relação jurídica de direito processual, faz-se mister abordar alguns aspectos do que seja direito subjetivo, pretensão e ação de direito material, assim como processual, qual pressuposto lógico de exposição. E é esta análise que passamos a fazer a seguir.
1 Direito Subjetivo material e pretensão
O direito subjetivo, segundo Von Tuhr[2], é “a faculdade reconhecida à pessoa, pela ordem jurídica, em virtude da qual o sujeito exterioriza sua vontade, dentro de certos limites, para a consecução dos fins que a sua própria escolha determine.”
Já Del Vecchio[3] define o direito subjetivo como “a faculdade de querer e de pretender, atribuída a um sujeito, à qual corresponde uma obrigação por parte de outros.”
O que dessas duas definições se dessume é estar em seus centros o querer do sujeito, “o poder de vontade do titular”, nas palavras de Ovídio Baptista da Silva, o poder, conferido pelo ordenamento jurídico, de tornar efetivo o enunciado da norma, através da conduta voluntária do sujeito do direito.
No entanto, de nada valeria ao seu titular, se a esse direito subjetivo, que lhe é atribuído por uma vontade concreta da lei, como afirma Chiovenda, não fosse acrescido o poder de exercê-lo.
Diante disso, apresentam-se as possibilidades de existir direito subjetivo sem que haja, ainda, a faculdade de exigir sua observância, ou não haja mais essa faculdade, a que se dá o nome de pretensão.
Assim, a pretensão é o caráter de possibilidade de exigibilidade do direito, que pode estar presente ou não, como no caso, verbi gratia, da prescrição — em que haverá direito sem que haja exigibilidade — e no caso de estar pendente condição suspensiva, em que ainda não há exigibilidade.
Porém, bem afirma Ovídio[4], quem exige (exercício da pretensão) não age, pois o exigir depende de uma atitude do titular passivo do direito (ou titular do dever jurídico[5]) em cumprimento à ‘vontade concreta da lei’, enquanto agir é fazer valer o seu direito manu propria, isto é, por sua própria força. Assim chagamos ao conceito de ação de direito material.
2 Ação de direito material
Vale lembrar que se está a tratar de direito material, nesse caso objetivo, que, nas palavras de Chiovenda, é fruto de uma vontade geral, o qual (direito objetivo) tem por escopo (vontade da lei) prover a conservação dos sujeitos jurídicos e seus bens, assim como regular a distribuição dos bens da vida aos sujeitos jurídicos. Com base nessa vontade da lei, o sujeito pode aspirar à consecução ou conservação desses bens, inclusive valendo-se da coação[6].
E é justamente essa possibilidade de coação que é a ação de direito material. É o ‘fazer valer’ o direito, retirando seja do patrimônio, seja, mais genericamente, da esfera jurídica do titular passivo do direito atribuído a alguém, o que lhe é devido.
Todavia, com uma visão hodierna do Direito, mostra-se evidente que essa ação de direito material é um exercício de autotutela o que se sabe proibido pelos ordenamentos jurídicos, por assim dizer, civilizados, desde o advento da jurisdição.
Para que se possa discorrer sobre a ação (rectius, ações) de direito material e a ação de direito processual, faz-se mister um breve comentário acerca da evolução das formas de tutela dos direitos subjetivos.
3 Evolução da tutela dos direitos subjetivos
Quatro etapas se mostram, consoante conjecturas dos romanistas, as mais prováveis na evolução da tutela do direito[7].
A primeira dessas etapas teria sido a em que os conflitos entre os particulares são resolvidos pela força, entre a vítima e o ofensor (do direito), porém o costume começa a estabelecer, lentamente, distinções entre violência legítima e ilegítima. É a etapa em que há o primado da autotutela.
Na segunda fase, surge o chamado arbitramento facultativo, em que a pessoa lesada, em vez de usar da força para exercer o seu direito, tem a possibilidade de escolher um árbitro, juntamente com o violador do direito, para resolver a questão. Porém, ainda é pouco utilizado esse meio, preferindo-se a autotutela, nessa fase.
Já a terceira etapa é a que ficou conhecida como Ordo Iudiciorum Priuatorum, momento em que surge um arbitramento obrigatório. O Estado, já estabelecido e com poder para se impor, exige que os litigantes escolham, perante um magistrado com imperium, um árbitro (iudex) e garante a execução da decisão desse árbitro.
Por fim, o Estado, na quarta etapa da evolução, já com um corpo de funcionários, afasta o emprego da justiça privada totalmente, resolvendo ele mesmo, por seus agentes, as lides e executando, à força, se necessário, suas decisões.
Nesse último momento (chamado de cognitio extra ordinem), proíbe-se a autotutela quase que totalmente, como se verifica no crime de exercício das próprias razões (CP Brasileiro, Art. 345), restando hoje raros exemplos desta, como o desforço imediato[8].
Mostra-se, nesse estágio, evidente a proibição da ação (ou ações) de direito material, visto que isso constitui crime de exercício das próprias razões; assim, o Estado deixa o sujeito de direito sem ter como ver cumprido seu direito, quando o titular do dever jurídico não o cumpre espontaneamente.
Diante disso, o Estado, ao tomar a si o monopólio da jurisdição, concedeu ao sujeito de direito (rectius, ao jurisdicionado em geral) a possibilidade de cobrar dele, Estado, que exercesse a sua ação de direito material que lhe fora vedada.
E é justamente essa ação contra o Estado, para que este substitua o sujeito de direito na execução (exercício) da ação de direito material (Art. 75 do CCB de 1916), a que se chama ação de direito processual, pelas razões que a seguir veremos.
4 Ação de direito processual
De forma similar ao que ocorre com a ação de direito material, a ação de direito processual surge a partir de um direito — do direito público subjetivo a que o Estado preste a tutela a que ele mesmo se obrigou[9].
