Resumo: Este artigo versa sobre a possibilidade da aplicação da teoria dos precedentes no Brasil, defendendo seus benefícios no ordenamento e prática jurídica, ao mesmo tempo em que alerta para os exageros que possam decorrer de sua aplicação irresponsável.
Abstract: This article deals with the possibility of applying the stare decisis theory in Brazil, for its benefits in the planning and legal practice, while it warns of the excesses that may arise from its irresponsable application.
Sumário: I – Conceito e histórico do “stare decisis” - breve intróito; II – A mitigação da teoria; III – O efeito vinculante no ordenamento pátrio; IV – A Súmula Vinculante – o reforço da teoria no Brasil e V – Conclusão.
Palavras-chave: Constitucional – Stare decisis – Teoria dos Precedentes – Súmula Vinculante
Key words: Constitucional Law – Stare decisis – Precedents Theory - Stare decisis in Brazil
O stare decisis, muito comum no sistema da common law, aplica o sistema dos precedentes judiciais, de forma vinculativa ou não.
Pela doutrina do Professor Fredie Didier Jr.:
Precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto ,cujo núcleo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.(1)
Ainda segundo sua doutrina, o precedente, quanto ao conteúdo pode ser: declarativo, quando ocorrer o simples reconhecimento e aplicação de uma norma jurídica pré-existente e criativo, quando a norma jurídica é criada.
No declarativo, o precedente se faz mais atuante. Utiliza-se um precedente anterior para solucionar o caso concreto. A aplicação de um precedente anterior já era conhecida dentre os brasileiros, uma vez que várias são as iniciais ou peças de bloqueio que reforçam suas convicções baseadas em jurisprudência de tal ou qual Tribunal.
A Suprema Corte do Estado da Califórnia, ao explicar o conceito de “stare decisis”, assim concluiu:
“[u]nder the doctrine of stare decisis, all tribunals exercising inferior jurisdiction are required to follow decisions of courts exercising superior jurisdiction”(2)
O princípio, assim entendido pelos norte-americanos, é dividido em dois componentes: O binding authority, onde prevalece a decisão proferida pelo Tribunal Superior, presente sua autoridade vinculante em relação aos julgados proferidos na instâncias inferiores, de situação análoga. Há, ainda, o persuasive precedent, que apresenta apenas força persuasiva. Os juízes seguirão o precedente persuasivo, a menos que haja forte razão de não aplicá-lo ao caso concreto. O precedente é persuasivo, não vinculante. O juiz pode afastá-lo, desde que fundamente.
O precedente ainda é dividido em duas partes: A ratio decidendi, ou holding, é a tese principal discutida no caso concreto, importante para a motivação da decisão E o obiter dictum (obiter dicta, no plural), argumentos utilizados apenas de passagem, sem qualquer eficácia relevante para a decisão.
II – A mitigação da teoria
Atualmente, em sede constitucional, a Suprema Corte dos Estados Unidos tem decidido com cautela os casos concretos apresentados, afastando, por vezes, o efeito vinculante de seus precedentes:
“Stare decisis is usually the wise policy, because in most matters it is more important that the applicable rule of law be settled than that it be settled right. ... But in cases involving the Federal Constitution, where correction through legislative action is practically impossible, this Court has often overruled its earlier decisions. ... This is strikingly true of cases under the due process clause.”
—Burnet v. Coronado Oil & Gas Co., 285 U.S. 393, 406–407, 410
Há uma parte da doutrina norte-americana, chamada de originalistas, que sustenta que o significado do texto escrito deve ser sempre aplicado. Lembra muito o termo “legislador negativo”, trazido por Hans Kelsen. O Judiciário não deve ir além do que a Lei está a mencionar.
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, os originalistas não refutam o stare decisis. Eles defendem que tal sistema deve apenas ocorrer quando o sentido da lei dá ensejo a várias construções interpretativas.
HLA Hart (3) já sustentava, inclusive, a existência de “hard cases”, que escapavam aos meros casos simples, em que o intérprete estaria vinculado ao texto legal e aos precedentes.
