Resumo: O trabalho analisa se o texto da Lei 12.234, promulgado em maio de 2010 para inserir nova redação ao art. 109, VI, do Código Penal, que trata da prescrição antes de transitar em julgado a sentença, revogou ou não aquela previsão havida no art. 30 da Lei de Drogas (11.343), que prevê prazo inferior.
Palavras-chave: Especialidade. Lei Penal. Uso de drogas.
Introdução
Em maio de 2010, foi promulgada pelo então presidente, a Lei 12.234, que dentre outros assuntos, tratou do aumento da prescrição antes de transitar em julgado a sentença, de 2 para 3 anos.
Acontece, que a Lei de Drogas, Lei 11.343 de agosto de 2006, prevê, especificamente no art. 30, que a prescrição nos casos de uso de tóxicos ocorre em 2 anos, o que cria grande margem de dúvida, eis que não se sabe ao certo, qual Lei deve ser levada em conta, ao analisar a ocorrência da prescrição no uso das drogas.
Na intenção de compreender o assunto, ainda que recente e pouco polêmico, por se tratar de tema novo, o artigo visa uma breve análise às inserções feitas pela Lei 12.234 ao Código Penal, passando por explicação acerca do princípio da especialidade, para versar, enfim, acerca da aplicação da inovação ao Código Penal, ao art. 30 da Lei de Tóxicos.
Alguns aspectos da Lei 12.234
Na análise da Lei 12.234, são apontadas duas questões centrais que estão basicamente pacificadas na doutrina, o que não virá a causar maiores transtornos.
A primeira, diz respeito à aplicação retroativa da Lei, para que possa alcançar fatos pretéritos.
Tendo por base entendimento oriundo de renomados estudiosos, como Fernando Capez[1] e Luiz Flávio Gomes[2], não restam dúvidas de que as previsões da lei nova, só poderão ser aplicadas a partir de sua eficácia, pois as regras e princípios do Direito Penal que regulamentam a matéria (art. 5º, XL da CRFB), são bem claras ao versar acerca da irretroatividade da Lei mais prejudicial (Lex gravior), pois "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu".
Diante disso, em fatos anteriores à Lei 12.234, o julgador não pode em hipótese alguma, aplicar a regra de prescrição de 3 anos, ou deixar de considerar, para fins de prescrição depois de transitada em julgado a sentença, eventual prescrição ocorrida entre o inquérito policial e a denúncia (art. 110).
A segunda polêmica, que também guarda relação com a precedente, trata da possibilidade da prescrição em perspectiva[3]. Claro que a fatos precedentes, em que pese a existência de súmula do STJ contrária à sua aplicabilidade (súmula 438[4]) , há que se considerar pela possibilidade da aplicação do instituto[5].
Contudo, em crimes ocorridos a partir da vigência da nova lei, a prescrição não correrá durante a fase inquisitorial, pois a redação dada ao art. 110 do Código Penal, deixa claro que "A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa." (grifou).
Assim, no decurso do inquérito, apenas poderá ocorrer a prescrição nos casos elencados no art. 109 do CPB (prescrição antes de transitar em julgado a sentença)[6], eis que a Lei nova, visando diminuir as fraudes de natureza protelatória no decurso do inquérito, passou nesse caso, a proibir a prescrição após transitada em julgado a sentença condenatória.
O Direito Penal e o princípio da Especialidade
O termo especialidade, do latim specialitate, trata conforme o Aurélio (2010), de substantivo feminino, que como o próprio nome interpela, diz respeito a determinada particularidade, qualidade, atribuição especial de algo.
O princípio da especialidade é usado mais expressamente para a solução de conflitos aparentes de normas, que ocorre quando duas normas, parecem estar em evidente divergência.
No direito penal, tal princípio está expresso no art. 12 do CPB, quando diz que "As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso." Versando acerca do princípio ou critério da especialidade, o professor Luiz Régis Prado, em seu "Curso de Direito Penal Brasileiro" anota que:
a) Critério da especialidade — lex specialis derogat legi generali: o princípio de especialidade, único a ter aceitação pacífica, já era conhecido dos romanos — semper specialia generalibus sunt; generi per specien derogantur. A lei especial derroga, para o caso concreto, a lei geral. Entre a norma geral (gênero) e a especial (espécie) há uma relação hierárquica de subordinação que estabelece a prevalência da última, visto que contém todos os elementos daquela e mais alguns denominados especializantes.''; Desse modo, a regra especial agrega à hipótese normativa geral um ou mais elementos complementares, demonstrativos de um específico fundamento de punibilidade, ora estabelecendo um plus (qualificador/agravador), ora prevendo um minus (privilegiador). Afirma-se, nessa trilha, que a "relação de especialidade ocorre quando um preceito penal reúne todos os elementos de outro e só se diferencia dele por conter, pelo menos, um elemento adicional que permita vislumbrar a previsão fática de um ponto de vista específico. Na especialidade concorre, pois, uma relação lógica de dependência própria da subordinação, já que toda ação que realize o tipo delitivo especial também realiza necessariamente, e ao mesmo tempo, o tipo geral, enquanto não se verifique o oposto". (2002, p. 187-188).