Assim, portanto, a ação de direito processual tem como sujeito passivo o Estado, que deverá prestar a tutela jurisdicional; porém, diferentemente do que se passa com a ação material (que prescinde de atividade do sujeito passivo), a ação processual requer atividade do Estado (o obrigado, lato sensu), sendo, então, tanto ação quanto pretensão, pois quem age contra o Estado age e exige, dependendo da atividade deste, embora deva o autor também agir (Art. 262 do CPC)[10].
No entanto, vale lembrar que a ação de direito processual não pressupõe ação de direito material, podendo haver aquela sem que haja esta; é o caso da interpelação judicial, em que há ação processual sem que haja ação material, mas, sim, pretensão material apenas. O contrário também é verdadeiro, isto é, pode haver ação material sem ação processual, malgrado isso seja raro, como no caso do penhor legal (Art. 1467 do CC de 2002)[11].
Dessarte, como forma de pacificação, o Estado tomou a si o monopólio da jurisdição, dando, em contrapartida, ao jurisdicionado o direito subjetivo (público, pois contra o Estado) de acesso aos tribunais para exigir-lhe o substitua na realização do direito material; nasce, então, nesse momento, uma nova relação, de direito público, diversa daquela de direito material. Participam, porém, dessa relação de direito público (processual), o Estado e os titulares ativo e passivo do direito material, tendo, esses dois últimos, ambos, pretensão à tutela jurisdicional.
E, nessa relação processual, embora seja ela apenas instrumental e meio para a realização do direito material (é a forma que o Estado, através da jurisdição, utiliza-se para realizar o direito a que se obrigou tutelar), surgem requisitos para que ela possa dar-se em conformidade a princípios democráticos qual o do devido processo legal, o do contraditório, etc.
II – Pressupostos da Relação Jurídica Processual
Em face do que se tratou acima, tem-se que uma relação é um vínculo entre elementos, sendo a relação jurídica a regida pelo direito, o que implica obrigatoriedade de condutas ou abstenções, ou inevitabilidade de uma submissão, diante do caráter imperativo das normas jurídicas estatais, é ela uma relação obrigatória e imperativa[12].
A relação jurídica processual é a relação obrigatória e imperativa que se passa no processo, entre os sujeitos do processo, ou seja, é “o sistema dos vínculos regidos pelo direito que interligam os sujeitos do processo”[13].
No entanto, faz-se mister lembrar as diferenças entre a relação jurídica processual e a material, que, por primeiro, fê-lo Bülow, sendo que aquela difere desta por três aspectos, quais sejam, os sujeitos — que são, como se verá, os litigantes, como partes, e o juiz, como sujeito imparcial —, o objeto — que não é o bem da vida (objeto mediato) sobre o qual as partes litigam, e sim a própria tutela jurisdicional (objeto imediato) —, e os pressupostos, que se caracterizam pelos requisitos para que o juiz possa decidir o mérito (direito material, posto em causa)[14].
Desse modo, resta evidente que a existência da relação processual válida e viável é condicionada à presença de certos pressupostos[15], isto é, requisitos necessários à formação e desenvolvimento desta relação e que são, indubitavelmente, de ordem pública[16].
Assim, o processo é o somatório da relação jurídica processual e o procedimento; este como fator de interligação coordenada dos atos e aquela como fator de integração entre os sujeitos do processo[17].
Diante disso, a doutrina separa os pressupostos processuais entre os de existência, necessários para que exista juridicamente o processo — também ditos supostos —, e os de validade.
Neste trabalho, não se tratará das condições da ação, conquanto estas muitas vezes na doutrina se confundam com os ditos pressupostos processuais.
Todavia, embora estejam as condições da ação estreitamente relacionadas ao tema em tela e o processo seja meio para a realização do direito (e não um fim em si mesmo), estas guardam relação direta com o direito material, o que muitas vezes lhes foi motivo de crítica, em face da autonomia da ação processual[18].
Ademais, é de bom tom relembrar a lição de Chiovenda, segundo a qual os pressupostos processuais, em regra, devem existir no momento da propositura da ação e se regulam pela lei processual; enquanto as condições da ação são condições para uma decisão favorável ao autor (bastando que existam no momento da sentença)[19], os pressupostos processuais são condições para uma decisão qualquer sobre a demanda[20].
Para que se possa dizer que é juridicamente existente a relação jurídica processual deverá estar presente a propositura de uma demanda e a investidura jurisdicional do órgão a quem ela é dirigida[21].
6.1 Demanda e órgão dotado de jurisdição
Tem-se por existente a relação processual, a partir do momento em que é proposta a demanda, a qual, nada mais é do que o ato de pedir a tutela jurisdicional[22].
Consoante o art. 263 do CPC, considera-se proposta a demanda assim que a petição inicial seja despachada ou distribuída.
No entanto, para que exista a relação jurídica processual, não basta que uma demanda seja aforada, para que entre no mundo do direito, faz-se necessário um elemento mais que é a investidura jurisdicional do órgão em que se ajuíza essa demanda.
Assim, independe de este órgão ter competência (quer absoluta, quer relativa) ou de ter sido o réu citado — que são pressupostos de validade —, bastando-lhe, para que exista o processo, que tenha jurisdição (seja componente do Poder Judiciário)[23].
Todavia, como bem ressalta Jorge Luís Dall’agnol, não basta existir, é preciso ainda que esta relação jurídica processual tenha condições para alcançar validamente a sua finalidade, que é a prestação jurisdicional solicitada[24]. Desse modo, passamos à análise dos pressupostos, ou seja, os requisitos necessários ao desenvolvimento válido do processo.
7 Pressupostos processuais de validade
Antes de se discorrer acerca de quais sejam os pressupostos para o desenvolvimento válido do processo, afigura-se-nos importante ressaltar algumas características determinantes, e até diferenciadoras, desses pressupostos de validade, visto que, logicamente, não se pode referir aos de existência, pois estes são definidores do existir o processo, isto é, sem eles não há falar-se em processo, menos ainda em características. Passamos, então, à análise destas preliminarmente.