Ainda sobre os precedentes, cabe ressaltar a técnica de aplicação do precedente: distinguish e o per incuriam. No primeiro, também conhecido como distinguishing, quando o juiz analisa se o caso concreto é ou não análogo ao seu paradigma. Já no segundo, o juiz ignora um precedente ou lei relacionada ao caso.
Para superaçao do precedente, existem duas técnicas: overruling, quando o precedente é superado, perdendo sua força vinculante e overriding, quando o Tribunal limita o âmbito de incidência de um precedente, seja por causa de uma lei superveniente ou princípio expresso.
III – O efeito vinculante no ordenamento pátrio
O efeito vinculante, no Brasil, teve início com a EC nº 03-93, inspirada na PEC nº 130-92. O legislador distinguiu tal efeito da eficácia erga omnes, justificando que os motivos determinantes seriam dotados de efeito vinculante e não só a parte dispositiva, como no último.
Há vozes no sentido de que o efeito vinculante, no Brasil, continua apenas na parte dispositiva, o que o diferenciaria do sistema da common law. O professor e Juiz federal Rodolfo Hartmann assim defende em suas aulas. O professor e advogado Pedro Lenza, embora adepto da teoria dos motivos determinantes, ressalta que o ordenamento jurídico, assim como o próprio Judiciário devem amadurecer suas ideias antes de tal aplicação em solo brasileiro.
Há doutrina que defende a extensão do efeito vinculante aos motivos determinantes, ainda que seja muito discutido, pois o contrário “tornaria despiciendo tal instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força de lei.”(4)
O efeito vinculante conferiria “eficácia adicional” à decisão do STF, conferindo-lhe amplitude que transcenda o caso concreto, vindo a ratificar o o processo de inicialização que apareceu com a Constituição de 1988.
Passada a controvérsia, cabe ressaltar que a Lei nº 9.868-99 previu que as declarações de constitucionalidade e inconstitucionalidade, interpretação conforme e declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Judiciário e Administração Pública.
IV – A Súmula Vinculante – o reforço da teoria no Brasil
Com a EC nº 45-04, surgiu a Súmula Vinculante. Várias foram as discussões acerca do instituto. Muitos receosos mostram-se indignados com a “novidade”. Viu-se, no entanto, que o assunto não era tao novo.
Antes mesmo da Súmula de efeito vinculante, tínhamos entre nós a Súmula obstativa de recursos (artigo 518, Código de Processo Civil), por exemplo. Mesmo nao tendo efeito vinculante, se o recurso interposto pela parte sucumbente for contrário ao disposto em Súmula de jurisprudência dos Tribunais Superiores, o juiz poderá negar a subida ao Tribunal de ofício, analisando negativamente a admissibilidade.
A teoria dos precedentes não é uma novidade no Brasil, uma vez que as decisões dos Tribunais Superiores já apresentavam força persuasiva quanto aos casos concretos a serem analisados pelos juízes. A novidade é quanto ao efeito vinculante, assemelhando-se ao binding authority da common law.
Não há motivo para o receio. A teoria dos precedentes apresenta, como visto, técnicas de superaçao. Se até mesmo a Constituição, fruto de um processo democrático, pode ter norma superada por mutação, dada a comparação do enunciado e a realidade de fato, não seria uma decisão de efeito vinculante, algo perpétuo. Exemplo disso é a previsão do caput do art. 103-A da Constituição Federal quando menciona “revisão ou cancelamento”.
O cuidado que o Judiciário deve ter, principalmente o Supremo Tribunal Federal, é não extremar a força vinculativa de suas decisões a ponto de tornar-se uma “ditadura da toga”. Saber analisar quais os casos merecem a atribuição de uma força vinculativa e o momento de superaçao são requisitos essenciais.
Em algumas passagens, o E. Ministro Carlos Britto tem defendido a revisão da Súmula Vinculante nº 03, eis o teor:
“Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.”
