RESUMO
O presente artigo tem como objeto o direito fundamental à liberdade e a indaga, sob o âmbito jurídico constitucional, sob análise da linguagem doutrinária do Direito, no tocante à autonomia da instituição familiar. Expressamente verifica-se no texto constitucional o direito à liberdade física, de expressão individual e coletiva e de trabalho ou profissão. Tomando por parâmetro a axiologia do sistema constitucional vigente podemos sustentar com fulcro no artigo 226 e seguintes da CF, a liberdade para instituir família, conduzi-la de modo a se esperar do Estado o respeito às liberdades públicas, tradicional prestação negativa em face do que se convencionou moral, legal e normal e sua proteção efetiva quando da violação de direitos. Ater-nos-emos a reflexão sobre a crescente intervenção do Estado na família e a inconstitucionalidade, como evidencia o Projeto de Lei 2.654/2003, da popularmente conhecida lei “da palmada”. Para tanto foi utilizada a metodologia do método dialético, com a pesquisa bibliográfica e documental. O objetivo específico é a efetividade da norma constitucional e a realização do direito à liberdade. O objetivo geral é a efetividade do principio da dignidade da pessoa humana na instituição familiar.
Palavras-chave: liberdade; instituição familiar; “lei da palmada”; inconstitucionalidade.
ABSTRACT
The present article has as the object the fundamental right of Liberty and requests, (under a constitutional juridical extent), under the analyses of the Law Language doctrinaire, regarding the autonomy of the familiar institution. Express The right of Physical Freedom, of individual and collective expression and of work or profession are noticed in the constitutional text. Having as a parameter the axiology of the running constitutional system it is possible to maintain with support in the article 226 and following of the FC, the freedom to build family, to conduct it in a way to expect from the State the respect to public liberties, traditional negative rendering in the face of what has been agreed moral, legal and normal and its effective protection when of the rights violation. Let us stay to the reflection on the increasing intervention of the State on the Families and to the unconstitutionality, as the Law Bill 2.654/2003 evidences, of the popular known “law canning”. For that the methodology of the dialectics method has been used with a bibliographic and documental survey. The main objective is the effectiveness of the constitutional norm and the establishment of the right of liberty. The general objective is the effectiveness of the principle of the human being dignity in the familiar institution.
Keywords: liberty, familiar institution, “law canning”, unconstitutionality
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO. 1. DA LIBERDADE AO DIREITO. 2. DO QUE É MORAL, LEGAL E NORMAL: UM CRITÉRIO. 3. DA SOBERANIA AO ABUSO DE PODER. 3.1 Os fundamentos do Estado brasileiro e seus objetivos fundamentais. 3.1.2 A dignidade humana em sua “porção” Liberdade. 3.1.3 Família: pathos para a realização da personalidade humana e. 4. AUTORIDADE E PODER NA FAMÍLIA. 4.1 A autoridade e o poder. 5. DO PROJETO QUE VIOLA DIREITO FUNDAMENTAL 15 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
O trabalho é o resultado de uma pesquisa de direito stricto sensu, acerca da Liberdade. Um valor sobre o qual os ordenamentos jurídicos se dedicam a preservar e garantir em normas fundamentais, de alta relevância, cuja fonte é um tipo de norma de jus cogens, sem o qual a dignidade da pessoa humana restaria comprometida ou incompleta.
Se tomarmos o Direito como ciência normativa e que a norma jurídica é um comando de repressão, que limita as condutas humanas por meio do que é permitido ou do que é proibido ou do que é facultado, percebemos sem dificuldade que estamos na área de liberdade objetiva. Mesmo diante do comando de “faculdade” normativa verifica-se uma autonomia que não corresponde a liberdade subjetiva ou filosófica. Isto per se nos explica a idéia das Liberdades Públicas como direito-garantia de prestação negativa do Estado, uma conduta de non facere do Estado em determinadas áreas do comportamento humano.
Portanto, neste contexto de liberdade jurídica, a problemática investigada é a seguinte: o Estado ao defender valores da família estaria por via inversa a violar as liberdades públicas e o principio geral de direito à autonomia da instituição familiar, quando toma a iniciativa de um projeto de lei como este conhecido como “lei da palmada”. Estaria deste modo a violar a liberdade na forma de autonomia da instituição familiar como preceito fundamental ao não se abster na educação informal, no seio das famílias, a eleger no lugar dos pais os meios de limitar a conduta dos filhos menores, no processo de sociabilização dos mesmos, esta interferência não seria algo abusivo a ferir as liberdades públicas?
Sabemos que os direitos fundamentais são relativos, convivem e devem conviver numa unidade harmônica, vale dizer, não são hierarquizados, tão pouco absolutos, e por isso mesmo existe proteção especial para tutelar a criança e o adolescente, para coibir os abusos de direitos destas, garantindo-lhes tutela diferenciada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA faz o Estado a defesa contra a violência de qualquer forma praticada contra a criança e o adolescente. Mas ao afirmar determinados valores em detrimento de outros, não se estaria diante de uma colisão real de direitos? Ao negar autonomia de educação informal as famílias não seria cerceamento de liberdade? Será que isto atinge o núcleo essencial do direito à liberdade na sua expressão de natural realização da personalidade humana, de sua dignidade justamente no período de formação da personalidade da criança, proporcionando a transição normal para a adolescência? Esta é uma questão dentre outras (como os novos arranjos familiares presentes na sociedade brasileira atual, mas que não será objeto do presente artigo) que envolvem a liberdade de autonomia da instituição familiar.
A Constituição Federal de 1988 expressa em seu catálogo aberto de direitos e garantias fundamentais o direito à liberdade de querer/fazer aquilo que é legal, moral e normal.
No contexto exposto será o presente artigo desenvolvido numa abordagem cuja pesquisa utilizou a linguagem doutrinária do Direito, com os propósitos mais relevantes de contribuir para a pacificação das tensões sociais e a concreção do pluralismo, assegurada a liberdade ou autonomia da família de se conduzir, de eleger por sua vontade os meios de educação, bem como a “linha” educacional desejada para a expressão dos valores ideológicos, religiosos, morais e intelectuais dos pais transmitidos aos filhos.