A primeira e mais importante característica a se falar acerca dos pressupostos processuais é que são eles sempre de ordem pública, pois é dependente deles a instauração válida da relação de direito público entre os jurisdicionados e o Estado a fim de que se lhes preste a tutela jurisdicional, visto que ambos (autor e réu) tem pretensão a ela[25].
A partir dessa afirmação, exsurgem os característicos que são a possibilidade de serem argüidos de ofício pelo juiz, a qualquer tempo, inclusive após o saneamento, tendo apenas como termo limite o imposto pela norma (art. 463 do CPC), qual seja, o pronunciamento da sentença de mérito[26].
Ademais, não haverá preclusão, dita pro iudicato, para o juiz, mesmo que este já tenha decidido, explicita ou implicitamente, acerca deles, ao longo do processo, podendo este, ao verificar que se equivocara, reconhecer a ausência (ou presença dos pressupostos ditos negativos) de pressupostos de validade, ficando vinculado apenas à decisão de agravo, se houver a parte se insurgido diante de rejeição pelo juiz em conhecer o vício.
Ademais, não ficará o tribunal vinculado à decisão que tenha tomado em face de agravo, no caso de apelação, podendo, assim, esses pressupostos de validade serem verificados, ex officio, em qualquer grau ordinário de jurisdição.
Esclarecedora parece-nos a passagem, que transcrevemos, de Jorge Luís Dall’agnol:
Se o juiz decide pela ausência de determinados pressupostos e a parte interessada agrava desta decisão, nada impede que, embora se tenha retratado, ao tempo da sentença, revendo a questão ele decida de modo contrário àquele consubstanciado em sua retratação. Apenas em relação à decisão do órgão ad quem, caso reformada a decisão agravada, por uma questão até de ordem prática, ficará vinculado o juiz. De outro lado, segundo pensamos, inocorrerá efeito preclusivo para o tribunal, isto é, não estará ele adstrito à decisão proferida no agravo, podendo reexaminar a matéria, e decidir de outra forma, quando do conhecimento de eventual apelação[27].
Assim, se não preclui para o juiz, e este pode verificar de ofício, inclusive sem estar sujeito à verificação do ônus da prova (regra de direito dispositivo), ou seja, não estará o juiz limitado à atuação das partes para a verificação dos pressupostos processuais, mesmo que referentes a uma delas[28], a outra característica que surge é a possibilidade de as partes requererem a verificação a qualquer tempo, porém, para estas recai o ônus de argüir na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos, sob pena de pagar as custas de retardamento (art. 267, § 3º, do CPC).
Desse modo, diante desses característicos, pode-se excluir do rol de pressupostos processuais de validade aqueles, ditos meros impedimentos, que não podem ser verificados de ofício pelo juiz, carecendo de alegação pelas partes, como é o caso da suspeição e da incompetência relativa[29], assim como o compromisso arbitral (art. 301, § 4º, do CPC).
Dessarte, os pressupostos processuais de validade classificam-se como subjetivos e objetivos, sendo aqueles referentes aos sujeitos da relação processual, em que se inclui o juiz como sujeito imparcial, e os objetivos, referentes aos elementos internos e externos da demanda proposta.
Os chamados pressupostos subjetivos são os que concernem aos sujeitos integrantes da relação jurídica de direito processual, quais sejam, as partes e o juiz, como presentante do Poder Judiciário.
7.2.1 Relativos ao Juiz
Quanto ao juiz, exige-se-lhe seja ele desimpedido e competente (competência absoluta).
Dessa forma, o juiz não pode ser impedido nem suspeito, nos termos dos artigos 134 e 135 do CPC, pois dele se exige imparcialidade para a justa composição da lide; assim como não basta estar ele investido de jurisdição, devendo, ainda, ter competência absoluta, para que possa o processo cumprir o seu fim de prestação jurisdicional validamente.
A competência relativa não é pressuposto, e sim mero impedimento, pois advém de norma dispositiva, passível de ser alterada pelas partes, diante de prorrogação (tácita ou expressa) de competência, seja por eleição de foro, ou por se deixar transcorrer in albis o prazo para oposição de exceção de incompetência (arts. 112 e 114 do CPC).
7.2.2 Relativos às partes
Parte é conceito típico processual, que se pode expressar por quem, na demanda, pede e contra quem se pede a tutela jurisdicional, é o sujeito parcial da relação processual, independentemente de ser ela titular ou não do direito material[30]. Em relação às partes, para que tenha desenvolvimento válido o processo, estas devem ter capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e capacidade de postular.
A capacidade de ser parte é a qualidade atribuída a todo aquele que possa ser titular de situações jurídicas integradas na relação jurídica processual, como faculdades, ônus, poderes e deveres[31].
A capacidade de ser parte confunde-se com a personalidade jurídica do Direito Civil começando com o nascimento com vida (Art. 2º do CC de 2002), para pessoas naturais, e com o registro para pessoas jurídicas (Art. 45 do CC de 2002), porém é mais amplo, permitindo que sejam partes (sujeito da relação processual) entes desprovidos de personalidade jurídica.
Assim, podem ser parte, mesmo sem ter personalidade jurídica o nascituro (Art. 2º do CC de 2002), a massa falida, a herança jacente, o espólio, o condomínio, e as sociedades sem personalidade jurídica (as irregulares e as ditas de fato). Excepcionalmente, admite-se sejam partes entes como mesas dos corpos legislativos em ações como a de mandado de segurança[32].
Todavia, não é bastante ter capacidade de ser parte, faz-se mister ter-se capacidade para estar em juízo, que significa poder atuar como parte[33], o que possui apenas quem tem plena capacidade jurídica, que é o limite da potencialidade de adquirir direitos (personalidade jurídica)[34].
Assim, só poderão estar em juízo aqueles que são absolutamente capazes, do contrário, deverão eles ter sua incapacidade suprida.
Supre-se, então, a incapacidade absoluta mediante o instituto da representação, enquanto a incapacidade relativa é suprida por meio da assistência.
