1.1 OS GRANDES SISTEMAS ECONÔMICOS
O termo “Sistema Econômico” pode ser definido como o conjunto de regras econômicas, formas e organização do modo de produção, ou seja, é a forma pela qual se normatiza a organização econômica de um país (sistema capitalista ou sistema socialista).
Não se confunde com o conceito de “Regime Econômico”, já que este consiste na forma através da qual se implementa o sistema na prática (como, por exemplo, o Neo-Liberalismo, onde o Estado pouco intervêm na economia; o Sistema Intervencionista, Sistema do Estado do bem social).
Os sistemas econômicos, conforme assinala Avelãs Nunes, distinguem-se entre si:
pela afirmação de determinadas forças produtivas e determinadas formas de organização material da produção, a base econômica (estrutura econômica ou infra-estrutura) no seio do qual se desenvolvem determinadas estruturas sociais de produção e a partir da qual se desenvolvem determinadas estruturas políticas, jurídicas, culturais, ideológicas (superestruturas)[1]
Convém, para fins teóricos, a identificação de dois sistemas: o capitalismo e o socialismo. São dois sistemas polares e antagônicos que, em resumo, diferenciam-se por conta da forma adotada quanto à propriedade dos meios de produção (privada ou coletiva), bem como pelo fato de os trabalhadores se apropriarem ou não do produto do seu trabalho. Podem, porém, apresentar uma série de variações nas formas concretas adotadas em sua implementação prática.
No sistema capitalista, as relações de produção estão voltadas para a propriedade privada dos bens em geral, especialmente os bens de produção, na liberdade ampla, principalmente de iniciativa e de concorrência e, assim, na livre contratação de mão-de-obra[2].
Aponta o capitalismo, portanto, para a chamada economia de mercado em que são as próprias condições do mercado que determinam o seu funcionamento e equacionamento da economia, sem qualquer atuação ou intervenção de agente externo. Essa é a ideia de “mão invisível” trazida por Adam Smith.
De acordo com essa teoria, o interesse individual levaria à autorregulação do mercado. Na busca pelo melhor para si mesmo, o homem defrontar-se-ia com uma grande quantidade de indivíduos com o mesmo escopo, gerando o mecanismo da concorrência que, ao final, como mecanismo central de uma sociedade de mercado, asseguraria as melhores condições ao próprio mercado. A regulação, portanto, dar-se-ia naturalmente, sem a necessidade de qualquer atuação ou intervenção externa.
Esse modelo de mercado, contudo, mostrou-se insuficiente dado, em casos específicos, a concentração de capitais na mão de alguns, permitindo-lhes o controle deste mercado. Ou seja, o mercado, que deveria se autorregular, passou a ser objeto de determinação de grandes empresários ou grupos econômicos, o que gerou a necessária intervenção de agentes externos, ainda que as premissas básicas do capitalismo (propriedade privada dos meios de produção) permanecessem.
O socialismo surge em decorrência dos pontos negativos identificados no capitalismo, notadamente no que tange à desigualdade social, que passou a ser verificada a partir da liberdade total de atuação dos agentes econômicos, com acúmulo de capital na mão de pouco, sem a necessária repartição dos benefícios auferidos.
Desenvolvem-se, então, doutrinas socialistas que defendem a propriedade coletiva dos meios de produção, sendo que a atividade empresarial teria como móvel o suprimento das necessidades da coletividade e não o lucro (este, instituição básica do capitalismo). Prega-se a estatização dos meios de produção (por meios pacíficos ou revolucionários) e o fim da divisão entre classes sociais, de modo que a repartição do produto da atividade ocorreria por força da autoridade. Essa autoridade socialista, portanto, opõe-se frontalmente ao liberalismo almejado pelo capitalismo
Mas o sistema socialista, ainda que tenha apresentado respostas às injustiças da ampla proteção do individualismo do sistema capitalista, mostra-se, ao final, incompatível com o respeito às instituições democráticas ante a necessária concentração de poder nas mãos das autoridades para o seu funcionamento.