1. DA LIBERDADE AO DIREITO
A Filosofia como saber aporético permite a reflexão sobre seus objetos sem esgotá-los possibilitando, contudo, um contínuo “manancial” revelado diante das contribuições da Cultura, propiciando o ato de pensar e repensar as coisas do mundo. Neste sentido a Liberdade sempre poderá ser pensada e repensada com as valorações de implicações recíprocas trazidas pela Cultura, pela moral ora idealista, ora realista. Mas algo de universal se extrai desta idéia, a de liberdade que fica bem definida por seu contrário, podemos definir liberdade como a ausência de coerção externa, estado do ser que só obedece a sua vontade [1].
Num sentido existencialista [2] poderíamos dizer que o homem está “condenado à liberdade”, assim estabelecido “o homem no governo de si”, como ser cultural, e que não há um determinismo metafísico a lhe conduzir os caminhos. Responsável mesmo pelos mecanismos de repressão e controle que cria como o Direito, essenciais, em certa medida, a vida comunitária e ao Bem Comum.
Podemos perceber que tais mecanismos de controle e repressão são imanentes à condição humana [3]. O homem ser gregário e moral, não se restringiu ao mundo de Natureza. Com a Cultura vem marcando o processo de hominização, de valoração das coisas do mundo, que o distingue dos demais seres. Durante muito tempo nas civilizações antigas de que temos noticias [4] até por volta do final da Idade Media, a Moral (diga-se, moral religiosa) e o Direito eram uma só manifestação da lei [5] com seus mecanismos de controle e repressão.
Hodiernamente, o Direito pôde ser compreendido como mínimo Ético, separado da Moral. De maneira que, qualificada pelo Direito apenas restariam as condutas de maior necessidade e relevância para a defesa e proteção daqueles bens valorados em alta conta pela moral, mas que desta ficariam em insegurança, a mercê de uma violação intolerável à sociedade, daí o Direito as qualifica.
Seguindo esta análise cabe a ilação de que da “Liberdade” ao “Direito” tem sido o percurso civilizatório. Cada vez mais o agir humano está limitado pela ação estatal. Quanto mais complexa a sociedade, mais complexo o mecanismo de controle e repressão, para equilibrar as tensões sociais. O Direito, tanto mais complexo e maior, para conter as tensões sociais, disciplinar as condutas por meio de suas normas e modelar a sociedade desejada pelo Estado. Este tem sido o caminho encontrado para o alcance do Bem Comum em meio as múltiplas demandas contemporâneas e, sem dúvida, nos distanciamos cada vez mais da Liberdade no sentido absoluto.
Por isso mais apropriado seria o uso do termo autonomia, prerrogativa, faculdade em lugar de liberdade, por considerar mais adequado, visto que, é nestes termos que se verifica o direito à liberdade enquanto direito fundamental. Sendo possível uma definição jurídica desta faculdade que é relacional porque ela se manifesta dentro de um espaço pré-dado pelo sistema jurídico, ou seja, “o meu direito vai até onde começa o do outro” [6] ou ainda, aquilo que não está proibido para o particular, está permitido [7], não por acaso a noção basilar de liberdade de ação é extraída do art. 5º, II, CF/1988, que consagra o princípio de legalidade [8]. São seguramente no parâmetro normatizado pelo Direito que as relações intersubjetivas são desenvolvidas e consideradas legais, morais, normais.
2. DO QUE É MORAL, LEGAL E NORMAL: UM CRITÉRIO OBJETIVO PARA O DIREITO
A Ética é uma parte da Filosofia, nela se busca padrões universais e amplos verificados na moral como consensos gerais, podemos defini-la como “a teoria do comportamento moral dos homens em sociedade” [9] que servem como preceitos de conduta à toda humanidade para a busca da felicidade comum. “A Ética é diferente de ética que é igual a moral.”[10] Com isso, num sentido estrito moral é a prática, de fato, das regras do agir pela sociedade e, assim sendo, é relativa cambiante, altera-se conforme tempo e espaço.
Feitas estas considerações podemos retomar a questão realeana do Direito enquanto mínimo ético. Miguel Reale [11] citando Gentile e Binder representa a moral e o Direito como em círculos concêntricos, este menor e contido naquele maior. São distintos, mas, o direito nunca deve ser contra a moral porque lhe “escaparia” a própria lógica constitutiva, pois, como antes comentamos somente as condutas mais caras à moral estariam prudentemente destinadas às regras jurídicas sob a tutela do Estado, positivadas nos sistemas jurídicos internos, Direito. Vale dizer que a axiologia da norma jurídica deve ter conteúdo moral, facilitando e adesão social ao cumprimento da norma jurídica, embora não se negue também que possa ser ato de vontade do legislador.
Portanto, a implicação entre moral e direito demonstrada bastaria na especulação entre o legal e o moral, todavia é possível que o ato de vontade do legislador em nada diga respeito à moral vigente e assim ainda resta a idéia de legalidade.
Pois bem, em sentido estrito, legal é o ato normativo, fato jurídico em conformidade com a lei, que encontra fundamento e derivação no ordenamento jurídico hierarquizado, representado pela pirâmide kelseana, em cujo topo, hierarquia máxima, está a Constituição que dá validade a todo o sistema jurídico infraconstitucional. Em sentido lato legal também é o que está conforme o uso e o costume ou assentado pela jurisprudência.[12]
Resta desvelar o que é normal. Em sentido léxico considera normal o que é regular, o que está no curso usual das coisas, conforme a ordem, costumeiro, estabelecido pela praxe ou estilo, habitual.[13]
Observamos então que o direito à liberdade deve resguardar uma reciprocidade com as condutas que a sociedade habitualmente, costumeiramente, compreende como correta, porque é desta junção (moral, legal, normal) que demonstramos conceitualmente ser o critério objetivo para o legislador balizar sua ação normativa porque estaria pertinente com um quadro de valores socialmente aceitos. De maneira que nos parece que anormal é a ingerência do Estado a invadir a vida privada e intima das famílias na educação informal dos filhos, já não bastasse o Estado a modelar a coletividade com a educação formal. Quê autoridade é está que o Estado atribui-se em ser o ente capaz de pré-dizer o limite da dor na criação e formação dos indivíduos?