No entanto, há entes que por si só não podem estar em juízo, sendo então estes presentados (fazer-se presente) por meio de uma pessoa natural legitimada para tal; assim, a herança vacante ou jacente é presentada por seu curador; o condomínio, pelo síndico, etc. (art. 12 do CPC).
Não obstante isso, diante da tecnicidade do processo, a lei previu a necessidade, ainda, da capacidade postulatória, que pressupõe conhecimentos técnicos e profissionais, tido com fator de arrefecimento dos conflitos[35], sendo que só possui plena capacidade postulatória o advogado devidamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Diante disso, a parte que não o possuir, embora com capacidade de ser parte e de estar em juízo, deverá ser representada por advogado, a quem deverá passar procuração com poderes para assim fazê-lo.
Os pressupostos objetivos referem-se à relação processual em si, podendo ser intrínsecos a ela, ou seja, internos, ou extrínsecos[36].
Primeiramente, faremos análise dos intrínsecos e a seguir dos extrínsecos.
7.3.1 Pressupostos objetivos intrínsecos
Jorge Luís Dall’agnol classifica, como pressupostos processuais de validade intrínsecos à relação processual, a presença de petição inicial apta, citação válida e a adequação do procedimento.
Parece-nos de extrema propriedade tal classificação, inclusive por nela inserir a citação, que, para Teresa Wambier[37], é tida como pressuposto de existência, o que não se mostra verdadeiro, porquanto existirá processo mesmo que não venha a ser citado o réu, que já o é desde que seu nome tenha sido incluído na inicial como tal (tanto que não participará do processo como terceiro, e sim como réu)[38], como esclarece Jorge Dall’agnol, afirmando que relação processual já existe entre autor e juiz, antes da citação, podendo o juiz, neste primeiro contato, extinguir o processo, conceder liminar, reconhecer a decadência ou prescrição de direitos indisponíveis[39].
Desse modo, o primeiro requisito intrínseco para que seja válido o processo é a necessidade de que a petição inicial seja apta, vale dizer, não inepta (art. 295, § único, do CPC), isto é, em que não falte pedido ou causa de pedir; que, em caso de cumulação de pedidos, sejam estes compatíveis entre si; e que da narração dos fatos decorra conclusão lógica. Consoante Jorge Dall’agnol, a impossibilidade jurídica do pedido, prevista como causadora de inépcia da inicial, não deve ser considerado pressuposto processual, pois já é condição da ação[40].
A citação válida é o requisito mais importante, sem o qual não ocorrerá o fechamento da relação triangular processual, entre autor, juiz e réu[41]. Sem ela, a sentença será ineficaz contra o réu revel não citado, vício, como se verá, insanável mesmo com o transcorrer do prazo para propositura de ação rescisória.
No entanto, não é a citação em sim mesma que importa, e sim a sua finalidade de convocar o réu a juízo e cientificar do teor da demanda formulada, sendo assim, cumprida a sua finalidade, dispensa-se a forma ou a existência material da citação[42].
O derradeiro dos pressupostos processuais de validade intrínsecos à relação processual, segundo nosso alvitre, é o procedimento adequado.
O procedimento é “o conjunto ordenado dos atos, mediante os quais o juiz exerce a jurisdição e as partes a defesa de seus interesses no processo”, isto é, o caminho (adequado) utilizado para a finalidade de prestação da tutela jurisdicional[43].
Diante disso, dessume-se se tratar de matéria de ordem pública a adequação entre o procedimento e a tutela jurisdicional almejada, visto que é interesse do Estado a utilização do meio mais seguro e célere para a obtenção do resultado prático[44].
Assim, a lei criou a indisponibilidade do procedimento, mandando que o juiz retifique a escolha feita pelo autor, quando inadequada (art. 295, V, do CPC), constituindo este, portanto, pressuposto essencial para a validade do processo.
Por fim, passamos à análise dos pressupostos de validade objetivos extrínsecos à relação processual.
7.3.2 Pressupostos objetivos extrínsecos
Os pressupostos objetivos extrínsecos dividem-se em negativos, ou seja, que não podem estar presentes para que o processo seja válido, e positivos, cuja presença é imprescindível para a validade do processo.
Desse modo, tem-se que não deve haver litispendência, coisa julgada e perempção; enquanto devem estar presentes, em alguns casos, a prestação de caução exigida por lei, o prévio pagamento da sucumbência (arts. 28 e 268 do CPC) e, quando indispensável, audiência de conciliação.
Tanto a litispendência, quanto a coisa julgada e a perempção dizem com a repetição de demanda, isto é, a dedução da mesma demanda (demanda idêntica), perante o mesmo ou outro órgão jurisdicional.
Para que se possa falar acerca desses pressupostos negativos, mister se faz que se esclareça quando uma demanda é idêntica à outra, ou seja, que se saiba quais são os elementos diferenciadores dela.
O Código de Processo Civil brasileiro adota, em seu Art. 301, § 2º, a teoria da tríplice identidade da demanda, segundo a qual esta se identifica pelas partes, pela causa de pedir e pelo pedido[45].
As partes, como já se viu supra, são os sujeitos parciais da relação jurídica processual, ou seja, quem pede e contra quem se pede (autor e réu).
O pedido, em verdade, é composto por dois, um dito imediato, que é o pedido de tutela jurisdicional (puramente processual), e o outro chamado mediato, que é o bem da vida (proveniente da relação de direito material).
Já quanto à causa de pedir, a lei processual brasileira adota a teoria da substanciação (art. 282, III, do CPC), segundo a qual, a causa de pedir é composta pelos fatos constitutivos do direito do autor (causa remota), expostos na petição inicial, os fundamentos jurídicos com que o autor afirma seu direito e a relação jurídica de que este se deriva (causa próxima) e o interesse de agir, isto é, o fato que torna necessário a utilização da via judicial (uma resistência injustificada à sua pretensão)[46].