Nota-se, portanto, que a solução para a questão econômica não está na adoção de um ou outro sistema econômico, mas sim na sua adaptação à realidade encontrada em cada nação. Portanto, esses modelos, vistos em sua forma pura de ser, são abandonados, passando-se a se desenvolver sistemas econômicos mistos, que trazem características de ambos os sistemas já esmiuçados, procurando minimizar os aspectos negativos das formas puras originárias, mas sem abandonar suas premissas principais.
Assim, nota-se que o funcionamento do mercado em uma economia capitalista impõe uma regularidade e uma previsibilidade de comportamentos, a fim de informar as decisões a serem tomadas pelos agentes que nele atuam.
“Sem a calculabilidade e a previsibilidade instaladas pelo direito moderno, o mercado não poderia existir”.[3]
E a intervenção do Estado na vida econômica mostra-se como um redutor de riscos tanto para os indivíduos como para as empresas, identificando-se, assim, com o princípio da segurança, imprescindível ao funcionamento do mercado.
Conforme define Eros Roberto Grau[4], o mercado é uma instituição jurídica, constituída pelo direito posto pelo Estado, de forma que reclama, a um só tempo, a garantia da liberdade econômica e sua regulação.
A regulamentação da atuação /intervenção do Estado capitalista (como o Brasil) na economia desenvolve-se neste contexto, visando viabilizar e proteger a própria estrutura do mercado.
1.2 ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL
Para que se possa definir o que configura a ordem econômica constitucional, necessário esmiuçar, previamente, os significados que o termo ordem econômica pode apresentar para, após, definir o seu significado no âmbito constitucional.
Tendo em vista a propriedade do tratamento conferido pelo professor Eros R. Grau[5] a esta matéria, invocam-se os significados por ele traçados:
1- ordem econômica é modo de ser empírico de determinada economia concreta. É um conceito de fato e não um conceito normativo e de valor. Refere-se a uma relação entre fatores econômicos e materiais, ou seja, relação entre fatores econômicos concretos.
2- ordem econômica é expressão que indica o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza, no que tange ao comportamento dos sujeitos econômicos.
3- ordem econômica possui o mesmo significado de ordem jurídica econômica.
Para fins de análise da ordem econômica no âmbito constitucional, pode-se defini-la como o conjunto de regras constitucionais que disciplinam a atividade econômica em determinado Estado. Este conceito, nota-se, possui grande proximidade em relação ao conceito de Constituição Econômica.
A evolução das normas de proteção à ordem econômica e sua incorporação ao texto constitucional acompanhou todo o desenvolvimento histórico das nações, revelando gradativamente sua importância.
Conforme observa Eros Grau, as constituições liberais não necessitavam dispor explicitamente normas componentes de uma ordem econômica constitucional, pois a ordem econômica existente no mundo do ser bastava à preservação das atividades do mercado. Bastava que a constituição versasse apenas sobre alguns temas, como a propriedade privada e a liberdade contratual.
Contudo, a necessidade da elevação ao patamar constitucional dessas regras, vistas como “dever ser “, é verificada no instante em que estas normas passam a ser instrumentais para a implementação de políticas públicas.
Observa André Ramos Tavares[6] que a elevação da preocupação econômica ao patamar constitucional é identificada quando conformação consciente e sistemática da ordem econômica por uma decisão política.
No contexto mundial, tal preocupação é evidenciada num período pós primeira guerra, em que a intervenção estatal na economia passa a se mostrar imprescindível para a manutenção do mercado. Acentua Vital Moreira:
“Ela [a teoria da CE] está fundamentalmente ligada ao fim da representação liberal da ordem natural do econômico, e ao desencanto que esse fim provocou. A intervenção do estado, tornada necessária, quebra aquela representação e faz substituí-la por uma outra em que o político se vão fazer exigências sobre o econômico. Essas exigências dão entrada no texto constitucional e é sobre esse sistema normativo-programático, de uma ordem econômica a realizar que vai erigir-se o conceito de CE”[7].
Portanto, ainda que não se possa negar a existência de normas econômicas (positivadas ou não) em período anterior à Primeira Guerra Mundial, a preocupação com a sua elevação ao patamar constitucional deu-se a partir desta guerra, quando a confiança na autorregulação econômica do mercado foi perdida.