Assim, na utilização do mencionado princípio, considera-se que se existe previsão específica para determinada questão penal ou conduta, devendo ser aplicada, ao invés da regra geral, aquela especialmente prevista.
Exemplo de aplicação do instituto, trazido por Guilherme de Souza Nucci em seu "Código Penal Comentado" (2009, p.113), trata do indivíduo que importa substância entorpecente. Em regra, na aplicação do Código Penal, deveria responder pelo art. 334 (crime de contrabando). Contudo, diante da previsão específica na Lei de Tóxicos (Lei 11.343, art. 33), deverá responder pela conduta prevista na norma especial, e não pela que está no CP.
No tópico a seguir, o trabalho adentrará mais especificamente na possibilidade de aplicação de tal princípio nos casos da prescrição no uso de drogas, para saber, se deve ser utilizada a regra do art. 109, VI, do CP, ou a do art. 30 da Lei 11.343.
As novas regras de prescrição da lei 12.234 se aplicam ou não à lei de drogas?
A questão a saber, versa sobre a aplicação das disposições da lei 12.234, que em maio de 2010, aumentou a prescrição mínima prevista no Código Penal de 2 para 3 anos à Lei de Tóxicos, que traz previsão específica quanto à prescrição para o uso de drogas, que é de 2 anos.
A polêmica se instaura, porque a Lei que trouxe nova previsão às regras prescricionais do Código Penal, é mais recente do que a Lei de Tóxicos, e por isso, deixa grandes dúvidas, pois em regra, a lei mais nova, revoga às disposições em contrário.
Numa análise da Lei mais recente, a 12.234, percebe-se que em suas disposições finais, o art. 4º apenas versa sobre a revogação do parágrafo segundo do Código Penal, não se inserindo em pormenores de quaisquer leis esparsas.
Se fosse intenção do legislador que demais leis especiais fossem abarcadas, inseriria previsão expressa dizendo "revogam-se todas as disposições em contrário", versando, ainda, especificamente sobre a revogação do art. 30 da Lei 11.343.
Na exposição da motivos da Lei 12.234, depreende-se que a intenção do legislador foi aumentar o prazo prescricional em todos os sentidos, diante da grande leva de processos, excesso de trabalho dos juízes penais, e prazo diminuto em casos de crimes com pena inferior a 1 ano[7].
Contudo, apesar de tratar a 12.234 de lei penal mais recente, diante do princípio da especialidade, e por se tratar de previsão penal mais benéfica, a regra estabelecida no art. 30 da Lei de Tóxicos deve prevalecer sobre a inovação trazida ao Código Penal, considerando-se ainda o fato de não haver na Lei mais nova, quaisquer disposições em contrário.
A intenção do legislador, em se tratando do uso de drogas, foi conforme assentido pelo próprio STF no RE 430.105[8], o de despenalizar a conduta, de forma que qualquer atitude no sentido de aumentar os óbices a tal processo despenalizatório, deve ser vista como desproporcional e contrária aos fins da política de uso.
Se não fosse intenção manter o prazo ali assinalado (2 anos), seria desnecessária e redundante a inserção do artigo 30, pois o prazo prescricional do CPB era o mesmo na época da promulgação da Lei 11.343.
Destarte, o princípio da especialidade é claro ao dizer que a Lei especial, prevalece sobre a regra geral. In casu, o prazo prescricional da Lei de Tóxicos deve sobrepor à nova previsão estabelecida ao art. 109 do CPB, eis que é quantum mais benéfico (2 anos, ao invés de 3), e está em lei que regulamenta em específico a questão dos entorpecentes.
Considerações Finais
Após análise da polêmica à luz do princípio da especialidade, e por se tratar de Lei Penal mais benéfica, não há como se considerar que o art. 30 da Lei de Drogas tenha sido tacitamente revogado pela Lei 12.234.