Tem o célebre Ministro afastado a Súmula para aplicar o princípio da segurança jurídica, como se percebe na seguinte ementa:
“MANDADO DE SEGURANÇA. SECRETÁRIO DE RECURSOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. ILEGITIMIDADE PASSIVA. ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO STF. PENSÕES CIVIL E MILITAR. MILITAR REFORMADO SOB A CF DE 1967. CUMULATIVIDADE. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. GARANTIAS DO CONTRÁRIO E DA AMPLA DEFESA. 1. O Secretário de Recursos Humanos do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão é parte ilegítima para figurar no pólo passivo da ação mandamental, dado que é mero executor da decisão emanada do Tribunal de Contas da União. 2. No julgamento do MS nº 25.113/DF, Rel. Min. Eros Grau, o Tribunal decidiu que, "reformado o militar instituidor da pensão sob a Constituição de 1967 e aposentado como servidor civil na vigência da Constituição de 1988, antes da edição da EC 20/98, não há falar-se em acumulação de proventos do art. 40 da CB/88, vedada pelo art. 11 da EC n. 20/98, mas a percepção de provento civil (art. 40 CB/88) cumulado com provento militar (art. 42 CB/88), situação não abarcada pela proibição da emenda". Precedentes citados: MS nº 25.090/DF, MS nº 24.997/DF e MS nº 24.742/DF. Tal acumulação, no entanto, deve observar o teto previsto no inciso XI do art. 37 da Constituição Federal. 3. A inércia da Corte de Contas, por sete anos, consolidou de forma positiva a expectativa da viúva, no tocante ao recebimento de verba de caráter alimentar. Este aspecto temporal diz intimamente com o princípio da segurança jurídica, projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento conceitual do Estado de Direito. 4. O prazo de cinco anos é de ser aplicado aos processos de contas que tenham por objeto o exame de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões. Transcorrido in albis o interregno quinquenal, é de se convocar os particulares para participar do processo de seu interesse, a fim de desfrutar das garantias do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º). 5. Segurança concedida” (5)
Assim, na exata medida, o efeito vinculante, de inspiração na common law, tem contribuído para o “desafogamento” de processos em todo o Judiciário.
V – Conclusão
Conforme o exposto, ainda que haja receio quanto à aplicação da teoria dos precedentes no Brasil, é inegável a possibilidade de “desafogamento” do Judiciário, conferindo, ademais, maior segurança jurídica aos jurisdicionados e coerência nas decisões.
De fato, não se deve levar ao extremo de judicializar toda e qualquer situação no mundo dos fatos, culminando numa supremacia jurídica ou até mesmo na perpetuação de tal ou qual decisão. A razoabilidade, assim como em outros ramos do Direito, deve ser aplicada neste instituto.
VI – Bibliografia
(1)DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Podivm, 2008. 2ªEdiçao.p.347
(2)Auto Equity Sales, Inc. v. Superior Court, 57 Cal. 2D 450 (1962)
(3)HART, H.L.A. The Concept of Law, Oxford:1988
(4)MENDES, Gilmar et al.Curso de Direito Constitucional.Brasília: Saraiva, 2008. 2ª Ediçao, p.1284
(5)MS 24448, STF, Pleno, Min. Relator Carlos Britto, DJ 27-09-2007.
Procuradora Federal. Advogada. Especialista em Direito Público (UERJ). Aprovada em concursos públicos para provimento de cargos de advogado do BNDES (2013); advogado da Caixa Econômica Federal (2010); analista judiciário do TRE-RJ (2012); técnico do Ministério Público do Rio de Janeiro (2011); analista judiciário do TJRJ (2011); advogado da Companhia de Desenvolvimento de Nova Iguaçu (2010). Foi estagiária da Procuradoria Regional da República na 2ª Região (2006-2008). http://about.me/fabiana_coutinho
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COUTINHO, Fabiana de Oliveira. A "Stare Decisis" da Common Law : Semelhanças no efeito vinculante brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 maio 2011, 09:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24274/a-quot-stare-decisis-quot-da-common-law-semelhancas-no-efeito-vinculante-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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