3. DA SOBERANIA AO ABUSO DE PODER
A construção histórica dos direitos fundamentais é a expressão da necessidade de conter o abuso de poder do soberano, do monarca, do Estado sobre os indivíduos no desmedido e arbitrário exercício de controle e repressão impostas, e de certo modo aceitas como o argumentado em “O Discurso sobre a Servidão Voluntária”, de Etienne de La Boétie, nas formas possíveis, em cada civilização, nas varias formas de organização política que os povos apresentaram ao longo dos tempos.
Da soberania oriunda do poder de imperium presente na Antiguidade à ficção da soberania popular, transferindo a titularidade desta ao povo, chegamos à contemporaneidade, onde o constitucionalismo fortalecido e fundamentado nos direitos humanos pôde com as experiências exauridas das grandes declarações de direitos [14], do Estado Liberal, do Estado Social, consolidar, no plano teórico, a prevalência dos direitos humanos na defesa e proteção da dignidade da pessoa humana, coordenar e limitar as relações do Estado com o cidadão, na fórmula do Estado Democrático de Direito, simbolizando o Estado de legalidade. Legalidade preenchida dos valores contemplados pelo direito material, na realização da justiça social e a democracia como a garantia geral dos direitos fundamentais.[15] O Estado Democrático de Direito seria o “justo meio” de mediar os excessos da experiência do liberalismo e do socialismo.
3.1 Os fundamentos do Estado brasileiro e seus objetivos fundamentais.
O artigo 1º da Constituição dispõe sobre os fundamentos do Estado e o artigo 3º seus objetivos. Extrai-se do texto a “soberania” como poder político supremo e independente. A “cidadania” como condição que reconhece no indivíduo a potencialidade de se integrar na sociedade estatal e de ser titular de direitos políticos em conexão com a soberania popular e a “dignidade da pessoa humana” - centro aglutinador de todos os direitos fundamentais. O “pluralismo político”, democracia que não é totalitarismo, pois, é capaz de atender as necessidades das maiorias e garantir, sobretudo, os das minorias e grupos vulneráveis, respeitadas as diferentes ideologias e etnias diversas. Com os “valores sociais do trabalho” e a “livre iniciativa” vale dizer, o constituinte originário reconheceu as diferenças sociais, empobrecimento, geradas pelo capitalismo e a concentração de renda em nosso país, assim, a necessidade de uma economia que propicie e favoreça o pleno exercício da dignidade com a redução da pobreza. De modo que se verifica uma Constituição que traz o modelo de uma democracia social, participativa e pluralista.
Quanto aos objetivos, cujo propósito é “o aparelhamento ideológico do texto constitucional” [16], verifica-se tratar de uma modelação dirigente, uma Constituição que transforme a sociedade, inserindo ai as prestações positivas do Estado no rol de direitos fundamentais, uma característica típica do Estado Social.
Esta característica exige a nossa atenção máxima para que neste fim do Estado Social não haja o abuso e a violação de direitos fundamentais tradicionalmente de prestação negativa, intervindo abusivamente o Estado naquele grupo de direitos intangíveis.
Logo, àquela pergunta feita no final do item 2 respondemos aqui: a autoridade atribuída ao Estado por meio da Assembléia Constituinte está limitada pelo texto constitucional originário, na competência funcional dos poderes do Estado exercidos na medida da observação da vida real, do que é consenso na sociedade, pelo uso regular, do costume de comportamentos considerados morais e normais. A inteligência do artigo 226 primeiro garante a autonomia da família como pressuposto da dignidade humana e coloca o Estado na defesa e proteção da instituição inclusive para coibir a violência no âmbito familiar.
O avanço, o exceder na repressão ou controle de comportamentos manifestados pelo comportamento standart do homem comum, sobre as condutas que incorporam a tradição brasileira, geram o abuso de direitos. O Estado deve dar o limite da dor que os indivíduos devem suportar observando o comportamento standart da cultura e neste diapasão o uso da palmada, do beliscão, fazem parte dos padrões normais, morais de repressão e controle exercidos pelos pais na educação dos filhos, habituais da cultura brasileira.
Se a violência física, praticada pelos pais, contra crianças e adolescentes se constitui numa preocupação do Estado, se devido aos elevados índices apurados de violência, que suscite um projeto de lei que altere o ECA, antes, outras considerações são pertinentes. Por exemplo, supor que justamente é do uso normal da reprimenda física, como a palmada, que é pratica do senso comum, normal e, portanto, estaria no desvio desta normalidade a explicação para as lesões praticadas contra os direitos dos menores, ressaltando que tais excessos já estão tipificadas como ilícitos no sistema jurídico vigente [17]. Ou seja, não é proibindo o comportamento comum assente, a pratica normal de uma conduta, que iremos atacar o seu desvio por excesso, mas o próprio excesso! Do contrário fica patente o abuso do poder estatal e a violação de direito fundamental de autonomia na educação dos filhos, que, aliás, ressaltamos, conforme o artigo 227 da Constituição é em primeiro dever das famílias e subsidiariamente do Estado.
Parece-nos, mais que razoável, da hermenêutica do artigo 226 que somente com o abuso da família nos meios de controle e educação dos filhos (levado em conta o grupo de princípios que derivam do acesso à justiça, artigo 5º, inciso XXXV, destacamos o devido processo legal), fica o Estado autorizado a agir, intervindo e, nunca a inversão desta lógica. Nem mesmo sob o argumento, sofista, de concretizar o “dever-ser” constitucional de sociedade pacífica que desejamos no futuro.
Entendemos que na questão em pauta, trata-se de verdadeira violação de direito fundamental, projeto de lei eivado de inconstitucionalidade, tendente a violar cláusula pétrea, preceito fundamental, direito à liberdade na forma de autonomia de instituição familiar.