Diante disso, só serão idênticas duas demandas se tiverem as mesmas partes (no mesmo pólo, inclusive), o mesmo pedido mediato e imediato e a mesma causa de pedir, isto é, os mesmos fundamentos jurídicos e os mesmos fatos.
Havendo modificação em qualquer um desses elementos, ter-se-á uma demanda diferente.
A litispendência e a coisa julgada é o Código de Processo Civil de 1973 que as define, em seu Art. 301, § 3º, asseverando que ocorrerá aquela quando se repetir ação em curso e haverá esta quando se repetir ação já decidida de que não mais caiba recurso.
Assim como a decadência é a morte do direito e a prescrição, a morte da ação de direito material, a perempção é a morte da ação processual como sanção que se aplica ao autor que der causa à extinção, por abandono, de três processos sobre a mesma demanda (art. 268, § único, do CPC)[47].
Casos há em que se exige, para o desenvolvimento válido e regular do processo, a prestação de caução prévia, como no caso do art. 835 do CPC, que determina a prestação de caução suficiente para o pagamento das custas e honorários para o autor que não resida no Brasil, ou dele se ausente durante a demanda, e que não possua bens imóveis no Brasil que lhe assegurem essas despesas.
Há, ademais, casos em que se fará necessária a realização de audiência de conciliação (em ações de separação judicial, alimentos e divórcio)[48], para que haja validade do processo; assim como, quando o autor der causa à extinção do processo, para que repita a mesma demanda (até três vezes), deverá este pagar ou depositar antecipadamente os honorários e custas de sucumbência.
II – Vícios da Relação Jurídica Processual
Os vícios que podem acometer os atos que compõem a relação jurídica processual ocorrem nos planos do mundo jurídico, por isso, faz-se mister uma prévia abordagem desses planos e, após, dos tipos de vícios, bem como os princípios que regulam a sanção a esses vícios.
Ao Direito cabe regular os atos relevantes e fá-lo por meio de normas a cuja previsão se dá o nome de suporte fático.
Quando ocorre materialmente o ato previsto, este passa para o mundo jurídico, nele permanecendo, independentemente da permanência dos elementos de seu suporte fático[49].
Preleciona Pontes de Miranda que o mundo jurídico se divide em três planos: o da existência, o da validade e o da eficácia.
Isso vale dizer que, se ocorrer a perfeita verificação do suporte fático, o ato passará a existir no mundo jurídico, ou seja, ingressará no plano da existência jurídica (que é diversa da existência material).
Se o ato jurídico existe e é válido, tem ele como tendência natural, mas não necessária, produzir efeitos, precipuamente o ato jurídico processual, que, em regra, sempre produz efeitos, mesmo viciado.
Assim, passamos à análise dos vícios de que são passíveis os atos processuais, ou seja, os que integram a relação jurídica de direito processual.
9 Tipos de vícios
Velemo-nos da lição de Pontes de Miranda para o pressuposto mais importante ao se tratar acerca dos vícios no processo que afirma que os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornam, assim, atos jurídicos[50].
Assim se tem que o nulo não se confunde com o inexistente, pois só pode ser viciado o ato jurídico (isto é, o que ingressou no mundo jurídico, embora deficientemente)[51].
De mesmo modo, é assente que a inexistência jurídica não é vício, e sim ausência no mundo jurídico[52].
Sendo, então, que viciado é o ato jurídico defeituoso, porém, existente, a nulidade, em processo (diferentemente do assente na doutrina privatista), será um efeito desse vício e deverá ser desconstituída, porque, por mais profunda que seja a deficiência, o suporte fático entrou no mundo jurídico.
Diversamente, a inexistência necessita apenas de ser declarada como tal.
Todavia, é de se frisar que o ato imperfeito, isto é, viciado, não é sinônimo de ato ineficaz e, em processo, produz sempre efeitos, até que seja sua invalidade desconstituída, momento em que (e somente então) alguns ou todos os seus efeitos cessarão[53].
Ademais, “a invalidade não se identifica com o vício, mas é o estado conseqüente à sua decretação judicial, ou seja, a nulidade não existe antes de sua pronunciação pelo juiz”[54]. A nulidade é a eventual sanção imponível à imperfeição do ato[55].
Como o processo é o somatório da relação jurídica processual com o conjunto concatenado de atos (procedimento), os tipos de invalidades processuais estão diretamente ligados aos tipos de defeitos que apresentem os atos processuais.
Tendo-se em vista que os atos possuem requisitos e nem todos eles possuem a mesma importância, os tipos de invalidades estão estreitamente relacionados a eles[56].
Carnelutti classifica esses requisitos dos atos em necessários e úteis, a eles correspondendo os vícios essenciais e não-essenciais, respectivamente[57].
Para o referido doutrinador italiano, os requisitos necessários são essenciais para, segundo a técnica, conseguir-se a finalidade do ato, e sua ausência enseja nulidade[58].
Como os vícios processuais não-essenciais estão relacionados à deficiência de mero requisito útil (e não necessário) para o atingimento da finalidade, estes dão origem a meras irregularidades, que podem ser corrigíveis ou não, porém, sem nunca causar invalidade processual.
A seu turno, entretanto, os vícios essenciais (respeitantes a requisitos necessários para o ato alcançar sua finalidade), por sua importância quanto à validade do processo, foi objeto do estudo de Galeno Lacerda.
O conspícuo gaúcho sistematizou o grau das invalidades ensejadas pelas deficiências dos requisitos essenciais dos atos processuais conforme a natureza da norma (se cogente ou dispositiva) e em razão de seu aspecto teleológico (se tutelado, preferentemente, o interesse público ou privado)[59].
Tendo em vista que os atos processuais dependem de forma para se realizarem, e a forma compreende o modo, o tempo e o lugar em que se realiza o ato[60], a desconformidade a esta gerará vício; porém, nem todo vício é de igual importância e, por isso, deve-se diferençá-los.