A contemplação constitucional da ordem econômica indica uma transformação que afeta o direito na medida em que deixa de se prestar meramente à harmonização de conflitos e à legitimação do poder, passando a funcionar como instrumento de implementação de políticas públicas.
A ordem econômica constitucional (ou a Constituição Econômica) passa a compreender a enunciação de fins da política econômica, postulando a implementação da nova ordem econômica[8], em um verdadeiro contexto programático.
1.3 A INTERVENÇÃO DO ESTADO
A situação insustentável que, por vezes, a concepção de Estado Liberal (no sentido do capitalismo puro) impôs à humanidade levou à admissão, conforme já mencionado, da necessidade de intervenção do Poder Público no mercado e na economia para a sua própria sobrevivência.
Fábio Nusdeo[9] traz as 5 falhas do sistema capitalista puro que ensejaram essa nova postura estatal. São elas:
- Ausência de mobilidade de fatores: ou seja, incapacidade de constante auto-correção do mercado;
- acesso falho às informações relevantes, pelos agentes econômicos, sobre o próprio mercado e sobre as características dos produtos nele negociados. Para o modelo ideal, essas informações sobre o próprio mercado e sobre as características dos produtos seriam transparentes, ou seja, haveria plena informação do mercado consumidor o que, contudo, não se verificou na prática, de modo que produtos com qualidade inferior ou com segurança precária competem com produtos bem desenvolvidos, sem que tais diferenças sejam do conhecimento do destinatário. Assim, há prevalência do produto de menor qualidade (ante a inferioridade do preço de revenda).
- concentração econômica: segundo o modelo ideal do capitalismo puro, os portes dos agentes econômicos deviam ser equivalentes, inexistindo agentes comporte com importância dominante, ou seja, com grande porte. A existência de empresas com portes gigantes leva a duas consequências nefastas para o capitalismo: a primeira é a dominação do mercado, de modo que o funcionamento do mercado, que deveria se autorregular, passa a ser determinado pelo comportamento dessas empresas; a segunda, é o momento de crise enfrentado por tais agentes, o que poderá afetar todo o mercado.
- existência de externalidades positivas e negativas e a impossibilidade de sua internalização pelo ente que a produz, o que significa que nem sempre os agentes econômicos incorporam ao preço final de seu produto os aspectos positivos ou negativos. Na verdade, a tendência é a externalização de todos os custos, sem o correspondente repasso dos benefícios eventualmente usufruídos pela empresa.
- falta de incentivo à produção de bens coletivos: já que a economia de mercado fundada apenas no mercado tenderá a discriminar fortemente os bens coletivos e a exagerar na produção de bens exclusivos, como, por exemplo, o incentivo da produção e infraestrutura para carros em detrimento de investimentos em transportes coletivos.
Assim, a concepção liberal do Estado apresenta inúmeros problemas que não são solucionados sem a atuação de um agente externo, o que levaria à auto-destruição do mercado. Deste modo, a presença do Estado torna-se imperiosa para assegurar a higidez da economia liberal.
O Estado passa a se afastar das premissas liberais clássicas para, ao final, garantir os mesmos objetivos liberais. Trata-se, portanto, de um intervencionismo, mas um intervencionismo liberal: o Estado intervém para o melhor funcionamento do mercado liberal.
1.3.1 FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA
Para a análise das formas de intervenção do Estado na ordem econômica, destaca-se, primeiramente, a diferença existente entre atuação estatal e intervenção estatal.
A atuação estatal pode ser tida como um conceito mais amplo que intervenção, que engloba as hipóteses em que o Estado desempenha atividade econômica. E a atividade econômica é um gênero, ao qual pertencem duas espécies: a atividade econômica em sentido estrito, e a execução de serviço público.
Ter-se-á a intervenção sempre que o estado desempenhar a atividade econômica em sentido estrito. Isso porque, neste caso, o Estado desempenha atividade constante do campo de atuação de outrem, ou seja, pertencente ao campo de atuação da iniciativa privada.
Assim, o termo atuação estatal é utilizado para determinar as hipóteses em que o Estado atua em campo que lhe compete, na execução de serviços públicos[10], enquanto a intervenção se relaciona com as atividades primordialmente exploradas pela atividade privada.