3.1.2 A dignidade humana em sua “porção” Liberdade
A dignidade humana é uma concepção filosófica cuja fonte remota é a justiça cristã extraída dos Evangelhos [18]. Sermos todos “imagem e semelhança de Deus-pai” [19], dessa filiação e fraternidade “somos irmãos em Cristo e filhos do mesmo Pai celestial” [20], é deste “parentesco”, dogma religioso, que foi concebida a nossa dignidade.
Nascemos desta feita, atribuídos de dignidade, uma característica de Ser Humano e se não somos tal qual o caráter de Deus, isto se deve ao livre arbítrio que nos foi dado por Ele. Significa que potencialmente guardamos a essência de Deus inclusive pelo livre arbítrio. Tanto temos de santos quanto de pecadores. Também no sentido da filosofia cristã a dignidade está perfeita com o livre arbítrio, conforme em Agostinho e Aquino[21].
Literalmente está a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição e fundamento da família conforme artigo 226, da CF, mais objetivamente ela se apresenta de modo concreto no artigo 6º, cunhada na expressão, por Celso Antonio Pacheco Fiorillo, de “piso vital mínimo” [22]. Ao longo do extenso rol aberto de direitos e garantias fundamentais da Constituição a dignidade jurídica da pessoa humana completa-se e resulta da efetiva somatória de todos os direitos fundamentais.
Se considerarmos a repressão e controle como algo essencial à condição humana, assumida pelo Direito, seu contraponto é o ideal de Liberdade. Dialeticamente poderíamos afirmar que o Direito então se completa com a Liberdade embora seja justamente a restrição ou redução desta. Porque, seguindo-se este viés lógico, evidente, que são inseparáveis conceitos que se definem pelos contrários.
No que tange à dignidade humana também está imbricada com a liberdade, desta não se dissocia, na medida de ser manifesta na autodeterminação do Homem, nas palavras de Jorge Miranda “A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativa ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas” [23], um direito absoluto na Constituição e intangível.
Demonstrada a relação de pertinência dialética entre Direito e Liberdade; de completude da dignidade com a autodeterminação da pessoa humana, é na ponderação entre Direito e Liberdade que se verificará a diferença entre arbítrio e direito, na medida também entre a Dignidade composta por parcela de Liberdade traduzida em um direito fundamental relacional de autonomia. Resta-nos ainda relacionar família com a Liberdade, como expressão de nossa Dignidade.
3.1.3 Família: pathos para a realização da personalidade humana e sua autonomia
Fundamental é esclarecer que restaurar o termo pathos com seu original e Antigo sentido grego de “dis-posição global para a existência”, “essencial ao conhecimento”, significa também simpatia, paixão, sendo com estes significados que vamos utilizar o termo. Muito distinto do sentido, prevalecente, médico, empregado na modernidade que quando presente o radical pathos nos remete instantaneamente ao que é doente, enfermo, anormal. De modo algum é este o sentido doravante empregado, mas conforme Martins resgata e esclarece:
O conceito de pathos traz consigo possibilidades e problemas mais amplos que o sentido de doença, não fazendo parte de um só campo de estudos como a palavra “patologia” indica. Investigando-se com mais cuidado percebe-se que se trata de uma dimensão essencial humana. O pathos seria compreendido como uma disposição (Stimmung) originária do sujeito que está na base do que é próprio do humano. Assim,o pathos atravessa toda e qualquer dimensão humana, permeando todo o universo do ser. (...) Na verdade, o pathos estaria antes ligado a uma dis-posição (Stimmung) que antecede o conhecer e o querer. A concepção psicologizante de um eu subjetivo passa a ser encarada de uma maneira crítica, de forma que se perceba seus limites. A preocupação maior que dirige a retomada do pathos significa optar pelo ideal de Homem ou da humanitas.[24]
Por isso, conforme o artigo 227, da CF e dentre os diversos direitos elencados no ECA - Lei n.º 8.069/90, dispõe que a criança ou adolescente tem o direito fundamental de ser criado no seio de uma família, seja esta natural ou substituta, reconhecendo que a família é o arranjo social ou lugar ou a condição mais favorável ao desenvolvimento da personalidade humana. Acreditamos ser assim por possuir esta característica de pathos que se vincula a esfera da vida privada, como também nos parece fundamental e próprio à instituição familiar a autonomia ou liberdade enquanto direito fundamental de assegurar a não intervenção do Estado, no processo de motivação para formação da família, por uma questão afetiva ou assistencial de escolha livre, para que seja a manifestação da autodeterminação de seus membros a eleger os meios e fins e, a partir daí, se desenvolva como entidade protegida pelo Estado, instituída formal ou informalmente, especialmente respeitando-se o regime das liberdades, porque se trata de coisa que não é pública.
O Direito de Família vem se adequando aos novos arranjos familiares com a percepção da transformação das famílias ao longo das ultimas décadas e as decisões dos tribunais tem se mostrado atentas à questão [25]. Claro também que estas transformações dos arranjos familiares demonstram ser fruto da autonomia imprescindível e salutar a realização humana, de sua manifestação pessoal no plano afetivo pertencente à instituição familiar.
A família tem sido a forma de organização mais relevante, no processo de “sociabilização dos imaturos, transmitindo-lhes valores, normas, e modelos de conduta, orientando-os no sentido de torná-los sujeitos de direitos e deveres no universo doméstico e no domínio público.” [26], não sendo a única, pois, neste processo incidem a escola, a igreja, a mídia, os pares de iguais, todavia, a família não só por sua característica de propiciar o pathos, de implicações afetivas, intimamente implicada com a liberdade ou autonomia, por isso mesmo, também juridicamente foi qualificada e desempenha fundamental dever neste processo de educação dos menores, a ela foi atribuída o direito-dever cujo o Estado apenas na falta, abandono material, moral, ilicitude, por abuso, exorbitância no trato ou maus tratos ou carência extrema, subsidiáriamente tomaria pra si tal dever.