Destarte, por essa doutrina, as invalidades, decorrentes dos vícios essenciais, podem ser a nulidade absoluta (quando decorrente de violação de norma cogente em que prevalece o interesse público), nulidade relativa (contrariedade a norma cogente em que prevalecente o interesse das partes) e anulabilidades (violação de norma dispositiva, em que sempre prevalece o interesse das partes).
A anulabilidade é decorrente de violação de norma dispositiva (não-cogente), a qual é violável, pois, a partir do momento em que é concretizado o seu suporte fático, torna-se obrigatória a sua aplicação (o pressuposto da contrariedade a direito não reside na imperatividade ou dispositividade da norma: sempre que ela incide e não é aplicada existe infração)[61].
A principal característica da anulabilidade é ser ela sempre sanável e pela mera inação da parte[62], devendo esta alegá-la na primeira oportunidade em que lhe couber falar nos autos, só a decretando o juiz, provocado pela parte (nunca de ofício), se tiver havido prejuízo.
À sua vez, no outro extremo está a nulidade absoluta, que é decorrente de infração a norma cogente em que prevalece a tutela do interesse público; a nulidade absoluta é decretável de ofício e a qualquer tempo e grau ordinário de jurisdição, podendo as partes requerer sua decretação também a qualquer momento, arcando, porém, com as custas de retardamento. O vício que enseja a nulidade absoluta é insanável.
Entre os dois últimos tipos de invalidades processuais está a nulidade relativa, decorrente de desrespeito a norma cogente, porém em que predomina a tutela a interesse da parte.
A nulidade relativa é decretável ex officio; só será, porém, decretada se não tiver sido atingida a finalidade do ato e houver prejuízo para a parte; impassível de preclusão para o juiz, precluirá, todavia, para a parte que não argüi-la na primeira oportunidade, sendo o seu vício sanável[63].
O sistema das nulidades no processo civil brasileiro é regido por um conjunto de princípios, tendo em vista a instrumentalidade do processo, isto é, como meio de realização do direito, procurando-se, assim, sempre que possível, salvar-se o processo.
Passamos, a seguir, a uma breve análise desses princípios.
O sistema de nulidades do processo civil tem como princípios informativos o da liberdade de forma, o da finalidade, o do aproveitamento, o do prejuízo, o da consolidação e o da causalidade. Veremos algumas características importantes desses princípios, em separado, a seguir.
10.1 Princípio da liberdade de forma
De acordo com o art. 154 do CPC, os atos e termos processuais não dependem de forma determinada, senão quando a lei expressamente o exigir, reputando-se válidos, mesmo os realizados de outro modo, os que preencham sua finalidade essencial.
Diante disso, somente haverá falar-se em invalidade (nulidade absoluta, relativa ou anulabilidade), quando a lei exigir forma e o ato, praticado de forma diversa ao prescrito, não atingir sua finalidade.
Tendo em vista que a forma não é um valor em si, mas, sim, existe em razão de uma finalidade, evidencia-se outro princípio dos mais importantes[64].
10.2 Princípio da finalidade
Nos termos do art. 244 do CPC, quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.
Diante disso, pode-se entender que, quando a lei exige forma sob pena de nulidade, isto é, nulidade cominada, haveria presunção, iuris et de iure, do não atingimento do fim[65]; entretanto, não depende de ser nulidade cominada ou não para que inexoravelmente se tenha de repetir o ato, tachado de inválido, mas, sim, dependerá de ser a nulidade absoluta, pois há nulidades cominadas relativas[66].
Assim, quando o art. 244 assevera que será observada a finalidade do ato sempre que não lhe for cominada nulidade, deve-se ler, mesmo cominada a nulidade, salvo se esta for absoluta (norma cogente em que prevalente o interesse público)[67], observar-se-á a finalidade, sem apego às formas.
Como afirma Portanova[68], “às vezes, o ato praticado com vício atinge só parcialmente a finalidade, sendo, por isso, indispensável estar atento ao princípio do aproveitamento.”
10.3 Princípio do aproveitamento
À luz deste princípio, não se declarará a nulidade, quando possível suprir o defeito ou aproveitar parte do ato, isto é, aproveita-se o ato, ou parte dele, evitando-se o retroceder processual, com supedâneo na finalidade e economia processuais, quando o vício puder ser suprido sem prejuízo das partes ou do interesse público[69].
De tal modo, com base no art. 249, § 2º, do CPC, o juiz não deve pronunciar a nulidade (nem repetir o ato ou suprir a falta) se puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveitaria a decretação de nulidade.
Também por esse princípio, o erro de forma acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, assim como a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras, que dela sejam independentes[70].
10.4 Princípio do prejuízo
A forma, em processo civil, não tem valor em si, mas, sim, existe para evitar prejuízos para as partes em sua liberdade de atuação[71].
Destarte, na prevalência do interesse público em salvar o processo, não deverá ser decretada nulidade (nem repetido o ato, nem suprida a sua falta) se não houver prejuízo para a parte, salvo se, mesmo havendo prejuízo, este tiver sido causado pela própria parte prejudicada[72].
10.5 Princípio da consolidação
O princípio da consolidação vem afirmado no art. 245 do CPC, segundo o qual, a nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão, isto é, convalidação do ato viciado.
Resta evidente que este princípio só se aplica aos vícios convalidáveis, quais sejam, a anulabilidade (que se convalida pela mera inação da parte) e a nulidade relativa (proveniente de norma cogente no interesse da parte), que preclui para as partes, porém não para o juiz[73].
Este princípio, ademais, está em consonância com o da economia processual, tendo em vista não ser lícito à parte prolongar um feito que sabe viciado, devendo, então, esta argüi-lo na primeira oportunidade, sob pena de convalidação (conforme o vício, a pena será o pagamento das custas de retardamento).
10.6 Princípio da causalidade
O princípio da causalidade, previsto no art. 248 do CPC, consoante o qual, anulado o ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes que dele dependam, e no art. 249, que dispõe dever o juiz declarar quais atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados, têm por base a presunção absoluta de contaminação dos atos que, subseqüentes, sejam dependentes do ato viciado.