Junto a isso, é clara a intenção havida pelo legislador na época, que quis despenalizar a conduta de uso, e além disso, prever prazo prescricional em específico, que seria desnecessário se quisesse seguir à regra do art. 109 do CP.
Referências Bibliográficas
JAWSNICKER, Francisco Afonso. Prescrição Penal Antecipada. Curitiba: Juruá, 2008.
LOZANO Júnior, José Júlio. Prescrição Penal. São Paulo: Saraiva, 2002.
CAPEZ, Fernando. Prescrição retroativa e a lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010. Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=2764. Acesso em 10 de abril de 2011.
GOMES, Luiz Flávio. Lei 12.234/10 - mudanças na prescrição penal. Disponível em:http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI107934,81042-Lei+12234+10+mudancas+na+prescricao+penal. Acesso em Acesso em 10 de abril de 2011.
NUCCI, Guilheme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2009.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[1] CAPEZ, Fernando. Prescrição retroativa e a lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010. Disponível em: http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/ArtigoLer.asp?idArtigo=2764. Acesso em 10 de abril de 2011.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Lei 12.234/10 - mudanças na prescrição penal. Disponível em:http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI107934,81042-Lei+12234+10+mudancas+na+prescricao+penal. Acesso em Acesso em 10 de abril de 2011.
[3] Conforme José Júlio Lozano Júnior (2002, p.181), a prescrição em perspectiva "[...] consiste no reconhecimento da prescrição retroativa antes mesmo do oferecimento da denúncia ou da queixa e, no curso do processo, anteriormente à prolação da sentença, sob o raciocínio de que eventual pena a ser aplicada em caso de hipotética condenação traria a lume um prazo prescricional já decorrido." Exemplo de tal prescrição, é o citado por Afonso Jawsnicker, transcrito a seguir:"A foi denunciado por desacato (CP, art.331), crime que prescreve em 4 (quatro) anos, uma vez que o grau máximo da pena privativa de liberdade cominada é 2 (dois) anos (CP, art.109, inc.V). Ao analisar o processo, o juiz constata que A é primário e tem bons antecedentes e que não existem agravantes ou causas de aumento de pena. Além disso, consta que já se passaram mais de 2 (dois) anos desde a data da consumação do crime. Com base nessas constatações, o juiz conclui que, ainda que A fosse condenado, a sua pena não ultrapassaria o mínimo legal, ou seja, 6 (seis) meses. Como uma pena de 6 (seis) meses prescreve em 2 (dois) anos (CP, art.109, inc.VI), o juiz deixa de receber a denúncia, reconhecendo antecipadamente a prescrição retroativa." (2008, p.80)
[4] É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.
[5] Aqui, é necessário entender que até a súmula 438, datada de maio de 2010, apenas pode ter aplicabilidade a delitos posteriores à sua vigência, em virtude da irretroatividade da norma prejudicial, o que deve se aplicar também em caso de súmulas.
[6] Entende-se aqui, que é impossível falar da imprescritividade no decurso da fase inquisitorial. Pelo princípio da segurança jurídica, todos crimes necessitam de prazo prescricional, que deve seguir à regra do art. 109 do CP (máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime). Portanto, no exemplo de um crime com pena máxima de 6 meses, como a ameaça, se passados 3 anos sem conclusão do inquérito, alcançada a prescrição antes de transitar em julgado a sentença, deve ser reconhecida pelo julgador, pois o que a nova lei extinguiu, foi apenas a prescrição após trânsito em julgado (em perspectiva).
[7] Quando a prescrição ocorria em 2 anos para crimes com pena inferior a 1 ano, era muito comum de naqueles casos de menores de 21 anos envolvidos, ocorrer a prescrição, pois muitas vezes os juízes, diante do excesso de trabalho, não conseguiam no prazo de 1 ano (pois aos menores de 21 a prescrição corre penal metade, conforme art. 115 do CPB), finalizar a persecução penal.
[8] "I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 -nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP -que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção -não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime -como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 -pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo rigor técnico, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado Dos Crimes e das Penas, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).” (STF, RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07)
Licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Professor de Filosofia. Bacharel em Direito Pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves. Pós graduado em Direito Público e Educação Ambiental. Advogado Militante. Membro da Academia Sanjoanense de Letras. Contato: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Pedro Henrique Santana. As novas regras de prescrição da Lei 12.234 se aplicam ou não à lei de drogas? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 maio 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24295/as-novas-regras-de-prescricao-da-lei-12-234-se-aplicam-ou-nao-a-lei-de-drogas. Acesso em: 23 dez 2024.
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