Competindo ao Estado, como obrigação positiva, a realização das políticas públicas, os previstos Direitos Sociais da Constituição, capazes de sustentar o desenvolvimento humano e econômico das famílias. Justificada assim, por lógica do sistema constitucional a questão da autodeterminação da família, como um direito fundamental, tradicionalmente pertencente às liberdades públicas.
4. AUTORIDADE E PODER NA FAMÍLIA
Para compreensão de qual “família” tomaremos como referência, vale dizer, que a diversidade na composição doméstica não eliminou a “família nuclear”, constituída por marido, esposa e filhos – biológicos ou adotivos - este será o arranjo tomado por base, porque as pesquisas indicam ser ainda o preponderante na sociedade brasileira. Correspondia no final da década de oitenta a 71% dos arranjos domésticos no Brasil [27]. Depois desta aparece o crescimento das “famílias matrifocais” formadas por uma mulher, seus filhos resultantes de uma ou mais uniões, e um companheiro, permanente ou ocasional, numa incidência de 14,4% dos arranjos familiares [28]. De modo que nossa escolha justifica-se não apenas por ser a forma mais incidente de família brasileira, outrossim, por ter se tornado, a família nuclear, um modelo pelo significado simbólico de que foi revestida.
Importa à questão, para reforço das idéias defendidas aqui, resgatar a noção da esfera pública e privada, trazendo a “polis e a família” numa abordagem de Hannah Arendt, que percebe uma dificuldade provocada pela interpretação latina de expressões gregas, na adaptação ao pensamento romano-cristão agravado no uso moderno da concepção da sociedade, mas que, conservam a distinção de que é no âmago da vida familiar, como o local separado, sagrado e das “privações” necessárias à vida, comumente no seio da família, se delimita a dimensão privada distinta da experiência comum, “real”, da dimensão pública.
A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da antiga cidade-estado; mas a ascendência da esfera social, que não era nem privada nem pública no sentido restrito do termo, é um fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com o surgimento da era moderna e que encontrou sua forma política no estado nacional. O que nos interessa neste contexto é a extraordinária dificuldade que, devido a esse fato novo, experimentamos em compreender a divisão decisiva entre as esferas pública e privada, entre a esfera da polis e a esfera da família, e finalmente entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes à manutenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo antigo pensamento político, que a via como axiomática e evidente por si mesma. [29]
Feitas estas considerações como preâmbulo, a família nuclear, como referência, apresenta uma hierarquia interna, marido/pai exerce autoridade sobre esposa e filhos; há uma nítida divisão sexual do trabalho separando as tarefas e atribuições masculinas e femininas; dupla moral sexual para os gêneros. Essas características articulam-se entre si e dependendo da classe social e do “repertório cultural”, de fato, a família se aproxima do modelo que é flexível, visto que é variável.
A família, tão pouco, é o lugar ou arranjo de relações necessariamente harmoniosas, pois, apresenta projetos individuais que colidem com o que foi qualificado como o projeto coletivo da família, sendo que independentemente do nível material de pobreza (podendo esta apenas aumentar o nível de tensão), acaba por concentrar focos de tensões, assim a família é marcada por uma dinâmica intensa, de modo que a unidade doméstica exige liberdade ou autonomia para mediar as tensões, uma vez que pede da unidade familiar o constante repensar do presente e do futuro, o qual não seria viável sem o poder de autodeterminação.
Assim a divisão sexual do trabalho e as relações de autoridade e poder são ordenáveis no curso da vivência doméstica. O mesmo ocorrendo com as relações afetivas, cuja expressão é organizada e canalizada por modelos culturais próprios de cada camada social. É no processo constantemente reposto da convivência doméstica que a família efetivamente se constitui como grupo, tanto na pratica quanto na representação de seus integrantes. Como grupo organizado para assegurar a manutenção de todos, pais e filhos podem pensar a família como coletividade cuja coesão deve ser mantida para a consecução de objetivos comuns. Na convivência grupal, avaliam-se as possibilidades presentes e pensa-se o futuro, definindo-se meios para se enfrentar as dificuldades cotidianas e para se tentar a melhoria nas condições de vida. Nesse processo, os componentes do grupo doméstico, em especial marido e esposa, organizam um projeto coletivo cuja finalidade é assegurar, através da produção de rendimentos e valores de uso, a manutenção do grupo como um todo e procurar promover sua mobilidade social, sobretudo, a dos filhos.(...) À medida que os filhos deixam de ser apenas consumidores e se tornam geradores de renda, alteram-se os fundamentos de suas posições na estrutura da instituição doméstica, redefinindo as relações de autoridade e poder, o que, muitas vezes, interfere igualmente nos vínculos afetivos. (...) Como grupo de convivência, a unidade doméstica é, na prática, elemento mediador essencial para disciplinar e orientar as possibilidades de concretização de aspirações e interesses individuais, dentro e fora da própria instituição. Por isso, a convivência familiar não é necessariamente harmoniosa, pautada que é pela emergência de anseios e de vontades individualizadas que, com freqüência, colidem com aquilo qualificado como interesse coletivo. [30]
4.1 A autoridade e o poder
Os conceitos de autoridade e poder tem sido considerados “intercambiáveis” nas relações de família, ambas tem a ver com relações de comando e poder, porém, se expressam de modos diferentes, são distintas. A autoridade funda-se no reconhecimento de legitimidade. Poder é o processo que envolve imposição de vontade sobre outrem. O poder é capacidade de sujeição, por isso, é possível se respeitar uma ordem superior a qual não se considera razoável.
A autoridade supõe comando e obediência em uma ordem hierárquica, excluindo meios externos de coerção; seu exercício não depende de persuasão, mas funda-se em experiências comuns, consideradas incontestáveis e que são aceitas por todos. (...) A autoridade está sempre presente em grupos organizados nos quais ela é institucionalizada, constituindo-se como propriedade desses grupos e não dos indivíduos.[31]
Evidente que a interferência externa de coerção na estrutura familiar pode comprometer as relações de autoridade e poder, sendo extremamente nociva ao arranjo doméstico onde se verifica a esfera da vida privada, pois, se é dever da família a educação dos filhos, como educar sem autoridade, impor limites sem poder?