A intervenção estatal, por sua vez, pode ser direta ou indireta.
Ao se referir à intervenção direta, a Constituição trata-a como exploração da atividade econômica pelo Estado e, ao se referir à intervenção indireta, toma o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica.[11]
A intervenção direta afigura-se excepcional e eventual,quando necessário aos imperativos de segurança nacional, ou relevante interesse coletivo[12]. É uma exceção ao principio da livre iniciativa constitucional. Outra hipótese de intervenção estatal direta está contida no art. 177 do texto constitucional, que cuida dos monopólios da União.
Note-se que, neste caso, o Estado não está prestando serviço público posto que, se assim fosse, seria o caso de atuação estatal e não de intervenção. No caso da intervenção direta, o Estado pratica atos próprios da iniciativa privada, em concorrência com esta (art. 173), ou em monopólio, por expressa previsão constitucional (art. 177).
Já a intervenção indireta, a atuação do estado é normativa e reguladora.
Com a crise do Estado social e da ampla atuação estatal, que nele se verificava em diversos setores, ‘ foi sendo criada, inicialmente, a figura do Estado regulador, que é aquele que transfere muitas atribuições de prestação de serviço à coletividade para a iniciativa privada, e passa a exercer apenas a função de regulação e controle destas atividades delegadas.
(...)
Estado regulador é o novo perfil do Estado contemporâneo, que se afastou da prestação de serviço efetiva de diversas atividades, transferindo-as aos particulares, sem, contudo, abandonar totalmente os setores que deixava, já que permaneceu neles regulando e acertando (fiscalizando) a conduta da ordem privada, conforme já se pôde observar anteriormente.[13]
É clássica, ainda, a classificação das formas de intervenção estatal trazida por Eros Roberto Grau. Para o ilustre autor, são quatro as formas de intervenção:
a) intervenção por absorção (art. 177 CF): “o Estado assume integralmente o controle dos meios de produção e/ou troca de determinado setor da atividade econômica em sentido estrito; atua em regime e monopólio”[14].
b) Intervenção por participação (art. 173 CF): “o Estado assume o controle de parcela dos meios de produção e/ou troca de determinado setor da atividade econômica em sentido estrito”[15]. Assim, o Estado participa da atividade econômica em concorrência com entes da iniciativa privada.
c) Intervenção por direção (art. 174 CF): “o Estado exerce pressão sobre a economia estabelecendo mecanismos e normas de comportamento compulsório para os sujeitos da atividade econômica em sentido estrito”[16]. O Estado regula a economia, por normas de natureza cogente.
d) Intervenção por indução: “o Estado manipula os instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados”[17]. O Estado estimula determinada atividade econômica, por meio de incentivos econômicos conferidos aos agentes. São normas de natureza dispositiva.
Integrando ambas as classificações, temos como formas de intervenção direta a intervenção por participação e a intervenção por absorção e, como formas de atuação indireta, a intervenção por direção e a intervenção por indução.
1.4 PRECEITOS ECONÔMICOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – FUNDAMENTOS, FINALIDADE E PRINCÍPIOS.
Conforme já oportunamente ressaltado no presente trabalho, o embate entre o capitalismo e o socialismo em suas formas puras, fez surgir nos estados modernos a adoção de sistemas econômicos mistos, possibilitando ao sistema capitalista, por exemplo, a adoção de certas características sociais.
A Constituição vigente também é resultado da ideologia de sua época. Pode ser considerada como marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, já que consolida a ruptura com o regime autoritário militar.
É um texto rico em direitos sociais, chegando a estabelecê-los, inclusive, no capítulo da ordem econômica. A Ordem Econômica, identificando setor próprio e um conjunto de regras de conteúdo econômico, ingressou no domínio da matéria constitucional brasileira associada à Ordem Social a partir da Constituição Federal de 1934[18].
Conforme salienta José Afonso da Silva ao tratar da ordem econômica, são os elementos sócio-ideológicos que revelam o caráter de compromisso das constituições modernas entre o Estado liberal – que consagra uma declaração de direitos do homem com a finalidade de proteger o indivíduo contra a usurpação e abusos do poder - e o Estado social intervencionista – que busca suavizar as injustiças e opressões econômicas e sociais. Do embate entre estas duas ideologias, surgem, nos textos constitucionais, princípios de direitos econômicos e sociais, formando o chamado conteúdo social das constituições.