Assim, tem-se que somente os atos posteriores e que, concomitantemente, sejam dependentes do ato anulado é que serão considerados nulos também[74].
11 Convalidação dos vícios processuais
Como se viu anteriormente, o vício essencial do ato processual pode levar a três níveis diversos de invalidade, em uma visão endoprocessual: a anulabilidade (o mais brando), a nulidade relativa e a nulidade absoluta (o mais severo).
Entretanto, em uma visão exoprocessual, isto é, tendo como marco a sentença e “o seu trânsito em julgado que, com seu poder de sanação, cobre a nulidade, de tal sorte que também a sentença nula produz efeitos enquanto não rescindida”[75], os vícios que as decisões judiciais podem apresentar são agrupáveis em três grandes categorias, nas palavras de Barbosa Moreira:
[...] A) a dos que não resistem à eficácia preclusiva da coisa julgada e, por isso, não alegados em recurso, se tornam irrelevantes (assim o error in iudicando decorrente de má apreciação da prova); B) a dos que, após o trânsito em julgado, podem servir de fundamento à desconstituição, mediante ação rescisória, mas não impedem a decisão de produzir, nesse ínterim, todos os efeitos normais (assim, a incompetência absoluta do órgão judicante); C) a dos que, dispensando o exercício da rescisória, são alegáveis por outros meios, v.g., como óbices à execução, através de embargos (assim, a falta ou nulidade da citação inicial para o processo decorrido à revelia)[76].
De forma semelhante, Tesheiner classifica os vícios processuais, sob o aspecto de sua convalidação, em preclusivos, rescisórios e transrescisórios[77].
Assim, tem-se que há vícios, como é o caso das anulabilidades e dos meros impedimentos processuais, que só poderão ser argüidos até a primeira oportunidade que a parte prejudicada (ou seja, com interesse processual) tiver para falar nos autos, restando convalidado a partir de então. Isso, evidentemente em uma visão endoprocessual, isto é, até o trânsito em julgado.
Os vícios preclusivos são os que restam convalidados pela eficácia saneadora da coisa julgada, assim, não tendo sido alegados em recurso, não mais poderão ser questionados. A invalidade acaso presente na sentença deixa de existir como tal a partir de seu trânsito em julgado, convertendo-se a nulidade em simples rescindibilidade[78].
Porém, vícios há que, por sua gravidade, levou o legislador, embora a segurança das relações sociais exija que a autoridade da coisa julgada não fique sujeita à possibilidade de remoção por período longo de tempo, optar por um prazo de dois anos para a desconstituição da coisa julgada de sentença fulminada com algum desses vícios, visto que sobrevivem ao trânsito em julgado.
Entretanto, vícios de maior monta existem que não podem ser sanados pelo mero decurso do tempo, não se restringindo nem à coisa julgada, nem ao exíguo prazo decadencial de dois anos da ação rescisória, podendo a qualquer tempo ter seus efeitos (se vierem a gerá-los) desconstituídos. Esse é o caso do réu revel não citado ou nulamente citado, para quem a sentença proferida é ineficaz; assim como da sentença não escrita, não assinada ou sem dispositivo, que é juridicamente inexistente[79]. Assim, nesse caso a sentença ineficaz ou inexistente pode ser reconhecida como tal em habeas corpus, mandado de segurança, etc., não necessitando do meio da rescisória.
Destarte, a sanação das invalidades processuais está sujeita a três graus distintos, da mesma forma que o julgado possui três graus de imodificabilidade, a saber, um mínimo, quando a sentença ainda é recorrível; um médio, quando a sentença é tão-somente rescindível; e um máximo, quando sequer por rescisória puder ser atacado o julgado[80].
Ademais, vale lembrar as palavras de Galeno Lacerda, segundo quem, o efeito saneador do prazo é fator estranho à natureza da nulidade; ela permanece absoluta, o que desaparece é o direito a obter a declaração do vício[81]. Acrescenta Dall’agol Jr. que o vício não se desfaz, o que desaparece é a pretensão ao reconhecimento e desconstituição da invalidade[82].
CONCLUSÃO
A relação jurídica de direito processual, como relação de direito público, entabulada entre os jurisdicionados e o Estado, com o escopo de que este lhes preste a tutela de seus direitos, em vista da proibição da autotutela, possui requisitos próprios para sua validade, independentes e diversos dos da relação de direito material.
Esses requisitos são chamados de pressupostos processuais e constituem matéria de ordem pública, pois deles depende a validade do meio pelo qual o Estado presta a jurisdição.
Por serem de ordem pública, pode e deve o juiz, de ofício, conhecer de seus vícios ou ausência, até a prolação da sentença, não havendo preclusão.
Por outro lado, o processo, além da relação jurídica de direito processual, é formado por um conjunto concatenado de atos processuais, ao qual se dá o nome de procedimento.
Em regra, esses atos são de forma livre, importando a sua finalidade; no entanto, podem eles ser, por uma razão ou outra, viciados.
Esses vícios podem dar causa a invalidades que podem ser classificadas em meras irregularidades, anulabilidade, nulidade relativa e nulidade absoluta, conforme sejam geradas por violação a norma cogente ou dispositiva, no interesse das partes ou público.
A invalidade (lato sensu) é a sanção que se aplica ao ato viciado, obrigando, conforme o caso, seja repetido ou por outro modo sanado.
A declaração da invalidade é regida por princípios gerais que a orientam no sentido da preservação do processo com vistas à celeridade e efetividade na prestação jurisdicional.
Assim, o ato processual, embora viciado, sempre produz efeitos até que se lhos tire por decisão judicial.
Vícios há, porém, que são sanados pela mera inação das partes, outros resistem até o trânsito em julgado e poucos a ele sobrevivem, dentre os quais raros permanecem após o transcurso do prazo para ação rescisória.