5. DO PROJETO QUE VIOLA DIREITO FUNDAMENTAL
Destacamos que o Projeto de Lei n. 2.654 /2003, da Deputada Maria do Rosário, dispõe sobre a alteração da Lei 8.069, de 13/07/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e da Lei 10.406, de 10/01/2002, o Novo Código Civil, apresenta inconstitucionalidade por vicio material presente no caput do artigo 18A, por violar direito fundamental à liberdade ou autonomia da instituição familiar, corolário da dignidade humana, presente na família “base da sociedade que tem especial proteção do Estado”, expresso no artigo 226 e seguintes da Constituição Federal.
Art. 18A – A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de atendimento público ou privado ou em locais públicos.
No tocante ao caput do artigo 18A na expressão “...direito de não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal...” (grifo nosso), fica proibida a palmada, a chinelada, o beliscão moderado, meios de punição que tradicionalmente é aplicado às crianças, fazendo parte da educação informal no Brasil, pelos pais e responsáveis, na tarefa de impor-lhes os limites necessários no processo de sociabilizá-los, quando não atendem ao comando de autoridade e poder dos pais ou de quem os assuma na hierarquia familiar.
Muito tem se falado na mídia, nos meios acadêmicos ligados as áreas de pedagogia, psicologia da educação, sobre o projeto que ficou popularmente conhecido por “lei da palmada”. Nossa análise será de âmbito jurídico, mas como trata-se de um tema multidisciplinar, também será assim analisado, com a contribuição de outras áreas do conhecimento.
Óbvio que, a violência que Estado visa coibir, com assento constitucional no artigo 226, § 8º, é aquela que extrapola, ameaça a segurança e incolumidade física e moral dos imaturos ou de qualquer membro da família. Importa ressaltar que o desenvolvimento sadio da personalidade envolve a expressão de violência, esta não deve ser reprimida por completo, deve ser manifestada respeitando-se os limites de segurança. Portanto, quando tratamos do tema juridicamente significa o seu excesso, a expressão de violência que provoca dano considerável, ofensivo. Logo não é toda e qualquer forma de violência que é danosa, pois, expressar a violência faz parte da manutenção do equilíbrio das tensões psíquicas de qualquer indivíduo, um mecanismo mental próprio do ser em sua expressão diante do medo, nas varias motivações que podem nos acometer.
A violência, de uma forma ou de outra, nos remete a uma sensação de defesa. Usamos da violência quando buscamos tanto nos defender de perigos externos e imediatos, quanto nos defender de nossos próprios medos e inseguranças interiores. Tornamo-nos violentos quando nos sentimos ameaçados seja física ou moralmente. Por um estranho paradoxo, quanto maior nossa incerteza, nossa fragilidade, nossa insegurança e nosso medo..., maiores são as possibilidades de atitudes violentas (tanto na busca de mostrarmos potência, força, quanto na busca de proteção).[32]
Todavia, o projeto de lei em comento, ataca não somente o excesso de violência nos meios empregados como mecanismo pedagógico de educar no âmbito informal, no âmbito da vida privada, mas, qualquer uso de reprimenda física, que identifica como violência, praticada pelos pais (ou responsáveis) na educação dos menores - visto que, formalmente, na educação escolar não é mais prática consentida por lei [33], não é admitida qualquer forma de correção física e neste ponto o projeto é anacrônico.
Assim, se no âmbito da educação formal a prática já foi abolida conforme a legislação vigente resta o âmbito da vida privada, onde ocorre a educação informal. É neste âmbito que se verifica o vicio material de inconstitucionalidade.
O Projeto de Lei 2654/2003 permite interpretar qualquer uso de reprimenda física, praticada pelos pais contra os filhos, a “punição corporal”, a palmada por exemplo, como aquela violência que está expressa literalmente na Constituição Federal. Desconsidera a hermenêutica do sistema constitucional do principio da unidade harmoniosa da Constituição, bem como o principio da dignidade da pessoa humana em sua porção de manifestação de liberdade ou autonomia da instituição familiar. Pois, desconsidera a tradição da “família nuclear” que usa a medida como forma de educar, reprimindo determinadas condutas dos imaturos e que não implica necessariamente em uma violência que seja maléfica à educação, ao contrário reforça autoridade e poder que são imprescindíveis à estrutura hierárquica do grupo familiar. Como a psicologia informa não é toda expressão de violência que deve ser reprimida por completo. Mesmo porque seria impossível erradicar qualquer e toda forma de expressão de violência que é parte da vida psíquica de todo individuo.
Portanto a “lei da palmada” estabeleceria um paradoxo, pois a Constituição prevê o dever dos pais na educação dos filhos, na assistência material e moral destes e garante a autonomia familiar como corolário da dignidade da pessoa humana, mas, ao exercer influência externa de coerção na esfera da vida privada familiar, desrespeitando os limites entre a esfera pública invadindo a esfera privada, proibindo a punição corporal de qualquer intensidade ou forma, retirar-lhe-ia os meios de eleição, de autodeterminação da família, de escolha livre dos instrumentos pedagógicos, de estabelecimento e manutenção da autoridade e poder na estrutura da família, produzindo o vicio material de inconstitucionalidade por violação do direito à liberdade na manifestação da autonomia familiar.