A Constituição de 1988[19], além de expandir consideravelmente os direitos sociais, dispôs sobre a Ordem Econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Significa, portanto, a consagração constitucional de uma economia de mercado (de natureza capitalista), mas, não obstante, dá-se prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado[20].
No mesmo direcionamento, determinou que o fim desta Ordem é assegurar a todos uma existência digna (valorização da pessoa humana), conforme os ditames da justiça social.
A justiça social, portanto, é almejada a fim de permitir a concretização da dignidade estabelecida no texto constitucional. O fim da Ordem Econômica somente será realizado mediante a equitativa distribuição de riquezas (justiça social), permitindo a cada um dispor de meios materiais para viver confortavelmente (existência digna).
Ao dispor dos princípios constitucionais, também possibilita a compreensão de que o capitalismo ali concebido há de humanizar-se (respeitando os chamados princípios de integração: a defesa do consumidor, o meio ambiente, a redução de desigualdades regionais, a busca do pleno emprego, função social da propriedade... ). Assim, outros princípios típicos do sistema capitalista (livre concorrência e propriedade privada), hão que ser concebido em conjunto com os demais princípios constitucionalmente elencados. Por isso fala-se em função social da propriedade privada e na repressão do abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (§4º do art. 173).
Tratados de forma sumária os preceitos constitucionais da ordem econômica, cumpre analisar, de forma mais profunda, o fundamento da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência, temas essenciais para o estudo da intervenção Estatal na ordem econômica no contexto da defesa da concorrência.
1.4.1 A LIVRE INICIATIVA E A LIVRE CONCORRÊNCIA
A livre-iniciativa na Constituição de 1988 vem prevista como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV), abrangendo diversas facetas (liberdade de indústria e comércio, a liberdade de empresa e a liberdade de contratar).
No presente trabalho, importa destacar a livre-iniciativa econômica, prevista no “caput” do art. 170 da CF como fundamento da ordem econômica. Essa previsão denota a adoção do sistema econômico capitalista[21], não obstante igual destaque tenha sido dado pelo dispositivo constitucional à valorização do trabalho. Com efeito, conforme já oportunamente mencionado, esse destaque dado à valorização do trabalho tem o condão de revelar o caráter social da Constituição de 1988[22], sem afastá-la das premissas capitalistas.
Essa livre-iniciativa econômica, nos termos da Constituição de 1988, deve ser vista em uma dupla garantia: a liberdade conferida ao cidadão e a garantia de não intervenção estatal. Contudo, a integração dessas duas garantia requer a amenização de cada qual delas, para que possam conviver harmonicamente no sistema jurídico.
Ou seja, num sistema que assegura a livre-iniciativa econômica, a não intervenção estatal é a regra, somente admitindo exceções na medida em que observar os termos constitucionais e legais previstos, objetivando assegurar outras premissas constitucionais.
A livre-iniciativa, portanto, garante a possibilidade de autodirecionamento econômico dos particulares, mas impõe também a necessidade de submeter às limitações impostas pelo Poder Público, quando for o caso. Na falta de lei condicionadora, a liberdade será ampla, apenas devendo ater-se aos princípios constitucionais. ‘ O importante, contudo, é notar qie a regra é a liberdade. Qualquer restrição a esta terá que decorrer da própria Constituição ou de leis editadas com fundamento nela’ (Bastos, 2000:114)[23]
A livre-concorrência, por sua vez, é consagrada no texto constitucional como princípio básico da ordem econômica (art. 170, IV).
Num primeiro momento, afirma-se que “a decorrência lógica da livre-iniciativa é a previsão da livre-concorrência”[24]
Com efeito, a livre-concorrência, da mesma forma que a livre-iniciativa, é um dos fundamentos de qualquer sistema capitalista. Consiste na não tolerância de “monopólio ou qualquer outra forma de distorção do mercado livre, com o afastamento artificial dos da competição entre competidores. Pressupõe, ao contrário, inúmeros competidores, em situação de igualdade.”[25]
Contudo, destaca André Ramos Tavares[26] que, ao prever o princípio da livre-concorrência de forma separada da livre-iniciativa, a Constituição deixou claro que, diferentemente do que previa o liberalismo econômico, não pode ser aquela considerada como corolário desta.