Destarte, o instituto das invalidades e dos pressupostos processuais devem ser orientados por princípios que maximizem a instrumentalidade do processo, afastando o apego ao formalismo exagerado e buscando fazer do processo um verdadeiro meio para a realização do direito, cujo fim é a pacificação das relações sociais.
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[1] Cf. SILVA, Ovidio Baptista da. Curso de Processo Civil. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 75.
[2] Apud SILVA, op. cit., p. 76.
[3] Cf. VECCHIO, Giorgio del. Lições de Filosofia do Direito. 5. ed. Tradução e notas: António José Brandão. Coimbra: Armênio Amado, 1979, p. 434-438.
[4] Cf. SILVA, op. cit., p. 80.
[5] Cf. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. 1, p. 87.
[6] Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições De Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1969, v. 1, p. 17.
[7] Cf. ALVES, op. cit., p. 183.
[8] Cf. CINTRA, Antônio C. de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 19-36.
[9] Cf. SILVA, op. cit., p. 85.
[10] Cf. SILVA, op. cit., p. 93.
[11] Idem, p. 82.
[12] Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, v. 2, p. 196.
[13] Idem, ibidem.
[14] Cf. BÜLOW, Oskar von. Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais. Tradução e notas: Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2003, p. 5-19.
[15] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 215.
[16] Cf. TESHEINER, José Maria. Pressupostos Processuais e Nulidades no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 101.
[17] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 196.
[18] Cf. SILVA, op. cit., p. 102-109.
[19] No entanto, sabe-se totalmente infenso à economia processual e aos princípios que informam o processo deixar-se somente para o momento da sentença a análise das condições da ação; parece-nos ser mais conforme a estes princípios a teoria segundo a qual as condições da ação devam ser averiguadas in statu assertionis, isto é, no momento da análise da petição inicial, logo após a verificação dos pressupostos processuais.
[20] Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições De Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1969, v. 1,
p. 69.
[21] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 216.
[22] Cf. TESHEINER, op. cit., p. 32.
[23] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 53 e 216.
[24] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. Pressupostos Processuais. Porto Alegre: Le Jur, 1988, p. 21.
[25] Cf. SILVA, op. cit., p. 93.
[26] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 58-59.
[27] Idem, p. 60.
[28] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 65-66.
[29] Idem, p. 28.
[30] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 247.
[31] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 282.
[32] Cf. SILVA, Ovidio Baptista da, GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 140.
[33] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 284.
[34] Cf. ALVES, op. cit., p. 97.
[35] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 287.
[36] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 34.
[37] Cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do Processo e da Sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 39. “A citação é pressuposto de existência, e a citação válida, pressuposto de validade.”
[38] Cf. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Réu revel não citado, ‘Querela nulitatis’ e ação rescisória. In Revista Ajuris, Porto Alegre, ano XV, nº 42, março de 1988, p. 15, nota 18.
[39] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 29.
[40] Idem, p. 34, nota 11.
[41] Cf. DINAMARCO, op. cit., p. 53.
[42] Cf. FABRÍCIO, op. cit., p. 14.
[43] Cf. DINAMARCO, op. cit., v. 3, p. 330.
[44] Cf. DINAMARCO, op. cit., v. 2, p. 463.
[45] Cf. PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 28-29.
[46] Cf. PORTO, op. cit., p. 34-38.
[47] Cf. DINAMARCO, op. cit., v. 3, p. 136.
[48] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 34.
[49] Cf. TESHEINER, op. cit., p. 05.
[50] Apud DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 25.
[51] Idem, ibidem.
[52] Idem, p. 38.
[53] Idem, p. 22.
[54] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 43.
[55] Cf. TESHEINER, op. cit., p. 11.
[56] Cf. DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 39.
[57] Cf. CARNELUTTI apud DALL’AGNOL, Jorge Luís. op. cit., p. 39.
[58] Idem, ibidem.
[59] Cf. LACERDA, Galeno Vellinho de. Despacho saneador. Porto Alegre: La Salle, 1953, p. 70-74.
[60] Cf. DALL’AGNOL Jr., Antônio Janyr . Invalidades Processuais. Porto Alegre: Le Jur, 1989. p. 69.
[61] Idem, p. 47.
[62] Cf. DALL’AGNOL Jr., Antônio Janyr . op. cit., p. 55.
[63] Idem, p. 54.
[64] Cf. PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 188.
[65] Cf. PORTANOVA, op. cit., p. 188.
[66] Cf. DALL’AGNOL Jr., Antônio Janyr . op. cit., p. 71.
[67] Idem, p. 70-72.
[68] Cf. PORTANOVA, op. cit., p. 190.
[69] Cf. PORTANOVA, op. cit., p. 190.
[70] Idem, p. 191.
[71] Idem, p. 192.
[72] Idem, p. 193.
[73] Cf. DALL’AGNOL Jr., Antônio Janyr. Comentários ao Código de Processo Civil. Porto Alegre: Le Jur, 1985, v. 3, p. 439.
[74] Cf. PORTANOVA, op. cit., p. 196.
[75] Cf. FABRÍCIO, op. cit., p. 13.
[76] Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 5, p. 303.
[77] Cf. TESHEINER, op. cit., p. 277-287.
[78] Cf. MOREIRA apud FABRÍCIO, op. cit., p. 22.
[79] Cf. TESHEINER, op. cit., p. 285.
[80] Cf. FABRíCIO, op. cit., p. 21.
[81] Cf. LACERDA, op. cit., p. 72.
[82] Cf. DALL’AGNOL Jr., Antônio Janyr . Invalidades Processuais. Porto Alegre: Le Jur, 1989, p. 53.
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul. Doutorando em Direto pela Università di Roma Tor Vergata.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Eduardo Cunha da. A relação jurídica de direito processual: pressupostos e vícios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 fev 2011, 09:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23453/a-relacao-juridica-de-direito-processual-pressupostos-e-vicios. Acesso em: 23 dez 2024.
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