Não é incomum ouvirmos crianças e adolescentes dizendo aos pais que irão reclamar com o “promotor” e coisas do gênero, como ameaça aos pais, implicando numa potencial desautorização dos mesmos, o que pode comprometer o processo de sociabilização dos imaturos, mas de outro modo, demonstra que as crianças e adolescentes tem consciência de que são sujeitos de direitos, isto se deve a publicidade da legislação vigente, sobretudo do ECA, que as protege contra o abuso e o excesso nos meios de educá-las. Sendo suficiente a aplicação da legislação positiva em vigor com eficácia, para minimizar a violência danosa contra os menores. Sabemos que é impossível erradicar a violência de todas as formas e intensidades da sociedade e da família usando dos mecanismos judiciais. Pois são os mecanismos mentais que as reproduzem no seio da família ou da sociedade porque são parte da psique humana.[34]
O próprio Estado-legislativo coíbe a violência danosa, entretanto, também prevê as exceções, quando está autorizado a agir violentamente, com aquela violência necessária e, portanto benéfica à sociedade. A mesma flexibilidade e ponderação devem ser destinadas à família nos meios empregados de violência como exceções benéficas ao grupo familiar, esta é a autonomia que o direito à liberdade garante às famílias.
Acreditamos que não é a ausência de legislação que deixa impune e fomenta a violência indesejada pelo Constituinte. A incidência da violência nociva, na sociedade brasileira atual aponta para outras causas motores, uma vez que, esta violência indesejada pelo Estado expresso pelo modelo constitucional já está fartamente regulada pela lei [35]. Se a lei não tem alcançado eficácia social, talvez possamos especular que estejamos carecendo de acessos mais igualitários aos bens da vida, carecendo do desenvolvimento de uma moral mais fortalecida, mais amorosa, mais ecológica, que aceite as diferenças étnicas, religiosas e culturais, algo que demanda um amadurecimento na esfera da discussão civil e, por conseguinte, conscientização das massas pelos processos educacionais formais e informais.
Oxalá permita que no futuro sejamos mais pacifistas, menos belicosos e que todas as famílias elejam meios outros de educar os imaturos, que o chinelo e a palmada sejam coisas do passado, descubram assim, novos modelos, formas mais amorosas de se relacionarem, dentro do grupo familiar, própria à esfera privada da vida e conseqüentemente projete-se na sociedade, numa questão afeta essencialmente à Moral.
Defendemos que cabe exclusivamente à família, sem a intervenção do Estado, a decisão desta ou daquela moral adotada, para difusão dos valores e fins que o projeto familiar entenda como o melhor para seus membros, bem como a escolha livre dos meios de impor os limites aos comportamentos dos seus membros, pois é direito fundamental de liberdade consagrado na Constituição Federal, considerando que isto inclui formas de expressão de violência, pois como demonstramos a família apresenta conflitos e tensões, incluindo a punição corporal sim e desde que não se torne nociva e abusiva avançando sobre a incolumidade física e moral fora dos limites normais, é salutar ao grupo. Somente no seu desvio se torna ilegal e anormal, momento em que fica o Estado autorizado a agir, destacamos novamente, conforme a legislação em vigor já disciplina.
Ademais o projeto de lei não respeita o limite entre as esferas da vida privada e da vida pública, ao significar tamanha ingerência na estrutura familiar, violação inescusável do direito à liberdade, confunde os âmbitos sem o qual não há que se falar em direitos e garantias fundamentais, comprometendo toda concepção do regime das liberdades, sine qua non a dignidade humana “pedra angular” dos sistemas constitucionais hodiernos.
CONCLUSÃO
Concluímos que, é mais apropriado o uso do termo autonomia, prerrogativa, faculdade em substituição ao termo “liberdade”, visto que, é nestes termos que se verifica o direito à liberdade enquanto direito fundamental. Sendo possível uma definição jurídica das Liberdades Públicas como direito-garantia de prestação negativa do Estado, uma conduta de non facere do Estado em determinadas áreas do comportamento humano. Esta liberdade ou autonomia é “relacional” porque ela se manifesta dentro de um espaço pré-dado pelo sistema jurídico, ou seja, “o meu direito vai até onde começa o do outro” ou ainda, “aquilo que não está proibido para o particular, está permitido”. É seguramente no parâmetro normatizado pelo Direito que as relações intersubjetivas são desenvolvidas e consideradas legais, morais, normais. Observamos então que o direito à liberdade deve resguardar uma reciprocidade com as condutas que a sociedade habitualmente, costumeiramente, compreende como correta, porque é desta junção (moral, legal, normal) que demonstramos conceitualmente ser o critério objetivo para o legislador balizar sua ação normativa porque estaria pertinente com um quadro de valores socialmente aceitos, portanto com maior adesão à norma jurídica.
Em relação aos objetivos do Estado brasileiro, verificamos se tratar de uma modelação dirigente, uma Constituição transformadora da sociedade, inserindo ai as prestações positivas do Estado no rol de direitos fundamentais, uma característica típica do Estado Social. Esta característica exige a nossa atenção máxima para que neste fim do Estado Social não haja o abuso e a violação de direitos fundamentais tradicionalmente de prestação negativa, intervindo abusivamente o Estado naquele grupo de direitos intangíveis.
O uso normal da reprimenda física, como a palmada, é pratica do senso comum, normal, e os excessos e abusos destas punições corporais já estão tipificadas como ilícitos no sistema jurídico vigente pelo ECA, CP, “Lei Maria da Penha”. Ou seja, não é proibindo o comportamento comum assente, a pratica normal de uma conduta, que iremos atacar o seu desvio por excesso, mas o próprio excesso! Do contrário fica patente o abuso do poder estatal e a violação de direito fundamental de autonomia na educação dos filhos, que, aliás, ressaltamos, conforme o artigo 227 da Constituição é em primeiro dever das famílias e subsidiariamente do Estado.
Há uma a relação de pertinência dialética entre Direito e Liberdade; de completude da dignidade com a autodeterminação da pessoa humana, é na ponderação entre Direito e Liberdade que se verificará a diferença entre arbítrio e direito, na medida também entre a Dignidade composta por parcela de Liberdade traduzida em um direito fundamental relacional de autonomia
Conforme o artigo 227, da CF e dentre os diversos direitos elencados no ECA - Lei n.º 8.069/90, dispõe que a criança ou adolescente tem o direito fundamental de ser criado no seio de uma família, seja esta natural ou substituta, reconhecendo que a família é o arranjo social ou lugar ou a condição mais favorável ao desenvolvimento da personalidade humana. Acreditamos ser assim por suas características que se vinculam a esfera da vida privada, como também nos parece fundamental e próprio à instituição familiar a autonomia ou liberdade enquanto direito fundamental de assegurar a não intervenção do Estado, no processo de motivação para formação da família, por uma questão afetiva ou assistencial de escolha livre, para que seja a manifestação da autodeterminação de seus membros a eleger os seus meios e fins e a partir daí se desenvolva como entidade protegida pelo Estado, instituída formal ou informalmente, especialmente respeitando-se o regime das liberdades, porque se trata de coisa que não é pública.