De fato, a livre-concorrência prevista na Constituição está baseada na atuação estatal para manutenção da igualdade dos agentes econômicos atuantes no mercado, evitando-se os monopólios tão prejudiciais ao mercado.
Conclui-se, assim, ser a livre-concorrência a possibilidade de atuação estatal sobre a economia, para, desde que observados os limites dessa atuação, garantir o regular funcionamento de um mercado livre.
A excessiva liberdade prejudica a concorrência (já que a concentração de poder econômico na mão de alguns pode levar ao abuso deste poder), e a excessiva regulamentação da liberdade (sob o fundamento de manutenção da livre concorrência) redunda na sua limitação. Pode-se dizer, portanto, que trata-se de um sistema contrabalanceado, onde a livre-iniciativa e a livre-concorrência impõem, reciprocamente, limites, a fim de se garantir a ordem capitalista.
A imposição desses limites, prevista genericamente no “caput” do art. 173 da CF, é delegada ao legislador ordinário, que deverá determinar a responsabilização penal, civil e administrativa dos agentes econômicos que pratiquem condutas que comprometam a livre-concorrência.
A repressão penal concentra-se na definição e punição dos crimes de concorrência desleal (art. 178 do Decreto-Lei n. 7.903/45); a repressão civil decorre da responsabilização genérica prevista pelo Código Civil; e da repressão administrativa cuida, atualmente, a Lei 8884/94, que trata da infração contra a ordem econômica e estabelece mecanismos jurídicos para combater o abuso do poder econômico[27].
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TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Editora Método. 2006.
[1] Apud TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2006, p.22.
[2] Cf. TAVARES, op. cit. p. 35
[3] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1998: interpretação e crítica. p. 32.
[4] Ibid., p. 36.
[5] Ibid., p. 66 e 67
[6] TAVARES, op. cit., p. 72.
[7] Apud TAVARES, op. cit , p.73.
[8] O professor Eros Grau destaca a existência de uma Constituição Diretiva, ou seja, aqueles que, ao contrário das Constituições Estatutárias (ou orgânicas), não basta a ser concebida como mero instrumento do governo , mas anunciam diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela Economia. Num contexto de Constituição Econômica Diretiva ou programática, a ordem econômica compreende a enunciação dos fins da política econômica, postulando a implementação da nova ordem.
[9] NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001.
[10] O serviço público é conceituado como atividade indispensável à consecução da coesão social, sendo caracterizado por sua vinculação. A constituição brasileira é programática, elencando diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Deve-se buscar o desenvolvimento necessário para que os fundamentos traçados pelo art. 1º e os objetivos arrolados no art. 3º sejam plenamente realizados, garantindo que a ordem econômica tenha, por fim, assegurar a todos uma existência digna (art. 170). E a prestação de serviços públicos mostra-se indispensável na busca deste intuito.
[11] TAVARES, op. cit. p. 279.
[12] CF/88 - Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
[13] TAVARES, op. cit. p. 306 e 307.
[14] GRAU. op. cit. p. 148.
[15] Ibid., p. 148.
[16] Ibid., p. 148.
[17] Ibid., p. 149.
[18] Cf. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.256.
[19] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[21] Cf. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006
[22] Conforme enfatiza Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é por meio desta atividade livre que se alcançara a realização da justiça-social, o bem-estar social.
[23] TAVARES, op. cit,. p. 243.
[24] Ibid., p. 257.
[25] TAVARES, op. cit ., p. 258.
[26] Ibid., p. 258.
[27] Considerando-se o termo constitucional “abuso de poder econômico” (art. 173, §4º CF) como sinônimo de “infração contra a ordem econômica” (art. 20 da Lei n. 8884/94).
Procuradora Federal, professora universitária, especialista em direito público e interesses difusos e coletivos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MECELIS, Adriana. Aspectos constitucionais da proteção da ordem econômica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jun 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/24686/aspectos-constitucionais-da-protecao-da-ordem-economica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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