Compete ao Estado, como obrigação positiva, a realização das políticas públicas, os previstos Direitos Sociais da Constituição, capazes de sustentar o desenvolvimento humano e econômico das famílias. Justificada assim, por lógica do sistema constitucional a questão da autodeterminação da família, como um direito fundamental, tradicionalmente pertencente às liberdades públicas. A interferência externa de coerção na estrutura familiar pode comprometer as relações de autoridade e poder, sendo extremamente nociva ao arranjo doméstico onde se verifica a esfera da vida privada, pois, se é dever da família a educação dos filhos, fica prejudicada o processo de educação sem autoridade, não há como impor limites sem poder de sujeição.
Portanto a “lei da palmada”, que pretende alterar o ECA, artigo 18A, estabeleceria além de um paradoxo, pois a Constituição prevê o dever dos pais na educação dos filhos, na assistência material e moral destes e garante a autonomia familiar como corolário da dignidade da pessoa humana, mas, ao exercer influência externa de coerção na esfera da vida privada familiar, desrespeitando os limites entre a esfera pública invadindo a esfera privada, proibindo a punição corporal de qualquer intensidade ou forma, também retirar-lhe-ia os meios de eleição, de autodeterminação da família, de escolha livre dos instrumentos pedagógicos, de estabelecimento e manutenção da autoridade e poder na estrutura da família, produzindo o vicio material de inconstitucionalidade por violação do direito à liberdade na manifestação da autonomia familiar.
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[1] DUROZOI, Gerard.; ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. 4. ed. Campinas/SP: Papirus, 1993. pág. 288
[2] SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um humanismo. Trad. Rita Correia Guedes. Paris: Nagel, 1970. Pág. 6
[3] Condição humana não é a mesma coisa que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. (ARENDT, 2004)
[4] Mesopotâmia, Grécia, Roma, povo Hebreu, Egito.
[5] WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 4. ed. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
[6] Expressão oriunda do senso comum, apócrifa.
[7] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. Pág. 684
[8] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2009. Pág. 81
[9] VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. 27. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pág. 23
[10] Ib Idem.
[11] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. pág. 489.
[12] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 24. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2004. pág. 822
[13] NASCENTES, Antenor. Dicionário da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Rio de janeiro Bloch Editores, 1988. pág. 441
[14] Ver: Magna Carta (1215); Petition of Rights (1628); Habeas Corpus Amendment Act (1679); Bill of Rights (1688); Declaração de Virginia (1776); Declaração Norte-Americana (1787); Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).
[15] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2007. pág. 117
[16] ARAUJO, Luiz Alberto David.; NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2008. pág 104
[17] Ver - ECA; C.C.; C.P.; Lei 11.340/2006.
[18] BITTAR, Eduardo C. B. ; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2010. pág 188-190 passim
[19] Evangelho, (cf. Gênesis 1,27)
[20] Evangelho, (cf. Marcos 1,1)
[21] Ver Filosofia Patrística e Escolástica de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, respectivamente.
[22] FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5. ed. ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. pág 14
[23] Apud TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6.ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007. pág. 541-542
[24] MARTINS, Francisco. O que é phatos ? in: Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, Ano II, n. 4, p. 62-80, Dez. 1999. [acessado em 24.08.2010]; disponível em: www.fundamentalpsychopathology.org
[25] ”Uma vez presentes os pressupostos constitutivos da união estável (art. 1.723 do CC) e demonstrada a separação de fato do convivente casado, de rigor o reconhecimento da união estável homossexual, em face dos princípios constitucionais vigentes, centrados na valorização do ser humano.
Via de consequência, as repercussões jurídicas, verificadas na união homossexual, tal como a partilha dos bens, em face do princípio da isonomia, são as mesmas que decorrem da união heterossexual”. (Apelação Cível 70021637145, 8ª Câmara Cível TJRS. Relator: Des. Rui Portanova. Julgamento: 13/12/2007)
[26] CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org.). A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. pág. 73
[27] BILLAC (1991) apud CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org.). A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. pág. 74
[28] Ib Idem.
[29] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. pág. 37
[30] CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org.). A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. pág. 76
[31] CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org.). A Família Contemporânea em Debate. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2006. pág. 79-80
[32] SIMONINI, Eduardo. Como a Psicologia Vê a Violência Humana? [Acessado em: 31/08/2010]; disponível em www.oestrangeiro.com/psicologia
[33] Fundamentado no ECA, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional N. 9394/96, e os Regimentos Escolares, proíbem o uso de correção física, o castigo e a suspensão dos alunos como meios pedagógicos.
[34] KLEIN, Otávio José. Violência um mal social. [acessado em: 28/09/2010]; disponível em: http://pensocris.vilabol.uol.com.br/violencia.htm
[35] Expressão em sentido lato
Advogada OAB/SP 202.872. Mestre em Direito Difusos pela UNIMES. Especilaista em Dir. Processual pela AEMS e Pós-graduanda em Dir. Constitucional pela Anhanguera-LFG. Mestre docente das Faculdades Integradas de Três Lagoas/MS - AEMS e das Faculdades Integradas de Paranaíba/MS - FIPAR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Sara Asseis de. Direito à liberdade na Constituição Federal e a autonomia da instituição familiar, inconstitucionalidade do projeto de lei 2.654/2003 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 fev 2011, 07:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/23643/direito-a-liberdade-na-constituicao-federal-e-a-autonomia-da-instituicao-familiar-inconstitucionalidade-do-projeto-de-lei-2-654-2003. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
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